Avanço tecnológico, pouca educação e Pan favorecem ‘explosão’ de doping

Detecção minuciosa das substâncias cria solução para as entidades de controle no combate aos trapaceiros e problema para os desinformados. Brasil soma dez casos famosos em 2019

Capa Rafaela Silva
Rafaela aguarda posição da IJF para apresentar defesa em caso de doping (Foto: AFP/Arte: Marina Cardoso/LANCE!)<br>

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Uma quantidade mínima de Fenoterol detectada em exame antidoping durante os Jogos Pan-Americanos de Lima, em agosto, foi o ponto de partida para um dos capítulos mais conturbados da carreira da judoca Rafaela Silva. Mas os atletas de alto rendimento precisam se habituar a esse cenário. O avanço tecnológico é um dos fatores que ajudam a explicar a onda de dopagem no Brasil em 2019.

Na segunda matéria da série especial sobre doping, o LANCE! buscou entender os motivos que levaram o país a se deparar com tantos casos neste ano pré-olímpico. Até o momento, já foram tornados públicos pelo menos dez resultados analíticos adversos de atletas de expressão no mundo. Especialistas defendem a necessidade de distinção entre doping intencional e acidental.

– A capacidade de detecção aumentou muito. Você pega mil vezes mais do que há dez anos – afirmou L.C. Cameron, professor titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e parte da defesa de Rafaela Silva.

Coletiva Rafaela Silva
Rafaela Silva se diz inocente por doping (Foto: Jonas Moura/Lance!)

A campeã olímpica na Rio-2016 atribuiu o resultado analítico adverso a um contato com Lara, de sete meses, filha da judoca Flávia Rodrigues, do Instituto Reação. A menina teria ingerido medicamento para asma com a substância, pouco antes de brincar de chupar o nariz de Rafaela. A defesa acredita que isso pode explicar a contaminação. 

A Federação Internacional de Judô (IJF, em inglês) decidirá em breve se aplicará ou não uma punição. Ela pode perder o ouro conquistado no Pan e os dois bronzes que faturou no Campeonato Mundial, em Tóquio. A atleta também corre o risco de perder os Jogos Olímpicos de Tóquio-2020.

A substância encontrada em Rafaela é proibida pela Wada por provocar aumento de performance, uma vez que permite melhor troca gasosa entre o sangue e o pulmão. O teste que pegou a judoca foi feito no dia 9 de agosto, quando ela conquistou o ouro no evento continental, na categoria até 57kg. Conta a favor de sua defesa o fato de ter sido testada novamente no dia 29 do mesmo mês, no Mundial, sem alterações.

Com o desenvolvimento das técnicas de detecção, crescem os relatos de casos em que itens proibidos encontrados em amostras de urina ou sangue provocam processos de doping sem, necessariamente, qualquer relação com ganho de vantagens esportivas.

"É tão baixa (a detecção) hoje que os testes acabam pegando substâncias sem qualquer relevância, como a contaminação por você ter comido um bife no lugar errado" - L.C. Cameron

– É tão baixa (a detecção) hoje que os testes acabam pegando substâncias sem qualquer relevância, como a contaminação por você ter comido um bife no lugar errado. Até uma sopa de marisco pode ferrar o atleta – explica Cameron.

Diante das mais distintas situações que surgem nos tribunais, os atletas têm o desafio de se informar cada vez melhor sobre o assunto. Segundo dados da Agência Mundial Antidoping (Wada) de 2016 (os mais recentes já publicados), o Brasil foi o oitavo país com maior número de violações de regras antidopagem, com 55 casos, naquele ano, empatado com o Irã. A nação líder da lista foi a Itália, com 147.

Gráfico 3: 10 Países com maior número de violações
Dados de 2016 são os mais recentes (Arte: Marina Cardoso/Lance!)

Há uma diferença entre os conceitos estatísticos de violação de regras antidopagem, que indica situações comprovados de uso de substâncias proibidas, e o de resultados analíticos adversos. Isso porque um esportista flagrado pode pedir um documento chamado Autorização de Uso Terapêutico (AUT), caso tenha de ingerir um remédio com algum item vetado pela Wada.

Cameron acredita que uma política educacional mais efetiva tenderia a reduzir o número de casos no país.

– Se começarmos a debater com o atleta profissional, sem preconceitos, qual é o ganho real com o doping, acho que pode funcionar. Não adianta falar: “o doping fará mal para sua saúde e você pode ter câncer daqui a 20 anos”. O atleta pensa no carro que ele vai comprar hoje – diz Cameron.

Ano de Pan favorece aumento

Além da detecção detalhada, a frequência de casos pode ser explicada ainda pelo fato de que o número de amostras analisadas durante os Jogos Pan-Americanos e Parapan-Americanos é muito maior do que nos dois anos anteriores, que não tiveram um evento multiesportivo desta dimensão. Segundo a organização de Lima-2019, foram realizados mais de 2.300 testes, se somadas as duas competições.

– O período contribui tanto para o doping intencional, pois o atleta trapaceiro quer se qualificar para as competições e corre o risco de ser pego atrás do prêmio, quanto para o não intencional, ou seja, quem consome inadvertidamente uma substância. Como nesse período aumenta o número de testes, você tem resultados analíticos adversos em ambos os casos – explicou Marcelo Franklin, advogado que há mais de 20 anos defende atletas de alto rendimento em casos de doping e se acostumou a ver níveis de detecção mínimos em amostras de seus clientes:

– Muitas vezes, o atleta é flagrado no antidoping com nanogramas (um bilionésimo do grama) em sua urina. Já tive casos em que foram encontrados picogramas, bem menos do que o próprio nanograma – completou o profissional, que defendeu o nadador Cesar Cielo no caso de doping, em 2011, quando ele foi flagrado com furosemida. A farmácia de manipulação que produzia suplementos para o atleta assumiu a culpa e ele só foi advertido.

Cesar Cielo
Cesar Cielo só foi advertido em 2011. De lá para cá, a evolução nos controles antidopagem no mundo foi expressiva (Foto: Satiro Sodré)

‘Droga do momento’ preocupa

Dos dez casos de doping de atletas brasileiros de expressão em 2019, quatro têm em comum a sigla SARMs. Trata-se dos moduladores seletivos de receptor de androgênio, com resultados semelhantes aos dos esteroides anabolizantes.

Embora na lista de substâncias proibidas pela Wada desde 2008, os SARMs apareceram pouco nos noticiários até o ano passado. O primeiro caso de expressão no Brasil foi do nadador Henrique Martins. Em 2019, a tenista Bia Haddad Maia, o ciclista Kácio Freitas e Andressa de Morais, recordista sul-americana no lançamento de disco, foram flagrados. Esse tipo de substância está presente em diversos suplementos alimentares.

Os SARMs se popularizaram após um longo período no chamado “mercado negro”. Com a contestável promessa de proporcionar efeitos anabólicos com menores danos à saúde, produtores de suplementos apostaram na ideia. No Brasil, são facilmente encontrados na internet.

– Os SARMs são semelhantes aos esteroides anabolizantes. O seu maior representante é a testosterona. Não existem SARMs aprovados por qualquer agência reguladora ao redor do mundo. Eles estão em fase de pesquisa clínica. São listados como substâncias proibidas no esporte desde 2008. A Wada tem um trabalho que seguimos nos Comitês Nacionais, de acompanhar o desenvolvimento da academia, das pesquisas de novos medicamentos, sobretudo com potenciais dopantes, e o movimento do mercado paralelo de substâncias. Só em 2010 que apareceu o primeiro caso. É uma preocupação não somente do COB, mas de toda a comunidade científica hoje – afirmou Christian Trajano, Gerente de Educação e Prevenção ao doping do COB.

Em uma consulta à lista itens proibidos pela Agência Antidoping dos Estados Unidos (Usada), é notável a presença maior de medicamentos com SARMs em 2019, o que mostra a preocupação mundial com o assunto.

– A indústria descobre uma nova substância e a joga no mercado. Muitos atletas passam a ser descobertos com SARMs no organismo. Então, os suplementos vão para listas que existem, levantando uma bandeira vermelha. Os competidores, cientes do problema, param de usar, e os casos diminuem. Isso é cíclico. Acredito que vai reduzir – falou Franklin.

OS CASOS FAMOSOS DE DOPING DO BRASIL EM 2019

Jessica Pereira (judô) - Furosemida

Jéssica Pereira conquista o bicampeonato de judô no Pan-Americano
Jéssica Pereira pegou 18 meses de suspensão (Foto: Divulgação)

Testou positivo para o diurético em exame fora de competição. Ela se colocou voluntariamente em suspensão e pegou 18 meses. A defesa tenta reduzir a pena, baseada em casos semelhantes, para a atleta tentar um lugar na Olimpíada do ano que vem.

Henrique Martins (natação) - SARMs22

Henrique Martins e Marcos Macedo - Natação
Henrique Martins testou postivo para um tipo de SARM (Foto: AFP)

O caso estourou no ano passado, mas só foi julgado pela Federação Internacional de Natação (Fina) este ano. O nadador afirmou ter tomado uma dose intravenosa de aminoácidos em uma clínica de Belo Horizonte. Na defesa, indicou que não sabia da presença da substância proibida na lista dos 13 aminoácidos. Cumpriu suspensão e já retornou.

Bia Haddad Maia (tênis) - SARMs22 e SARM LGD-4033

Bia Maia
Bia Haddad Maia testou para dois tipos de SARM (Foto: Divulgação)

Foi suspensa provisoriamente pela Federação Internacional de Tênis (ITF) após ser testada em um torneio na Croácia, em junho, e aguarda julgamento.

Gabriel Santos (natação) - Clostebol

Gabriel Santos
Fora de Pan e Mundial, Gabriel poderá disputar seletiva olímpica&nbsp;

Medalhista de prata no Mundial de Budapeste-2017 e titular do Brasil no revezamento 4x100m livre, o nadador pegou um ano de suspensão e perdeu o Pan e o Mundial, mas poderá voltar a tempo de disputar a seletiva olímpica e buscar sua vaga em Tóquio-2020. Ele alegou que usou, dias antes da coleta, uma toalha de seu irmão, que faz uso de uma pomada cicatrizante com a substância. Inicialmente, pegou oito meses, mas a pena foi aumentada.

Maria Clara Lobo (nado artístico) - Furosemida

Maria Clara Lobo
Maria Clara Lobo ficou fora do Pan (Foto: Wander Roberto/COB)

A principal atleta do Brasil no nado artístico foi suspensa provisoriamente pela Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem (ABCD) após ser testada em exame fora de competição. Aguarda julgamento.

Silvânia Costa (atletismo paralímpico) - Metilhexanamina

Silvânia Costa no prêmio paralímpicos
Silvânia Costa ficou fora do Parapan (Foto: Fernando Maia/Mpix/CPB)

Foi flagrada durante o Desafio CPB x CBAt, em São Paulo, no dia 16 de junho, e pegou suspensão provisória. Ficou fora do Parapan de Lima e aguarda julgamento.

Andressa de Morais (atletismo) - SARMs22

Andressa de Morais quebra o recorde sul-americano do disco
Andressa de Morais testou positivo no Pan (Foto: Wagner Carmo/CBAt)

Em setembro, o órgão responsável pelo controle antidoping da Associação Internacional das Federações de Atletismo (Iaaf) informou a suspensão da medalhista de prata no Pan de Lima no lançamento de disco, por uso de SARM-22. Ela é a sexta colocada no ranking mundial da prova. Ainda aguarda os procedimentos da Panam Sports para saber se perderá a medalha, bem como seu julgamento.

Kacio Freitas (ciclismo) - LGD – 4033

Kacio Freitas
Kacio Freitas testou no Pan (Foto: Abelardo Mendes Jr /Rededoesporte)

Anunciou publicamente, em meio aos boatos, que testou positivo e se disse inocente. Aguarda julgamento e pode perder a medalha conquistada no ciclismo de pista no Pan (bronze na prova de velocidade por equipes).

Rodriguinho (vôlei) - Não revelada

Rodriguinho ajudou Cruzeiro a se classificar
Rodriguinho testou positivo no Pan (Foto: Agência7/Divulgação)

Outro testado durante o Pan de Lima, o ponteiro do Sada Cruzeiro teria utilizado suplemento alimentar sem avisar a comissão técnica da Seleção Brasileira. Até o momento, não está suspenso.

Rafaela Silva (judô) - Fenoterol

Rafaela Silva
Ouro na Rio-2016, Rafaela se defende (Foto: Wander Roberto/COB)

Flagrada durante o Pan, não recebeu suspensão provisória automática e aguarda notificação da IJF. Ela atribui o resultado para Fenoterol a um contato com Lara, de sete meses, que toma uma medicamento para asma e mordeu seu nariz dias antes do teste. Ainda pode perder as medalhas do Pan e do Mundial e os Jogos de Tóquio.

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