Afinal, o que é o jogo posicional? L! consulta especialistas e jornalistas

Proposta de jogo de Domènec Torrent, técnico do Flamengo e ex-auxiliar de Pep Guardiola, ganha destaque nas discussões esportivas e transmissões das partidas

Domènec Torrent Dome e Willian Arão - Treino do Flamengo
Domènec Torrent orienta o meio-campista Willian Arão em atividade no Ninho (Foto: Alexandre Vidal/Flamengo)

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Com a chegada de Domènec Torrent, ex-auxiliar técnico de Pep Guardiola, ao Flamengo, o conceito de jogo posicional passou a ter destaque nas mesas redondas, transmissões das partidas e bate-papos entre os próprios torcedores - rubro-negros ou não. Porém, ainda há confusão sobre o tema e, para tirar as dúvidas, o LANCE! consultou especialistas e jornalistas esportivos do Brasil e da Espanha. Afinal, o que é o jogo posicional proposto pelo técnico do Flamengo?

Para começar a discussão, nada melhor que ouvir o próprio Domènec Torrent sobre o seu estilo. Em 10 de outubro, após a vitória sobre o Vasco por 2 a 1, o técnico falou sobre a evolução do time e assimilação dos atletas às ideias do jogo posicional, ressaltando um princípio fundamental do conceito: jogadores não são determinados a ficarem fixos na mesma posição durante todo o jogo.

- Jogar posicional não significa ficar na mesma posição. Você pode trocar a posição, mas precisamos de jogadores sempre numa mesma posição, porque você pode jogar mais rapidamente. Na minha opinião, se todo mundo está se movendo, você não encontra. Quanto mais se move, a bola não encontra você. Se você não se move, a bola te encontra rapidamente. Esse é meu estilo - disse.

'Cruyff é o pai. O sucesso sempre tem milhares de autores, mas há apenas um pai e, neste caso, é Johan Cruyff', escreve Martí Perarnau referindo-se ao jogo posicional em 'Senda de campeones'

Em artigo publicado na "The Tactical Room" (A Sala Tática), revista digital esportiva dirigida por Martí Perarnau, ex-atleta de salto em altura, jornalista e biógrafo de Pep Guardiola, o técnico Daniel Fernandez destrincha o jogo de posição trazendo o contexto histórico, as características gerais do estilo, o comportamento do ponto de vista geométrico e os métodos de treinamento - você pode conferir o texto, em espanhol, clicando aqui.

Como pontuado por Daniel Fernandez, o jogo posicional é apenas uma forma de compreender o jogo de futebol. Neste aspecto, vale ressaltar: não há maneira de atuar correta ou errada, tampouco um determinado estilo que garanta o sucesso do time em campo, e vice-versa. O que determinará o êxito do time em campo - seja qual for a ideia por trás da maneira de atuar - é se a mesma é bem ou mal executada. E é a partir deste ponto que a análise deve ser realizada, como defende o jornalista Carlos Eduardo Mansur, do "O Globo".

 - Sobre gostar ou não, eu defendo que não existe ideia boa ou ruim no futebol. Costumo dividir o tema da seguinte forma: como admirador e fã do esporte, se pudesse escolher, há maneiras que eu prefiro ver, com ideias que correspondem à minha sensibilidade para o futebol, o que me toca, me fascina. Sob o ponto da análise, isso vale zero, nada. O que vale é analisar se os times estão executando bem as suas ideias. Existem ideias bem ou mal executadas. Tanto um jogo de mais mobilidade, quanto mais posicional, tanto um de mais posse de bola, quanto um de transição, tanto um que pressiona lá em cima, quanto um que recua as linhas para criar espaços e atacar em velocidade... Tudo isso tem lugar no futebol, desde que o técnico consiga executar bem o conceito. Não vejo superioridade ideológica de um modelo sobre o outro - afirmou o repórter e colunista em contato com o LANCE!, antes de completar:

- O que me fascina são os times que tentam controlar o jogo através da posse, que tenham trocas de passes e procure construções para criar chances de gol desde a defesa. As equipes que atuam no jogo de posição costumam me encantar mais, mas longe de significar que isso seja, por definição, mais correto ou a melhor forma de se jogar futebol - finalizou Carlos Eduardo Mansur.

Domènec Torrent, Jordi Gris e Jordi Guerrero
Dome e os auxiliares Jordi Gris e Jordi Guerrero (Alexandre Vidal / CRF)

AS CARACTERÍSTICAS GERAIS DO JOGO POSICIONAL

Como conceito, o jogo posicional tem características fundamentais. O domínio destes aspectos por parte dos principais agentes de uma partida - os atletas - é fundamental para que este estilo seja desenvolvido. Em seu artigo, Daniel Fernandez destaca alguns pontos que devem ser colocados em prática. Veja!

- Os jogadores devem ficar dispostos em diferentes alturas, facilitando a criação das linhas de passes;
- É fundamental dar amplitude para que os corredores interiores apareçam, seja com os pontas, seja com os laterais;
- É fundamental o conceito do "homem livre";
- É fundamental que as superioridades numéricas se construam desde a primeira linha;
- A condução permite atrair rivais e, assim, provocar a aparição do "homem livre";
- A formação contínua de triângulos de passes permitem jogar com o "terceiro homem".

Neste estilo, defesa e ataque são ideias conjuntas, portanto é a ideia ofensiva que condiciona o resto do jogo. Isso permitirá que a equipe, como um todo, viaje junto ao longo do campo e que esteja sempre próxima. Assim, será capaz de realizar a pressão pós-perda de posse - o que dificulta ao rival contra-atacar.

Com o domínio destes conceitos por parte dos jogadores, a posse ganha importância pois é um fenômeno que pretende desestabilizar o adversário, eliminar rivais e condicionar o seu balanço defensivo. Desta forma, impõe ao rival sua forma de jogo, que deixa de ser aquele pretendido por seu técnico.

'O JOGO POSICIONAL ESTÁTICO É O JOGO POSICIONAL MAL FEITO'

Neste contexto, houve análises a respeito de jogos do Flamengo que responsabilizaram a ideia de jogo posicional por "engessar" o setor ofensivo formado por Everton Ribeiro, Bruno Henrique, Gabigol & Cia. Como explicado acima, não há regra, determinação ou característica nesta ideia de jogo que "prenda" determinado jogador a uma posição fixa, a um único lugar do campo.

Na visão de Renato Rodrigues, analista de desempenho e coordenador do DataESPN, a confusão no debate da imprensa esportiva - e também dos torcedores - sobre o jogo posicional explica-se pela cultura futebolística do Brasil, na qual a construção dos ataques esteve ligada à intuição e qualidade dos atletas. A organização da defesa, por sua vez, sempre recebeu "atenção".

- Historicamente não é uma característica do futebol brasileiro. Temos uma ideia de jogo, lá de trás, que organização serve para defender, e quando você ataca tem que ser um negócio mais intuitivo, com o jogador resolvendo pela qualidade. Isso tem se mostrado cada vez mais menos eficiente. Se olharmos o futebol em geral, as estruturas precisam de organização para atacar. E isso não quer dizer que é preciso posicionar o jogador em um espaço e ele fique ali parado. Não é isso. (O jogo posicional) É que espaços sejam pré-determinados e ocupados e que, a partir de alguns movimentos, essas peças mudem. Não é um jogo de pebolim. O jogo posicional estático é o jogo posicional mal feito. As pessoas têm um preconceito e enxergam como um jogo sem mobilidade.

AS CARACTERÍSTICAS APRESENTADAS PELO FLAMENGO

Jogo Posicional - Flamengo
À esquerda, a "saída em 3", com Arão; à direita, a movimentação dos laterais, a formação dos corredores  e dos triângulos (F: Reprodução)

Com Domènec Torrent no Brasil desde agosto, o Flamengo já soma 23 partidas com o treinador espanhol. A pandemia da Covid-19 tornou o calendário do futebol nacional ainda mais apertado e quase não há tempo para treinar - como o próprio técnico se queixou recentemente -, contudo, o time em campo demonstra algumas características do jogo posicional - veja as imagens acima.

À esquerda, a equipe está posicionada para iniciar a posse de bola com a "saída em três" - a qual já era utilizada por Jorge Jesus. Willian Arão é quem costuma aparecer entre os dois zagueiros para fazer o balanço e movimentar a bola. Os laterais posicionam-se rente às linhas, dando a amplitude máxima ao campo.

Como explicado acima, os jogadores não estão presos a uma posição. No caso do Flamengo, por exemplo, é muito comum Filipe Luís construir pelo centro do campo, e Gerson ou Bruno Henrique (ou outro atleta) aparecer mais aberto. O importante é que sempre os espaços estejam ocupados e os triângulos sejam formados para gerar a superioridade numérica e, assim, superar o adversário.

É o que se vê no campinho à direita, por exemplo. As aproximações de Isla e Everton Ribeiro, na direita, e Bruno Henrique e Gerson, na esquerda, geram os corredores a serem atacados pelos companheiros: pode ser a ultrapassagem de Filipe Luís, a aproximação de Diego ou a procura por Gabigol dentro da área.

Mais uma vez, vale ressaltar que os movimentos independem dos nomes que estão em campo. Contra o Athletico, quarta-feira no Maracanã, a jogada do segundo gol de Pedro é um exemplo disso. Thiago Maia fica com a bola na faixa central do campo e aciona Everton Ribeiro. Como é o camisa 7 que está aberto próximo à linha lateral, Matheuzinho ataca o corredor interno e aparece dentro da área para dar a assistência para o centroavante do Flamengo - veja abaixo.

Com a Palavra
Carlos Eduardo Mansur - Repórter e colunista do jornal O Globo

Por que há tanta repercussão na mídia sobre o jogo posicional?

"Vejo um bom sinal nesta discussão. Se voltarmos dez anos no tempo, não se discutia modelo de jogo do treinador, ideologia... Se discutia se ganhou ou não e se era estrangeiro ou não, quando muito. E era isso. Até hoje, os clubes contratam muito pelos títulos que os treinadores ganharam, e não pelo estilo de jogo. (O debate) Ganhou um espaço na mídia, e isso é bom. Por outro lado, a razão de se discutir é o oposto disso, que é a cultura do resultadismo ainda reinante. As pessoas olham para o Flamengo e acham que, quem vier, tem que fazer tudo da maneira que o (Jorge) Jesus, por tudo que aquele time ganhou, sem a compreensão que o treinador só é capaz de guiar um grupo de acordo com as convicções e metodologias.

É como se você quebrasse a perna e fosse buscar a cura em um cardiologista. Não vai se obter a recuperação. E há um pouco do desconhecimento do que é o processo. Se idealizou a ideia de um Flamengo estático em campo, com uma simples colocação de jogadores fixos, como se isso definisse o jogo de posição, que é algo muito mais complexo e de um nível de entendimento de difícil alcance até para nós (jornalistas). Para mim, houve um dificuldade para entender que chegou um treinador novo com pouco tempo para trabalhar, com outras crenças, jogo em cima de jogo e que está conseguindo impor as suas ideias com o carro em andamento. As pessoas se acostumaram com um modelo de jogo e têm dificuldade para entender que um técnico só é capaz de convencer um grupo a seguir a sua liderança se tiver convicção do que está fazendo. E a do Domènec é a de um jogo posicional."

Com a Palavra
Léo Bertozzi - Comentarista dos canais ESPN

Por que há tanta repercussão na mídia sobre o jogo posicional?


"Acredito que seja muito medo do que se conhece, normalmente. É só um vocabulário. O jogo de posição já se aplica há muito tempo. Na prática, é simplesmente você ter a bola como referência, se alguém se movimenta, há ocupação de outro jogador no espaço deixado, tentar trabalhar com aproximação para buscar inversões e criar superioridades numéricas. Todo passo tem um sentido: eliminar adversários, sair da linha de pressão, o conceito de terceiro homem (entre os zagueiros, na saída de bola)... Tudo voltado para criar situações de gol."

O que pensa sobre o estilo?

"De uma maneira geral, pessoas leem como se um jogo de posição fosse colocar jogadores estáticos, cada um sua posição, quando é justamente o contrário. Por exemplo, por que você às vezes posiciona dois jogadores pertos da linha lateral? Para ampliar o campo e gerar espaço por dentro, se trabalhar bem com a bola e afinar os movimentos. Na minha visão, é uma maneira interessante de jogar. Muitas vezes se critica de uma maneira equivocada justamente por não saber interpretar o jogo de posição."

Com a Palavra
Ricard Torquemada - Jornalista da Rádio Catalunya e do canal de esportes TV3

Quais são as principais características do jogo de posição?

"No jogo de posição, as características principais seriam ocupar os espaços do terreno do jogo e que a bola circule nas diferentes estações, de forma que a bola passe pelos jogadores com todos esses espaços ocupados, tanto em amplitude como em profundidade. Os jogadores devem utilizar poucos toques para mover a bola de um lado ao outro, o mínimo possível. E há os conceitos que ajudarão nessa movimentação, como o terceiro homem e a formação dos triângulos. Essa triangulação pode ser feita por todos: meia, ponta e lateral, pelo zagueiro central, volante e lateral, pelo ponta, meio-campista e atacante. Sempre se movendo em formas de triângulos, de maneira que a bola sempre vá se mover por essas etapas. Essas seriam as características principais do jogo de posição. Mover a bola com uma estrutura posicional, com todas posições ocupadas e a bola passará por elas. Para esta ideia, é importante para ter a posição que te permite atacar de forma ordenada e, sobretudo, estar muito preparado do ponto de vista da posição, para a recuperação, para a pressão pós-perda. Tanto no ataque quanto na defesa."

Quais foram as principais influências desta ideia de jogo?

"O jogo de posição, sobretudo, tem uma raiz holandesa. Do Ajax, da Laranja Mecânica... Não era um time muito posicional, pois era uma equipe mais desordenada, com muitas trocas de posições, que estavam sempre ocupadas. A escola do Cruyff é que sublima o jogo de posição e, depois, o Guardiola o reativa. Ajax, o Barcelona dos melhores tempos, a seleção espanhola do Del Bosque, todos esses dominavam o jogo posicional. São as escolas do Barcelona e da Holanda que mais exprimiram desse jogo posicional. Se buscarmos mais atrás, eu não vivi essa época, mas pelo que podemos ler, a Hungria de 54 foi a primeira conexão com o Ajax, através do treinador Kovács, que chegou depois de Michels. Pode ser a primeira raiz desse jogo posicional, já com o falso 9, que sempre foi um elemento dessa ideia de jogo. O falso 9 ajuda a ter mais triângulos, pois se aproxima dos meio-campistas e permite a triangulação pela faixa central do campo. Era assim no Barcelona, com Messi."

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