‘É tempo de inclusão’

Américo Espallargas, mestre em Administração Esportiva, pela Universidade de Columbia, em Nova York, opina sobre o caso de Tiffany, atleta trans que disputa a Superliga

Tiffany Abreu
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Não se fala em outro assunto no voleibol brasileiro: após cinco rodadas da Superliga Feminina, a atacante pela Tiffany Abreu marcou 115 pontos, número que supera a média de 4,91 pontos por set da campeã olímpica Tandara, uma das principais jogadoras da seleção brasileira. Mas a razão de tantos comentários ao redor do desempenho de Tiffany não parece ser sua qualidade dentro de quadra, mas sim o fato de ser ela transexual – e se isso lhe dá uma vantagem indevida na hora de competir.

Atletas, treinadores, empresários e dirigentes já se manifestaram contrariamente à presença de atletas transexuais na Superliga. Queixam-se especialmente da força de Tiffany, que antes competia profissionalmente na categoria masculina. Esses comentários fazem parte de um fenômeno que se repete no resto do mundo, na esteira de relaxamentos progressivos do Comitê Olímpico Internacional nas regras a respeito da participação de atletas transexuais em campeonatos oficiais. A questão, diz acertadamente o COI, não é de competição, mais sim de direitos humanos.

Tiffany hoje se enquadra na regra do COI, tendo se submetido a cirurgia e tratamento hormonal por ao menos dois anos. Além disso, dados apontam que o nível de testosterona de Tiffany - 0,2 nanomol por litro de sangue - está bem abaixo do limite máximo de 10 nanomol/L estabelecido pelo COI. Apesar das queixas, especialistas apontam que Tiffany compete dentro do padrão da Superliga e tem desempenho inferior a outras atletas tanto no ataque quanto em outros quesitos, como bloqueios, por exemplo.

O caso de Tiffany é mais um enfrentado pelo esporte de alto rendimento quanto à inclusão e ao direito à igualdade. Oscar Pistorius, o famoso atleta paralímpico – antes de cometer o horrível crime pelo qual foi condenado na África do Sul – desafiou as regras vigentes à época, conseguiu índice e competiu nas Olimpíadas de Londres em 2012. Muito se discutiu então sobre eventuais vantagens que as lâminas usadas por Pistorius em tese lhe davam, desde amortecimento e impulsão a preocupações sem fundamento quanto à segurança, alegando que as lâminas eram afiadas e poderiam machucar outros corredores. Contrariando críticos, ele foi o primeiro para-atleta bi amputado a alcançar o feito de participar das Olimpíadas de Verão.

Do mesmo modo, a corredora indiana Dutee Chand enfrentou uma verdadeira odisseia contra a IAAF, a Federação Internacional de Atletismo, e seu regulamento sobre mulheres portadoras de hiperandrogenismo, uma condição biológica natural que faz com que mulheres produzam testosterona em altos níveis. Chand foi submetida a inúmeros testes, inclusive o vexatório “teste de sexo” para verificar seu gênero, e obteve no Tribunal Arbitral do Esporte na Suíça uma enorme vitória ao conseguir, em 2015, a suspensão do regulamento da IAAF. Apesar de a discussão ainda não estar encerrada, Chand, que graças à decisão favorável pôde competir nas Olimpíadas do Rio de Janeiro há dois anos, levantou um argumento importante sobre igualdade: enquanto ela, pobre e treinando em pistas precárias no interior da Índia, estava sendo impedida de competir em razão do nível de testosterona em seu sangue, sob o argumento de que possuía uma vantagem indevida, inúmeras outras atletas tiveram, desde o início de suas carreiras, acesso a treinamentos, profissionais, nutricionistas, preparação e materiais esportivos da melhor qualidade. Na linha de chegada e após anos e anos de treinamento, não seria essa uma condição capaz de trazer uma vantagem de milésimos de segundo que poderia representar a diferença entre estar ou não no pódio?

Mais além da discussão quanto ao desempenho de Tiffany, a atleta merece louros por ser verdadeiro exemplo de inclusão e combate ao preconceito no esporte. Este, como fenômeno social, não está isento do debate e da necessidade da nossa sociedade de garantir igualdade a todos e todas e em especial à comunidade LGBTQ+; pelo contrário, tem a oportunidade de ser carro-chefe nesse processo e desafiar a máxima, infelizmente verdadeira hoje em dia, de que o esporte de rendimento é para poucas pessoas.

É tempo de o esporte se modernizar, se abrir e aceitar que a sociedade – e atletas – não são tão simples quanto uma divisão singela em categorias masculina e feminina. O futuro, esperamos, nos reserva um esporte mais inclusivo, com regras que ajudem a despir as pessoas de preconceito. Não é absurdo pensarmos em categorias de competição baseadas na capacidade física de atletas – as Paralimpíadas já são assim em alguma medida – e não mais em questões de gênero. Que o século XXI nos reserve mais Tiffanys nas pistas e nas quadras do Brasil e do mundo.


Américo Espallargas é mestre em Administração Esportiva pela Universidade Columbia, em Nova York e Direito Desportivo Internacional pelo ISDE, em Madrid, e advogado associado do escritório CSMV Advogados.

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