Dez anos da tragédia da Boate Kiss: veja como a comoção com o incêndio se estendeu ao futebol

Em 2013, rodada do Gauchão e eventos que promoviam a Copa-2014 foram adiados. Atualmente, clubes de Santa Maria se mobilizam para melhorarem suas estruturas

Boate Kiss
Incêndio causou a morte de 242 pessoas e deixou 636 feridos (Divulgação)

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A madrugada de 27 de janeiro de 2013 se tornou uma das páginas mais dolorosas da história de Santa Maria. Um incêndio na Boate Kiss causou a morte de 242 pessoas e deixou 636 feridos. Após dez anos, permanecem marcas, comoção e traumas na cidade localizada a 289km de Porto Alegre.

A dor diante da tragédia não passa batida também pelo esporte. Até os dias atuais, clubes de Santa Maria continuam a ser solidários diante das vítimas enlutadas e percebem alguns efeitos de tudo o que aconteceu na Boate Kiss.

EM 2013, UM DOMINGO SEM FUTEBOL GAÚCHO E EVENTOS EM TORNO DA COPA-2014 ADIADOS

Sede da Federação Gaúcha de Futebol
Em 2013, jogos daquele dia mudaram para meados de fevereiro (Foto: Divulgação/FGF)

Horas depois da tristeza e do terror tomarem conta da região central de Santa Maria, a Federação Gaúcha de Futebol comunicou o adiamento da sequência dos jogos de domingo do Gauchão. A terceira rodada da competição tinha iniciado num sábado, dia 26, com um empate em 0 a 0 entre Novo Hamburgo e Juventude. 

Com isso, sete confrontos foram adiados. O Internacional enfrentaria o Caxias, na estreia tanto da equipe principal quanto de Dunga no comando do Colorado. O Grêmio lançaria seu time B contra o Santa Cruz, no jogo de despedida do Olímpico. Os demais duelos que mudaram de data foram entre Cruzeiro e Esportivo, Lajeadense e São José, Pelotas e São Luiz, Cerâmica e Canoas e Passo Fundo e Veranópolis.

Presidente da Federação Gaúcha de Futebol (FGF) naquele ano, Francisco Novelletto detalhou ao LANCE! como soube da notícia e a decisão de mudar o dia das partidas.

- Fui acordado às 4h com a notícia. O meu gerente era amigo do sargento do Corpo de Bombeiros. E os bombeiros tinham passado a madrugada socorrendo as pessoas lá em Santa Maria. Aí ele me falou: "cara, estão noticiando 20, 30, mas são centenas de mortes". Comecei a ligar as rádios para saber como estavam as coisas - e acrescentou:

- Quando deu umas 7h, decidi transferir a rodada. Foi um dos piores momentos da minha vida, de todos nós, não tinha condições de organizar nada, de ter futebol - completou. 


As partidas previstas para o domingo, dia 27 de janeiro, foram remarcadas para uma Quarta-Feira de Cinzas (dia 13 de fevereiro).

A tragédia também mudou planos do Governo Federal, da Fifa e do Comitê Organizador Local (COL) em relação a eventos para promover a Copa do Mundo de 2014. As festividades dos 500 dias para a Copa do Mundial, previstas para o dia 28 de janeiro, foram adiadas. Além disso, o lançamento do pôster do torneio também mudou de data.

EM SANTA MARIA, LUTO E MUITA CAUTELA

Boate Kiss
'A tragédia é um abalo para nós até hoje ', afirmou Luiz Claudio Mello, ex-presidente do Inter-SM (Divulgação

Em meio à amargura, não faltaram momentos de solidariedade. Presidente do Internacional de Santa Maria naquele ano, Luiz Claudio Mello recordou.

- A cidade se uniu muito em prol de ajudar as vítimas. Ofereci inclusive as dependências do clube - afirmou, ao L!.

À medida que as investigações do incêndio expuseram falhas na Boate Kiss (falta de ventilação no ambiente e de saídas de emergência, extintores de incêndio vencidos, o que tornaram a fuga das pessoas impossível), os clubes da cidade também tiveram de passar por vistorias para renovação de alvará do Corpo de Bombeiros. 

- As exigências foram bem rigorosas. Abrimos mais portões, rampas de acesso dos dois lados...  O desafio foi grande, mas a gente entendeu que era um cuidado maior. As imagens do incêndio também ficavam na nossa cabeça. A tragédia é um abalo para nós até hoje - afirmou.

As investigações apontaram que o incêndio na Boate Kiss tinha começado no decorrer de um número do show da banda Gurizada Fandangueira. O vocalista da banda, Marcelo de Jesus dos Santos, fez uma apresentação com pirotecnica por meio do uso de um sinalizador que solta faíscas brilhantes, chamado sputnik.

Os fogos no interior da boate chegaram a uma espuma de isolamento sonoro no teto, espalhando fogo que passou a expelir fumaça tóxica, com componentes como cianeto, o que levou à morte por sufocamento de boa parte das vítimas. 


DEZ ANOS DEPOIS, INTER-SM AMPLIA ESTRUTURA

Estadio Presidente Vargas
Inter-SM tenta ajustar obras do Estádio Presidente Vargas (Arquivo)

Passados dez anos, o Inter-SM reflete como o futebol local sente as feridas pelo incêndio que aconteceu na Boate Kiss. Atual mandatário do clube, Pedro Dalla Pasqua detalhou como tem sido a rotina em Santa Maria.

- Trata-se de uma ferida imensa e, a cada ano, a gente vai aceitando o que aconteceu. Agora é uma data emblemática por causa dos dez anos da tragédia, mas vem o sentimento de indignação com o julgamento - disse.

Quatro pessoas, Elissandro Callegaro Spohr (sócio da boate), Mauro Londero Hoffmann (sócio da boate), Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista da banda Gurizada Fandangueira) e Luciano Augusto Bonilha Leão (auxiliar e produtor musical da banda e responsável por comprar os fogos de artifício) chegaram a ser condenados em dezembro de 2021. No entanto, em agosto de 2022, o julgamento foi anulado por dois votos a um na 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça.

O dirigente do Internacional de Santa Maria contou uma curiosidade em relação a como eram a rotina dos jogos.

- O Inter é um dos representantes daqui e, como Santa Maria sempre tem muita gente que vinha para estudar, era comum ver esses universitários em jogos aqui no Estádio Presidente Vargas. Foi bem doloroso para gente tudo o que aconteceu. Tanto que prestamos homenagens sempre - disse.

O Dinossauro emitiu em suas redes sociais uma nota de luto pelas vítimas da tragédia na Boate Kiss nesta sexta-feira (27).

Pasqua contou como o abalo em torno da cidade atingiu níveis muito fortes.

- A cidade ficou por muito tempo sem entretenimento. Boates e bares fecharam. Não havia clima nem para ver futebol. Até ao voltar a ir se divertir, cada um de nós começou a ficar atento nos ambientes. A gente via se tinha saídas de emergência, extintores, locais para fugir... Foi um trauma muito grande.

O presidente do clube alvirrubro ainda descobriu uma situação inusitada.

- Soubemos que alguns jogadores deixaram de aceitar proposta nossa por sermos de Santa Maria. Tudo por conta de ser a cidade onde aconteceu a tragédia...

Passados os desafios dos primeiros anos, Pedro Dalla Pasqua afirmou que o estádio tem maior organização para receber as partidas do Inter-SM.

- Foram feitas obras para aumentar a segurança em todos os lugares. Corrigimos os desníveis que tinham nas arquibancadas do Presidente Vargas. Há cuidado com a acessibilidade. Tivemos de reduzir a capacidade para 6,5 mil pessoas, mas aumentamos o cuidado. Fizemos adaptações, temos hoje barras de segurança antipânico. É uma força nossa - e ressaltou:

- Em campo, temos um projeto ambicioso para voltar ao nível estadual. Investimos bastante e agora vamos lutar na Divisão de Acesso - finalizou.

RIOGRANDENSE: PERÍODO DE LUTA E DIRIGENTE COM HISTÓRIA COMOVENTE

Riograndense - Estádio dos Eucaliptos
Estádio dos Eucaliptos ainda precisa de ajustes (Reprodução / Facebook Riograndense Futebol Clube)

O posto da presidência do Riograndense atualmente é ocupado por quem vivenciou de perto as angústias daquela trágica madrugada em Santa Maria. Maria de Lourdes Pinto Trindade é pediatra, mas também teve de lidar com a calamidade que tomou conta da cidade gaúcha dez anos atrás.

- Foi realmente um momento muito difícil. No meu plantão, eu via aqueles jovens correndo, a chegada de pessoas feridas. Depois os pais vinham à procura dos filhos... A gente chegou a ajudar no socorro o máximo que pôde, era muita gente chegando. Tivemos que consolar muitos pais. Auxiliamos as pessoas e consolamos muitos país - e destacou:

- Lembro de um rapaz que tinha ido à boate e estava aqui em Santa Maria viajando para ficar perto da namorada. Ele voltou ao hospital e quis agradecer a médica por ter salvado a vida dele. Contou que ficou intubado. Infelizmente, não consegui ajudá-lo, mas disse a ele: "não importa, você foi escolhido"  - completou. 

A presidente do Riograndense revelou que lidou com um estigma ao ir para outras cidades.

- Era bem complicado no começo. Eu falava que era de Santa Maria, e perguntavam "ah, a cidade do incêndio?" ou associavam "a da tragédia". E vinham as lembranças todas... - disse.


Mandatária do Periquito desde 2020, a Doutora Lourdinha herdou um clube cheio de dívidas e também lidando com desafios para reabrir o Estádio dos Eucaliptos ao público. 

- A gente conseguiu alvará da Brigada Militar em relação a extintores de incêndio, que têm revisão feita a cada seis meses. Além disso, o gramado é acessível. Há gramados acessíveis, câmera de segurança. Temos de resolver questões ligadas a asfalto no entorno do estádio - disse.

O clube inaugurou um pavilhão do seu estádio com o nome de Rei Pelé.

Torcedora declarada do Riograndense, ela contou que teve de fazer um sacrifício em nome dos ajustes no estádio.

- Não temos o futebol profissional (o clube está inativo desde 2019 em suas atividades profissionais) e também não tivemos condições de fazer o sub-20. Temos as equipes sub-15 e sub-17, de qualquer forma.  Mas mantemos o futsal, futebol de 7 e as demais equipes de categorias de base... Queremos investir nas crianças e oferecer estrutura boa para eles.   

Boate Kiss
Escombros da Boate Kiss: noite trágica em Santa Maria (Divulgação/ Policia Federal)

As dores da tragédia da Boate Kiss permanecem. Mas o esporte se mostra solidário e clubes locais redobram sua atenção para páginas tristes como estas não se repetirem.

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