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Lúcio de Castro: O país dos Rest Avec está na Copa do Mundo

O sequestro econômico e o alto preço da altivez

Haiti volta à Copa do Mundo coluna Lúcio de Castro
imagem cameraHaiti está classificado para a Copa do Mundo (Foto: Divulgação / Concacaf)
Autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, esse texto não reflete necessariamente a opinião do Lance!
Dia 21/11/2025
07:00

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"Rest avec vous". Ou somente "Rest avec".

Algo como "fique com você".

Olhando assim, parece até poético. Mas por trás da expressão, há um tanto de tragédia e dor.

A tragédia e a dor de uma nação.

É o Haiti, que na semana que vai acabando se classificou para a Copa do Mundo do próximo ano. Sem atuar no Sylvio Cator desde  julho de 2021, os Grenadiers fizeram o milagre. Exatos 52 anos depois de disputarem a primeira Copa.

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Classificado, e no entanto, com seus cidadãos de entrada proibida desde a chegada de Donald Trump ao poder. Muito mais do  que futebol...

"Rest avec" são as crianças que sobram. A sobra. Aquelas que a família não tem condição de sustentar. E na escolha entre os filhos  que irão para a escola e os que irão apenas trabalhar desde muito cedo, se transformam nos "rest avec".

Num país com 11,7 milhões de habitantes, 60% abaixo da linha da pobreza e 29% em extrema pobreza, vivendo com menos de  US$ 2,15 por dia, de acordo com dados do Banco Mundial, não é difícil concluir que são muitos rest avec. Os excluídos entre os  excluídos.

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O mundo também vê o país como um rest avec. A despeito da gloriosa, heroica e absolutamente singular história de um povo.

Protagonista da revolução que marcou a única revolta de escravizados que resultou na fundação de um estado independente. A  primeira das Américas. Humilhando a França de Napoleão.  

Sob o signo de Dessalines, o general que veio depois de Toussaint Louverture. "Virei minha espada contra a França, pela vingança  dos meus irmãos. É necessário que um dos dois, França ou Haiti, desapareça".

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Não aconteceu. E o preço da altivez que até hoje tanto custa foi muito alto.

Pela ousadia, submetida a pagar por décadas uma imoral indenização para a França, que amarrou o destino do país. Uma  compensação pelas "propriedades perdidas". O que incluiu escravizados libertos.

O estrangulamento de uma economia que nascia. O resgate por um sequestro.

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Tragédias por todos os lados

O que veio depois e nos nossos tempos não foi e não é tão diferente.

As tragédias foram se sucedendo. Nem mesmo as naturais foram tão naturais assim em suas consequências. Diante da tragédia humanitária, o mundo resolveu pagar com invasão. Intervenção militar.

Armas, soldados e quarteis para quem tinha fome, sede. E precisava de saúde e educação.

Ao preço de aproximadamente US$ 600 milhões por ano, a ONU enviou tropas em vez de médicos e professores. De técnicos em  agricultura. Era a Minustah.

Por mais de uma década. Entre 2004 e 2017.

Formada por tropas brasileiras.

E mais uma vez nossa imprensa falhou miseravelmente, salvo as boas exceções de sempre.

Como quem ia a um piquenique ou a um safári, jornalistas brasileiros foram a Porto Príncipe nesses 13 anos tendo a Minustah  como anfitriã. E pelos olhos deles reportavam.

Haitianos comemoram classificação da seleção para a Copa do Mundo de 2026
Haitianos nas ruas comemorando a classificação da seleção para a Copa do Mundo de 2026 (Foto: Clarens Siffroy / AFP)

Quem leu o que aqui se produziu nesses anos, imaginou que uma nação foi refundada. Em paz, sob controle. Mais um cadáver insepulto no nosso armário jornalístico.

Num outubro de 2017, como chegou, a Minustah partiu. Sem legado de educação, sem saúde. E sem segurança, depois de US$ 7 bilhões gastos. Salários, logística. Nada que tenha ficado por lá.

Uma tragédia humanitária renitente que não dá margem nem aqueles que gostariam de pregar o sucesso da intervenção militar no Haiti ousariam.

Há tragédia por todos os lados, por onde quer que se olhe.

Depois das tropas, a tempestade perfeita. Crises convergem de tudo quanto é lado.

Uma catastrófica crise humanitária combinando fome, deslocamento e falta de acesso a serviços básicos. Desemprego massivo e  dependência de remessas do exterior. Indicadores socioeconômicos que refletem não apenas pobreza, mas um colapso sistêmico.

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Treze anos e US$ 7 bilhões depois...

O controle territorial segue com grupos criminosos em 80% de Porto Príncipe e nas rotas-chaves para o interior do país. É a  mesma ONU que definiu a intervenção militar como remédio entre 2004 e 2017 que veio a descobrir e publicar isso em 2023.

A taxa de homicídios explodiu com as mais de 2.500 mortes somente no primeiro trimestre do ano passado. A segurança  colapsada, com as gangues paralisando a economia. Assim como a vida do cidadão.

A "mano dura" não mudou o colapso político que segue nas instituições fracas ou inexistentes.

As tragédias se sucederam.

Primeiro, o sufoco alimentar provocado.

Pressionado pelos Estados Unidos de Bill Clinton ali pelos anos 90, o Haiti reduziu a tarifa sobre o arroz americano. De 50% para 3%. Os produtores do Arkansas agradeceram. Os haitianos, nem tanto. De uma situação de autossuficiência para a dependência, foi  um pulo.

As consequências totalmente desastrosas. Quase um golpe final a quem já padecia. Milhares de camponeses foram obrigados a sair do campo para Porto Príncipe. Absolutamente empobrecidos, em desespero, construíam residências frágeis, engrossavam as  favelas como Cité Soleil, chegando aos 300 mil habitantes.

Quando o terremoto de 2010 varreu o Haiti, foram esses em suas residências precárias as primeiras vítimas. Estimativa de 200 mil mortos, 300 mil feridos, 1,3 milhão de desabrigados, disseminação de doenças.

Camile Chalders, sociólogo, professor da Universidade do Haiti, definiu a Minustah assim na ocasião: "Uma presença militar de  nações unidas através de 12 mil soldados e policias, gastando milhões de dólares ao ano em um país onde estamos em situação de  pobreza extrema, e essa pobreza se agravou depois do terremoto. A gente perdeu tudo, houve desestruturação total do setor  formal, desemprego. Há um contraste entre tudo isso e os gastos militares, as necessidades do povo. O que é chocante é que  quando se vê os objetivos dessa força, proclamados na resolução 1542 da ONU, diz-se que o primeiro seria estabelecer clima de  segurança, depois estabelecer eleições democráticas, e terceiro era sobre os direitos humanos. Sobre essas três frentes, um  fracasso total".

Daquele país do ditador sanguinário Baby Doc que chegou à Alemanha em 1974 para a Copa, ao país cada dia mais rest avec do  mundo, 52 anos se passaram e nada mudou nessa vida severina dos haitianos, o povo que ousou ser livre.

Mas seja lá o que vier a acontecer, já é a maior história da próxima Copa do Mundo.

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