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Lúcio de Castro: Plata, os abutres, o jornalismo-manja e a iminência de uma tragédia

O esvaziamento da ética no jornalismo em nome da monetização

Árbitro expulsa Gonzalo Plata em Racing x Flamengo
imagem cameraÁrbitro expulsa Gonzalo Plata em Racing x Flamengo (Foto: Luis Robayo / AFP)
Autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, esse texto não reflete necessariamente a opinião do Lance!
Dia 14/11/2025
07:00

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Os abutres voltaram.

Com fome. A temporada dos devoradores de carne humana, de alma, de ética e de princípios está aberta novamente. Por algum tempo andaram quietos. Mas estavam só a espreita. Esperando a próxima vítima, as próximas presas. Paparazzi multiplicados em milhares com o advento das redes sociais. No fim, um mesmo intuito: a mercantilização da intimidade. A dimensão humana de quem é alvo sendo esvaziada, reduzida a objeto de entretenimento para as massas.

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Tudo pela monetização. Ontem e hoje. Agora com a mágica do algoritmo. E do aumento de "seguidores" que vai gerar o milagre  do lucro. A qualquer preço.

Não só mais na figura do jornalismo, mas agora também fracionados em centenas de "influencers". Ou candidatos a. Nos grandes veículos de imprensa e também em qualquer arroba.

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Plata, o alvo da vez

A semana que passou foi pródiga.

O dedo apontado para o alvo da vez: Plata. E as lentes. Suficiente para o início do linchamento. E de vergonhosos debates em  programas e afins.

A pauta que nunca deveria ter sido. A alimentar o ódio.

Existiam motivos suficientes dentro das quatro linhas para a crítica. As expulsões infantis comprometendo o trabalho coletivo, o  debate sobre compromisso a partir daí. Mas os abutres querem sangue. E cliques.

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Como justificativa, a cidadela da moralidade, dos bons costumes, valores e práticas. No fundo, tudo por dinheiro. "Monetizar".  O argumento de que "atletas tem obrigações, que seu corpo é o instrumento de trabalho, etc" como fachada.  No fim, parece que Gay Talese estava muito certo sobre os abutres: são apenas "caçadores de corpos".

Muito longe de ignorar que sim, "atletas devem ter uma vida regrada, que o descanso...", toda aquela sorte de argumentos que  conhecemos. Verdadeiros. Não nesse contexto dos abutres. Mas verdade mesmo é que nunca quiseram nenhum debate sério.  Senão apenas legitimar o ilegitimável, a busca desenfreada pela monetização.

O início do engodo e da farsa dos imorais argumentos parece estar embutido em uma questão semântica. E aqui não há espaço  para ingenuidade: a confusão não é sem querer, obviamente. Ela está ali para justificar a aberração.

Ao se definir que um atleta (ou artista, seja lá o que for) com notoriedade é uma "pessoa pública", está legitimado o escrutínio de  sua vida e conduta.

Mas não são. Celebridades, famosos, artistas, jogadores, são tão somente "pessoas com exposição pública". O que é muito  distinto de ser uma "pessoa pública". Ainda que os próprios alvos muitas vezes adorem evocar tal condição, não são.

Protegidos em seu direito à intimidade pela constituição como qualquer cidadão. Eventuais nuances à parte, há o consenso de que  o fato de ser famoso não anula o direito à intimidade de alguém que não tem cargo republicano. Assim como nenhum famoso está  alcançado por Lei de Acesso à Informação apenas por ser famoso, ao contrário da verdadeira "pessoa pública".

Pessoa pública, no sentido original e propositalmente distorcido e tirado do contexto para legitimar a escroqueria, é aquela ligada  à "Res Publica", ou seja, a "coisa pública".

Em bom português portanto, "pessoa pública", em sua acepção original, é quem ocupa uma função na Res Publica. No estado. Um  agente detentor de um pedaço de poder que deve gerir esse espaço em nome do bem comum. No legislativo, executivo ou  judiciário.

Ao aplicar a expressão "pessoa pública" a alguém com exposição pública mas que não tem tais obrigações republicanas, está feita  a mágica, o significado original esvaziado.

Quando naturalmente a visibilidade desse atleta, artista, seja lá o que for, decorre da sua atividade privada, seja jogar, atuar,  cantar, etc. Muito mais do que a visibilidade: a renda dessa pessoa. A diferença é brutal e definitiva: a renda de alguém com exposição pública decorre apenas do que ela fez para chegar a fama. Já a pessoa com obrigações republicanas enfrenta uma  condição jurídico-institucional. E portanto, com obrigações que a outra não tem.

O argumento seguinte é conhecido de cor: a pergunta desafiadora sobre se esses atletas então não devem ter cobranças. Sim,  devem. Pelas suas instituições. Pelo cumprimento dos horários marcados, ou até mesmo por alguma quebra em contrato de imagem. O que não é o caso.

Ou cobrados também pelo torcedor. Sim, na arena de competição. Por queda de desempenho, ou no resultado da equação entre  o que recebe e o que entrega. E sim, ter vida de atleta condiciona todas essas outras variantes. Mas a cobrança tem que ser pelo  que pode ser mensurado. Nos treinos, jogos, rotina e obrigações. Não pelo que faz na folga. Se o que faz na folga atrapalha as  variantes anteriores, é simples: cobre pela queda dessas variantes. Cobre, afaste, demita. Por isso. Não diretamente pelo que faz  na folga.

Mesmo que um seja consequência do outro.  

Em resumo, se alguém não tem sido fiel aos preceitos necessários da vida de atleta, a conta chegará em forma de queda de todas  essas variáveis. E então deve ser cobrado por isso. Não com a exposição do que está fazendo na vida privada.

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Plata foi expulso em Flamengo x Estudiantes (Foto: Pabloo Porciuncula / AFP)
Plata foi expulso em Flamengo x Estudiantes (Foto: Pabloo Porciuncula / AFP)

Lesa-jornalismo

Para o jornalismo é uma questão mais grave.

Ignorar tudo isso é pecado de lesa-jornalismo.

O pecado de transformar pessoas no espetáculo em si, pronto a ser devorado. E dela produzir mercadoria. O produtor de tal conteúdo talvez ignore, mas a degradação é mútua.

Ao jornalista cabe o dever da boa informação. De informar que o rendimento caiu no treino, no jogo, buscar a informação sobre  desempenhos, respaldar a notícia em números. Mas jamais o que alguém estava fazendo na sua sagrada folga. Seja o que for.

Nesse sentido, o bom jornalismo consagrou permitir a expansão desses limites em cima de registros públicos. Existe um "boletim  de ocorrência", o bom e velho "B.O"? Ok, temos notícia além do que fulano estar em tal lugar. Temos alguém do empregador falando em on e aplicando eventual punição? Ok.

Não é de hoje.

Há alguns anos, o que batizei de "jornalismo-manja" seguia o atacante Fred, então no Fluminense, em bares e boates. Publicava o valor de suas contas, o que ele consumiu. Para delírio do coliseu.

E tome-se debate. Muitas vezes com o cinismo do "não tenho nada a ver com a vida alheia. Mas...".

A irresponsabilidade do jornalismo teve consequências. Fred chegou a ser perseguido de carro na noite por torcedores. Flertou-se  com a tragédia. Como está se flertando novamente.

A tragédia que mudou o jornalismo no Reino Unido

No Reino Unido, foi necessário um corpo ser entregue para finalmente mudar a perspectiva do jornalismo que legitimava a  exposição das relações humanas transformadas em commodities. Em lucro. E na agora palavra da vez e maldita, a tal  monetização.

Não é preciso recontar aqui o drama de Lady Di.

Personagem predileta dos tabloides, a vida devassada pelo abjeto lucro alheio.

Foi preciso a tragédia de 31 de agosto de 1997, da morte fugindo de paparazzi, para que o choque impusesse o fim da barbárie em  forma de flashs.

Um grande debate se impôs na imprensa inglesa. Os tabloides passaram a ser encarados como coisas mórbidas, sujas. O que de  fato eram. Novas noções de privacidade emergiram na sociedade, pressionaram o jornalismo.  

A morte de Diana gerou na Inglaterra a "Lei de Proteção contra o Assédio". O remédio contra a sordidez do que antes legitimava a  exposição.

O "jornalismo-manja" tem consequências mais profundas: opera a despolitização do espaço público e do próprio debate.

Enquanto isso, segue o pecado maior da cumplicidade das redações e seus comandos com o malfeito, com a cartolagem por anos  a fio a lesar o esporte em diferentes foros. Tudo isso fica fora da pauta. Amordaçado pelo jornalismo de cócoras. Ao contrário do  "jornalismo-manja" que segue firme e forte. Multiplicado na era dos cliques.

E assim, enquanto o jornalismo-manja se preocupava com caipirinhas ou sambas, dezenas de cartolas e seus escândalos passaram  impunemente nesta avenida.  

E assim vivemos no Brasil uma década de grandes eventos, com suas contas rotas, os milhões que sumiam, e nenhuma força tarefa especial montada em redações para cumprir o único papel que cabia. Debatendo o número de caipirinhas do atacante lá  atrás, debatendo a que horas o atacante de agora chegou no samba no domingo de folga...  

Traição maior não pode haver ao princípio básico do ofício, de fiscalizar o poder, poderes e poderosos. No lugar disso, a opção por  manjar a vida alheia. Não é o acaso. É uma opção deliberada. Política.  

Enquanto isso, no escurinho, nos bastidores, beija-se o cartola malfeitor, reúne-se com a cartolagem e se afina a pauta. E se  persegue qualquer voz dissidente da pauta dos contentes.

Aquele 31 de agosto de 1997 não está tão distante. Basta constatar as reações na semana que passou. Ódio, o clamor pela palavra da vez, o "apavoro" para intimidar o atleta flagrado em seu dia de folga. Uma violência que já esteve perto de escalar para a tragédia.

Ainda dá tempo de recolher os abutres. Antes que uma tragédia aconteça. Já basta a tragédia dos debates imorais e da defesa de  uma modalidade vil tão praticada por aqui: o "jornalismo-manja".

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