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Lúcio de Castro: Filipe Luís escancara o tamanho do nosso buraco. Na bola e na imprensa

O ano que vai indo embora tem uma grande notícia no futebol brasileiro: Filipe Luís.

Filipe Luís Flamengo Palmeiras Libertadores
imagem cameraO técnico do Flamengo, Filipe Luís (Foto: Luis Acosta / AFP)
Autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, esse texto não reflete necessariamente a opinião do Lance!
Dia 19/12/2025
07:00

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O ano que vai indo embora tem uma grande notícia no futebol brasileiro: Filipe Luís.

Não parece difícil afirmar sem medo de errar: a maior delas.

Num cenário paupérrimo e indigente de treinadores, salvo para quem insiste em fazer média ou tapar o sol com a peneira, a boa nova é alentadora.

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Estamos falando de um futebol em que foi preciso um português atravessar o Atlântico em 2019 para nos atualizarmos minimamente e apresentar por esses campos daqui o mais básico "perde e pressiona".

Já tratei muito sobre essa indigência. E minhas hipóteses para ela.

Inclusive nesse Lance!, em coluna do dia 19 de setembro com o sugestivo título "Vexame, vergonha, fracasso, e, porque não dizer, um tanto de tragédia".

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Como escrevi e disse tantas vezes, ninguém atravessa uma ditadura onde não garantir educação para todos foi um projeto. E aqui não falamos de opiniões e sim de números, visto que esse projeto, a partir do general Castelo Branco, eliminou a anterior obrigação de 10% do PIB aplicados em educação. E em uma década esse percentual para educação tinha caído pela metade, indo a vergonhosos 4,3%. Embalados na alegoria do "eu te amo meu Brasil".

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Nenhum setor da sociedade passou incólume ao sucateamento da educação durante a ditadura. Com treinadores não foi diferente.

Filipe Luís, além de ter nascido já no ocaso desse projeto, exatamente no ano terminal, 1985, vem de uma classe média que conseguiu, ao contrário da massa e da grande maioria dos jogadores, se proteger um pouco disso.

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O resultado direto disso é a possibilidade de termos não apenas um mero "estudioso". Um repetidor de fórmulas, quase um papagaio tático no banco de reservas. Mas sim um formulador de ideias. De novas ideias de futebol. De ideias próprias.

Não bastasse tudo isso, sua personalidade tem as singularidades que distinguem e separam os grandes. A obsessão provavelmente a maior delas.

Olhando assim para o treinador do Flamengo, é fácil perceber o quanto de obsessivo existe ali. Nesse caso, no melhor dos sentidos.

Uma obsessão que chega a transtornar.

O que também é facilmente identificável em Filipe Luís.

Nos cacoetes sistemáticos nas coletivas. Sempre os mesmos.

De alguém que sai de um jogo absolutamente vazio e descarregado de todas as energias. Que ficaram ali, na beira do campo.

Não em gestos espalhafatosos ou gritos jogando para torcida. Ou em agressividade com jornalistas. Mas no mergulho profundo da mente absorta em mil frentes diferentes naquele momento.

Os mais atentos certamente já repararam: não existe uma coletiva em que Filipe Luís não se perca entre a pergunta e a resposta.

Porque na verdade, não por falta de educação, mas por mente atormentada, a bem da verdade, a cabeça não está ali.

Quem conhece tipos assim sabe que na cabeça dele ainda estão passando lances do jogo, repassados online em obsessões sobre o que poderia ter feito melhor em determinado momento.

Chega a ser quase curioso e quase perverso ver Filipe Luís nas coletivas, lutando contra seus pensamentos que seguem no jogo ou talvez até já em um treinamento para determinada situação ou em algo que virá.

Quem leu os livros de Guardiola sabe do que estamos falando aqui. (Obviamente não estamos fazendo comparações entre treinadores e sim de comportamentos, identificando tipos).

Alguém mais atento a essas características certamente já viu muitos traços de Bernardinho em alguns desses comportamentos de Filipe Luís. Cada um ao seu modo, mas o perfil obsessivo e perfeccionista em comum.

Geralmente são pessoas de difícil convivência, quanto mais ainda para seus grupos. Pelo tanto que exigem.

Também para os mais próximos.

Pelo tanto que são quase monotemáticos.

Capazes de te deixarem falando sozinho porque a cabeça já não está ali e ele já anota um atídoto que viu para algo que viveu em uma partida e o incomodou enquanto você fala. Ou um novo treinamento, uma nova solução.

Minhas lembranças voam para o Mundial de Vôlei na Argentina, em 2002, o primeiro título do supertime que viria a ser uma das maiores equipes do esporte coletivo mundial de todos os tempos, a máquina montada por Bernardinho.

Eu estava na cobertura do mundial, repórter novato. Gostava de, durante a madrugada, olhar pela janela do meu quarto de hotel para o quarto onde sabia que o treinador estava. Só para constatar: a luz estava sempre acesa. Até altas horas. E logo cedo ele já estava no treino.

Ainda sabemos pouco sobre Filipe Luís

Depois ficávamos sabendo que o treinador passava pela milésima vez por uma posição do jogo, por um plano, ou lendo algo sobre equipes.

De Filipe Luís ainda sabemos pouco sobre o comportamento, hábitos, interlocutores, leituras, conversas.

O que mostra também a indigência, salvo as boas exceções de sempre, da nossa imprensa esportiva, se me permitem a breve digressão.

Afinal, como é possível imaginar que um ex-jogador consagrado vira técnico do time mais popular do país, e em pouco mais de um ano, enfileira tudo que é título desde o mundial sub-20 até a Libertadores, mostra tanta coisa diferente em cenário deserto, e não temos ainda um único grande e minucioso perfil feito sobre ele?

E já nem cabe a desculpa da falta de acesso. Desde que Frank Sinatra ficou resfriado em 1966 e Gay Talese escreveu quase 30 páginas sobre ele sem trocar uma palavra com o perfilado, desculpas não são permitidas.

E, repare, já nem falo aqui da utopia em termos por aqui algo próximo de um jornalismo investigativo sistematizado na área de esportes. O tempo na janela, a realidade dos fatos e os grandes interesses nesse jogo já não me pemitem devaneios juvenis de acreditar que um dia teremos jornalismo investigativo em esportes. Esse couro lanhado mas ainda não cansado de guerra sabe que é preciso sonhar sempre mas jamais se enganar.

Encerrando a digressão que me tirou em breves linhas de Filipe Luís e já voltando a ele, saindo do asterisco para falar de jornalismo, como é concebível imaginar que algo tão diferente como o jovem treinador surge nesse cenário e não existiu sequer tal curiosidade, para não dizer obrigação de saber mais profundamente sobre ele.

Afinal, o que ele lê? O que ele vê de filmes? São só sobre futebol, liderança? Com quem ele divide resenhas próximas? Com quem divide as lascas de queijo com champagne como Guardiola fazia nos pós-jogo para liberar suas tensões e falar mais ainda sobre o que acontecera ali em 90 minutos? Quantos jogos ele Luís assiste por semana, quais? Com quem conversa no centro de treinamento? Vai lá na turma do departamento de análise ouvir, buscar informações?

Esse sujeito, como sabemos, foi obsessivo e metódico suficiente para anotar todos os treinos de Jorge Jesus porque sabia exatamente o que iria fazer e o que queria. O que mais tem nesse baú?

Poucas vezes vimos alguém encerrar uma carreira de futebol e, em meio a sua quase timidez que vai metralhando algumas palavras, avisar que sabia exatamente o que queria, aonde ia chegar, como ia chegar.

Não fez uma concessão. Simeone, Jorge Jesus? Ok, máximo respeito sempre nas entrevistas. Mas ele tinha o plano dele. Com nome e tudo. O "futebol em progressão". Por Filipe Luís. Implementado em meio ao caos do calendário brasileiro.

Encerramos o ano sem ler esse perfil. O fracasso é nosso. Sigamos nos alimentando das migalhas dos cliques, das fofocas e do que pouco importa.

Essa mente tão curiosa e o comportamento tão singular em suas obsessões que deveriam despertar muito mais interesse além do campo e bola.

Em um cenário tão afeito a comissões técnicas regidas pelo compadrio, contratações de auxiliares por laços de família ou amizade, nosso personagem deixa claro que o requisito para estar ao seu lado é a excelência. O que considera de excelência para a parte tática, quem confia para a bola parada, e assim vai.

Além de obsessivo, um sujeito meio diferente mesmo, quase esquisito, assim parece de longe. Num meio onde o pagode e o sertanejo reinam, vira e mexe aparece com umas camisas de rock. Até de rock pesado. Vejam a riqueza desse personagem, essa provável avis rara do futebol.

No tempo de jogador, se jogava na resenha mais banal ou era figura à parte do grupo?

É tanta pergunta. A pobreza do dia a dia que vai engolindo nossas redações, a ditadura dos cliques, as gerações que vão se sucedendo sem maior culpa por isso, vítimas da ausência de referências no dia a dia para que cresçam no ofício com o que Gabo chamou de "a palpitação sobrenatural da notícia"… Tudo isso faz com que tenhamos chegado até aqui sem saber o que de fato interessa sobre o grande personagem que surgiu na nossa frente e passa batido, muito além das resenhas sem sal do dia a dia.

E, pouco importa, mas se alguém acha que aqui está se escrevendo uma ode, chegou até aqui sem entender nada. É a curiosidade, estúpido. E a angústia pela percepção de como viramos tão óbvios.

É possível que no fim de tudo, ao saber de tudo, eu nem tenha tanta admiração pelo personagem. Por outras tantas razões ou subjetividades. Ou redobre essa admiração. Mas isso é o que menos importa. O surreal é chegarmos até aqui, diante de algo que arrombou a porta do futebol nesse 2025 sem saber nada mais profundo sobre ele.

Como diria um velho jornalista ao virar sua última dose na noite e lamentar as mazelas do ofício: "a gente tá muito f…".

Filipe Luís Flamengo
Filipe Luís, técnico do Flamengo (Foto: Gilvan de Souza/Flamengo)

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