Gestão Esportiva na Prática: O lado invisível da voz do torcedor
A ascensão das redes criou pertencimento, mas também impôs pressa, superficialidade e julgamentos que ferem o futebol

- Matéria
- Mais Notícias
Quando o torcedor ganha voz, o futebol ganha vida. Porém, quando essa voz chega sem profundidade, o futebol perde a verdade.
Relacionadas
Na minha última coluna falei sobre a importância de trazer o torcedor para o centro da relação com o clube. Hoje quero olhar para o outro lado dessa transformação. Todo avanço carrega um risco. E no futebol brasileiro, esse risco já é visível todos os dias, em todas as telas. Se você não leu a coluna da semana passada, leia antes de continuar.
Da opinião à imposição
A democratização das redes deu ao torcedor algo poderoso: o "lugar de fala". Porém, a fala deixou de ser opinião e virou sentença. Perdeu? Demite o treinador. Empatou? O atacante não tem nível. Tomou gol? O zagueiro não presta. Não foi campeão? Gestão incompetente.

O tempo do futebol, que precisa ser lento, agora é atropelado pelo tempo das redes. Uma jogada vira debate de milhões de visualizações em minutos. Uma substituição vira dossiê. Uma coletiva vira polarização. Ou seja, a ansiedade virou análise e a impaciência virou diagnóstico.
➡️ Gestão Esportiva na Prática: leia todas as colunas
E os clubes, não raras vezes, passaram a reagir mais ao barulho do que ao planejamento.
A informação que não informa
O torcedor moderno consome futebol vinte e quatro horas por dia, mas de uma forma completamente diferente dos anos 90 e 2000. Vive num ambiente em que a verdade importa menos que a narrativa. Relatórios internos, dados de performance, planejamento de microciclos e processos de recuperação física viraram detalhes irrelevantes diante de um corte de vídeo de dez segundos.
Vejo isso diariamente. Um vídeo fora de contexto explica "o problema do time". Uma estatística solta vira prova definitiva. Uma fala incompleta condena um profissional. Para ganhar curtidas, suaviza-se o que é duro. Para ganhar seguidores, exagera-se o que é pequeno.
Não à toa, pesquisas recentes mostram que mais de 70% dos torcedores afirmam formar opinião sobre o desempenho de um treinador a partir de recortes de vídeos, não de jogos completos. É a era da análise superficial.
O linchamento digital e os alvos invisíveis
Treinadores e comissões técnicas convivem hoje com um fenômeno que vai além da pressão esportiva. É o linchamento digital. Não se criticam ideias, atacam-se pessoas. Não se questionam escolhas, atacam-se valores.
Reputações construídas em décadas se perdem em uma sequência ruim de três jogos. Já vi profissionais experientes, competentes e dedicados serem transformados em inimigos públicos em quarenta e oito horas. E quem promove esse ambiente, muitas vezes, nem percebe o dano humano que está causando.
A cada rodada, alguém precisa ser o culpado do algoritmo.
O risco de agradar o torcedor e a perda de identidade
Outro efeito colateral dessa nova realidade é silencioso. É a tentação de agradar. Atletas, dirigentes e treinadores sabem que qualquer discurso pode virar corte, meme ou combustível para críticas. E isso muda comportamentos. Muda escolhas. Muda, até mesmo convicções.
Decisões importantes passam a ser avaliadas pelo impacto nas redes, e não pelo impacto no jogo. E quando um clube começa a atuar para agradar o momento, perde o processo, o plano e a identidade.
O futebol não foi feito para gerar aprovação instantânea. Foi feito para sustentar ideias.
Quando todo mundo fala, quem realmente escuta?
Protagonismo do torcedor no futebol
O protagonismo do torcedor é irreversível e positivo. Eu acredito nisso. Mas transformar opinião em sentença, julgamento em conteúdo e barulho em critério é perigoso. Não apenas para os clubes, mas para o próprio torcedor, que passa a consumir um futebol cada vez mais distorcido.
➡️Torcidas organizadas do Santos repudiam ação da PM no jogo contra o Palmeiras
➡️Torcedores do Flamengo se irritam com fala de jogador do Fluminense: 'Depois reclama'
O ecossistema como um todo precisa aprender a navegar neste ambiente com maturidade. Escutar sem se submeter. Dialogar sem se curvar. Informar sem abrir mão da responsabilidade. Proteger seus profissionais sem blindá-los do mundo.
O torcedor precisa ser parte. Nunca carrasco.
O equilíbrio que precisamos reencontrar
O futuro do futebol está na conexão, não na contaminação. Está na confiança, não no ruído. Está no diálogo real, não na disputa de narrativas. O torcedor seguirá no centro do jogo. Mas o jogo não pode ser refém da ansiedade coletiva.
Se perdermos a capacidade de contar histórias verdadeiras, de contextualizar derrotas, de proteger processos e de respeitar as pessoas, perderemos aquilo que torna o futebol maior que o próprio resultado.
O protagonismo do torcedor é avanço. O colateral tóxico precisa ser enfrentado com coragem e lucidez.
Sem verdade não existe pertencimento. E sem pertencimento o TUDO perde sentido. Inclusive, o jogo.
Gestão Esportiva na Prática: veja mais publicações
Felipe Ximenes escreve sua coluna no Lance! todas as quartas-feiras. Confira outras postagens do colunista:
➡️O torcedor no centro do jogo
➡️ Espanholização reflete trabalho duro de Palmeiras e Flamengo?
➡️O novo vestiário do futebol: 30 empresas e um só clube
➡️O novo mapa de poder no futebol
- Matéria
- Mais Notícias
















