Transversal do Tempo: 40 anos que me separam de mim mesmo!
... e em minutos, após reposta a nova ordem mundial, iniciar o trote rumo à minha Lagoa de sempre.

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Tarde fria, de um meio de outono qualquer. Céu lascivamente azul, desligo o PC da azul IBM. Minhas pernas clamam por movimento, meu corpo implora por suor. Minha cabeça jaz quase inconsciente, pousada acima de meu tronco. Levanto-me de forma libertária, me visto em dois movimentos, coloco orgulhoso no pulso um relógio digital Casio (sim, o mundo analógico começava a perder força e sentido, naquele começo dos anos 80) que, além de me fornecer hora precisa à qualquer hora, ainda se dava ao luxo de ter um cronômetro digital, com memória! Eu me sentia um astronauta da NASA, daqueles que pisotearam a Lua com o desdém de quem pisa a guimba de um cigarro Minister, ou Hollywood, quando, ao final do treino, clicava orgulhoso a tecla lateral e iam aparecendo os tempos de passagem, quilômetro a quilômetro, numa vitória da tecnologia sobre o tempo!
Ok, relógio no pulso, tênis de treinos rápidos nos pés (hoje era dia de fartlek com um bando de insanos) um leve e veloz Tiger Pinto (um tênis muito usado entre praticantes de vôlei, e muito ousado entre praticantes de corrida), e deixava descansando o meu bom e velho Adidas TRX branco, para os treinos de rodagem e longos de fim de semana. O percurso era quase sempre o mesmo, caminhar até a banca de jornal, já na descida da rua Humaitá, discutir política, futebol e economia mundial, com o Seu Maneco, titular da banca e, provavelmente, ex- Secretário Geral da ONU, e em menos de um minuto, após reposta a nova ordem mundial, iniciar o trote rumo à minha Lagoa de sempre. Ao tocar o entorno da “grande poça” já encontro parte dos parças: mano Leo, Cuê e Sérgio. Mais adiante, na altura da esquina da Montenegro, que anos depois se transformaria na atual Vinícius de Moraes, avô do Tuca, ganhávamos a adesão do César e, às vezes, a do Jaime Gold (que de tanto amar a nossa Lagoa, perdeu a vida na Curva do Calombo, numa noite escura e triste).
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Já estamos no meio da grande reta de Ipanema, que é só nossa, e ainda podemos escolher o tipo de piso, asfalto ou terra, que luxo. Como sempre, nos empolgamos e apertamos o ritmo, a conversa cessa, apenas o arfar da respiração acelerada, e os impropérios direcionados, como de hábito, aos barcos das equipes de remo do Flamengo e Vasco, diversão pura, abaixo de 3’10 por quilômetro, para evitar retaliação das guarnições de remo, que ameaçavam sempre desembarcar na rampa de acesso, ali perto do Clube Caiçaras, e participarem da fase veloz de nossos treinos, ou talvez inventarem uma competição de Vale Tudo, nos tendo, esquálidos maratonistas, como sparrings de luxo!
Para evitar o massacre, aumenta-se o ritmo, 3’00 por km, e ninguém reclama.
Logo após o Caiçaras, dobramos à esquerda, Jardim de Alah, rumo à praia. Primeiro Leblon, ritmo mantido, mas a agonia começa a ser nossa nova companheira. Para evitar o piso duro do famoso calçadão e da inclinação criminosa da ciclovia, ousamos, ganhamos o cantinho espremido da pista da direita de rolamento dos carros. Ousadia que podia virar catástrofe. Ora, éramos jovens, imortais e…..idiotas. Fila indiana, ritmo forte, quase desumano, talvez pensando em minimizar os danos de um possível atropelamento por trás! Os “frescões” eram nosso pior pesadelo, mas não dava para pensar muito nisso, porque o Cuê e o Sérgio desgarraram lá na frente e estão nos deixando pra trás. Tá ficando bom! Olho a passagem do último quilômetro e já começo a duvidar da precisão do bom Casio, que por acaso só consegue marcar o passar do tempo. Ora, os monitores cardíacos e GPS ainda não foram inventados.
Quando conseguimos encostar nos dois assanhados, já passamos há tempos pelo Alberico, na esquina da Farme de Amoedo, e pelo Pier, onde ficam as famosas “dunas de Ipanema”. Agora, só falta o velho Barril 1800, lotado e o “eterno” Colégio São Paulo, que tenho certeza de que um dia será um enorme condomínio, como os da distante Barra da Tijuca. Mas, agora, entramos nos 500 metros sagrados do Arpoador, que bem podia ser fechado ao tráfego. Quem sabe um dia? É hora de tocar com as mãos na “charmosa” lona azul e branca do Circo Voador, pousado na pedra mãe do Arpoador. Esse outubro de 1982 promete!!
Tocamos na lona e iniciamos o retorno, camisa de algodão e short idem, encharcados. A brisa fresca nos acaricia e empurra de volta pra casa.
E, lá vamos nós. Nós? Cadê Sérgio, Cuê, César, Jacaré, Jaime? O mano Léo vejo ali na frente, se virando pra mim, abrindo os braços e o velho sorriso de rosto inteiro, dizendo “vou seguir por aí”, pra onde, meu irmão? Pra sempre, me responde, acenando com a mão aberta. Tolinho, eu, começo a entender sobre partidas e chegadas, e também que maratonistas não desaparecem assim, apenas alongam um pouco mais os longões de fim de semana. A solidão é nossa companhia.
Sigo só no meu retorno que, como num sonho, revela certas distorções da realidade. Além das ausências já citadas, a orla do Rio me parece estranha. Fala-se muito sobre o estado de torpor e euforia que a corrida proporciona. Será isso, que fez desaparecer os melhores bares de Ipanema? O píer que gerava ondas, e nos devolvia sobre elas até quase a areia? E as dunas do Pier? As dunas da Gal? Cadê a Gal?
Noto também que a quantidade, o estilo, e o ritmo das pessoas que correm são diferentes! Tem muito mais gente correndo, ou quase correndo, nesta minha, sei lá, transversal do tempo! São pessoas que correm devagar, carregam em seus pés verdadeiros tamancos holandeses de borracha mole e chamam de tênis de placa de carbono! Não largam algo similar a rádios de pilha portáteis, falam com eles e com seus…..relógios, que emitem sons diferentes, que mais parecem mini UTIs, cheias de bips. Eles se agrupam em tendas, vestem camisas e shorts de tecido alienígena, e tal qual cães São Bernardo no gélido Polo Norte, carregam sua própria bebida, em mochilas, serão neo Tuaregues que ganharam nossas costas, vindos da África?
Na minha deliciosa reta de Ipanema da Lagoa, já não consigo fluir na minha corrida, quantas dores e cansaço profundo carrego em minhas costas! Eu preferia a mochilinha Tuaregue. Mas o que não me deixa correr como antes, aqui nesse quilômetro sagrado é…. Meu Deus, parecem corpos largados ao chão num pós-batalha épica. Mas são….
… fotógrafos profissionais, registrando o ir e vir de centenas de corredores, que perdem muitas vezes mais tempo se preparando (vestindo os trajes, gadgets, tomando toda a lista de suplementos esportivos prescrita por um bom “influencer”) para a hora do treino, vulgo show time, do que verdadeiramente correndo!! Confesso que esta cena marcante deixou algumas sequelas em mim. Ver um enorme staff de fotógrafos deitados ao chão, pendurado em árvores e correndo ao lado de, de, hum, vá lá, corredores amadores, nem tão corredores, mas muuuito amadores.
É um povo, este interessante segmento de gente, que corre. Mas, pesquisas de mercado (nisso, mercado, eles são bons) garantem que a maioria não gosta de correr, do ato de correr! Não se sentem confortáveis quando, longe das fotos, dos coleguinhas de treino, nos treinos longos e solitários dos fins de semana, se confrontam com eles mesmos, e se perguntam: por quê? Porque correr é cool, porque a turma do trabalho tá lá, ou porque minhas redes sociais estão bombando, ou…
Passo, desviando, por uma tenda cheia de corredores, mesma camisa, short e sorrisos (as fotos, lembram), numa contida euforia social, e vejo a silhueta de uma pessoa, não, duas pessoas deitadas em 2 macas, como em um velório comunitário. Contrito, penso em perguntar o que houve, mas ao me aproximar vejo que são 2 macas de massagem, com fila enorme para o uso. Sorte a minha que já volto a ter espaço pra voltar a correr, na longa e sombria reta da Fonte da Saudade. Vejo que meu relógio Casio de teclinhas volta a ser um GPS + monitor cardíaco+ tocador de música +… Atravesso, a Fonte da Saudade (ah, se soubessem o que realmente é uma fonte de saudades) e já caminhando perto de casa, ao passar pela banca de jornal do Maneco, aceno saudoso para o seu filho, que continua firme, botafoguense, socialista e estudante de jornalismo, lá de dentro da banca, responde tirando o boné, que já foi de seu pai, há mais de 40 anos, hoje!
De alguém que ainda corre por aí!
Lauter Nogueira
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