Doença na infância, dificuldades e mais: veja as superações de Charles do Bronx até chegar ao estrelato no UFC

Hoje estrela no UFC, Charles do Bronx passou por uma infância repleta de dificuldades e viu no Jiu-Jitsu a chance de dar a volta por cima

Charles do Bronx
Estrela no UFC, Charles do Bronx teve infância marcada por dificuldades e superações (Foto: Divulgação/UFC)

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Principal estrela brasileira do UFC na atualidade, Charles do Bronx está prestes a encarar mais um grande desafio em sua carreira. No próximo sábado (22), em Abu Dhabi (EAU), o brasileiro vai disputar o cinturão peso-leve do Ultimate contra Islam Makhachev, na luta principal do UFC 280. Em meio a mais um momento decisivo na trajetória do lutador nas artes marciais, a TATAME preparou uma matéria especial sobre o faixa-preta de Jiu-Jitsu, que nos dias atuais, carrega o recorde de mais vitórias por finalização na história do UFC.

O Brasil é o país do futebol. Incontestável até bem pouco tempo atrás, esta frase vem perdendo força para outros esportes. E talvez a luta seja uma das novas paixões mais ardentes deste povo sofrido, que tem o esporte como um dos meios de ascensão social. Muitos atletas brasileiros saem das favelas - verdadeiras fábricas de talentos -, e ganham o mundo. Charles do Bronx representa fielmente as tortas linhas escritas acima.

A começar pelo nome que lhe deu fama e suplantou o Charles Oliveira da Silva, presente em sua certidão de nascimento.

“Bronx é porque é favela, né?”, explica Charles, acrescentando que em todas as competições que participava, cobravam que ele tivesse um apelido e a escolha acabou sendo uma consequência natural:

“Quando a gente ia lutar uns campeonatos de Jiu-Jitsu, sempre falavam 'olha os caras do Bronx aí, da favela’. Aí, coloquei Bronx”.

O substantivo próprio “Bronx” não faz parte da língua portuguesa, mas se adequa perfeitamente aos jovens brasileiros, pois dá nome a um condado em Nova York, onde é considerado o berço do hip-hop nos anos 1970 e um dos locais mais significativos do movimento negro dos Estados Unidos.

A família também não poderia ficar de fora da história do lutador, que nasceu e cresceu no distrito de Vicente de Carvalho, em Guarujá, no litoral paulista. Na infância, Charles do Bronx tinha o sonho comum das crianças brasileiras de ser jogador de futebol. Aos 7 anos, entretanto, começou a se sentir mal, tinha dores regulares no corpo e problemas para andar. Em alguns casos, não conseguia sequer mexer as pernas.

O menino foi diagnosticado com febre reumática e sopro no coração. As doenças afetaram gravemente seu tornozelo e o médico disse à sua família que ele poderia ficar paraplégico. Os problemas de saúde fizeram Charles desistir de ser jogador de futebol, mas provavelmente a luta pela vida tenha servido de inspiração para se tornar um campeão das artes marciais e para chegar onde jamais imaginou.

Depois de aproximadamente cinco anos, Charles do Bronx estava mais saudável e acabou conhecendo o Jiu-Jitsu, graças a um vizinho chamado Paulo. Foi ele que apresentou o garoto e o irmão Hermison a uma academia, que era comandada pelo professor Roger Coelho e oferecia aulas gratuitas para pessoas de baixa renda, por meio de um projeto social.

As dificuldades para botar comida em casa eram um problema para os pais de Charles. Dona Ozana trabalhava como faxineira numa escola e vendia lanches na rua para complementar a renda, enquanto seu Antônio dava duro num matadouro e nas feiras livres do Guarujá. Os dois não mediam esforços para manter o sonho do filho e chegaram a catar papelão e latas para complementar a baixíssima renda.

“A gente vendia o lanche para melhorar de vida um pouquinho. A gente vendia cachorro quente, x-salada, porção de linguiça, salsicha, pra acompanhar a cerveja. Porque a gente precisava comprar kimono, pagar a inscrição nos torneios. E nessa época eu falei 'e agora?'. Então começamos a catar papelão na rua, vender lanche, e assim foi indo”, disse a mãe do lutador do UFC.

A morte do vizinho Paulo, responsável por introduzi-lo ao Jiu-Jitsu, foi mais um duro golpe na vida de Charles do Bronx, que tinha 14 anos na época, quando o amigo morreu em um fogo cruzado em Vicente de Carvalho. Porém, tantos obstáculos não foram suficientes para barrar o sonho do menino, que jamais cogitou deixar de fazer as coisas que gostava, nem nos piores períodos de sua doença na infância.

O talento exuberante no Jiu-Jitsu logo chamou atenção e não demorou muito para ele conquistar seu primeiro campeonato. Pouco depois, foi campeão paulista na modalidade, que foi como um passaporte para, junto com o irmão, entrar na academia de Jorge Patino, mais conhecido como Macaco, que era lutador profissional da Arte Suave. Com o novo mestre, teve seu primeiro contato com o MMA, no qual venceu sua primeira luta em 2007.

Totalmente identificado com a nova modalidade, Charles do Bronx resolveu levar o MMA a sério. Ele só não imaginava encontrar um dos adversários mais difíceis da sua carreira: a mãe. “A gente não quer ver o filho batendo e muito menos apanhando, né?”, dizia Dona Ozana.

Apesar da resistência da mãe, não houve jeito. Escolhido de última hora para disputar o torneio “GP do Predador”, ele surpreendeu e conquistou logo em sua estreia o seu primeiro título no MMA profissional. O prêmio de 3 mil reais foi usado para ajudar a família e para comprar seu primeiro videogame.

O sucesso e a premiação motivaram Charles do Bronx a investir pesado no MMA. A falta de recursos para transporte e outras despesas mobilizaram vizinhos e amigos, que faziam de tudo para juntar dinheiro e viabilizar as lutas, pois sabiam que se tratava de um talento promissor. O esforço valeu a pena e logo veio a primeira competição fora do país, coroada pelo primeiro título, o Ring Off Combat, nos Estados Unidos, que revelou muitos lutadores para o UFC. O brasileiro derrotou Don Stanco, aplicando um mata-leão com três minutos de luta, e ganhou o cinturão peso-leve do torneio.

Aos 21 anos, tinha 12 lutas e nenhuma derrota, sendo considerado um das maiores revelações do Brasil. Foi aí que realizou o primeiro grande sonho da sua vida e, com os olhos cheios de lágrimas, disse a seus pais que estava no UFC.

Com o apelido de “O Cara do Jiu-Jitsu”, ganhou sua luta em 41 segundos, logo em sua estreia no Ultimate, e embolsou 50 mil dólares de bônus, pela melhor finalização da noite.

Escalado num duelo de promessas, contra Efrain Escudero, campeão da oitava edição do reality show “The Ultimate Figther”, que não bateu o peso. Do Bronx aceitou a luta, mesmo com os três quilos a mais do adversário, e ganhou o duelo, mesmo com dificuldades. A primeira derrota veio no UFC 124, por meio de uma chave de joelho, ainda no primeiro round, de Jim Miller, o adversário mais difícil que havia enfrentado até então.

O baque foi grande. E na sequência aconteceu sua primeira polêmica, ao acertar uma joelhada na cabeça de Nik Lentz, que estava com três apoios. O golpe foi considerado ilegal e a luta do UFC Live 4 ficou sem resultado. Dois meses depois, o brasileiro já estava em ação para um desafio ainda maior, e voltou a sentir o gosto da decepção. Do Bronx sofreu o seu primeiro nocaute para o americano Donald “Cowboy” Cerrone, um lutador de alto nível. Charles teve a impressão de que seus golpes nem foram sentidos pelo americano.

Em situação delicada, sem vencer há três lutas, Do Bronx sentiu uma diferença enorme de forças contra o “Cowboy”, decidiu descer de peso e lutar da categoria peso-leve para a peso-pena. Em sua nova fase, ganhou duas lutas, aplicou uma inédita chave de panturrilha e afastou as possibilidades de demissão do UFC.

No entanto, novos problemas surgiram no peso-pena, como a dificuldade de bater o peso, e ainda sofreu nova derrota por nocaute, desta vez para o veterano Cub Swanson, ainda no primeiro round. Ele não mudou a estratégia e, apesar da derrota por pontos para Frankie Edgar, ex-campeão do UFC, fez uma luta parelha, mesmo tendo enfrentado um adversário deste porte pela primeira vez.

A sequência no peso-pena teve seus percalços, mas Charles do Bronx administrou bem e chegou a dois anos de invencibilidade, e foi para o sétimo lugar no ranking. Uma lesão no pescoço acabou atrapalhando os planos de chegar perto do topo, já que foi superado por Max Holloway por nocaute técnico, em agosto de 2015, com a parte esquerda do corpo dormente, sem conseguir se mover.

Uma nova vitória, quatro meses depois, o manteve em sétimo lugar no ranking. A dificuldade em bater o peso ficava mais evidente e o UFC ficou de olhos bem abertos após a terceira vez na carreira. O brasileiro só voltou a lutar em agosto de 2016, numa segunda oportunidade contra um campeão do Ultimate. Dominado por Anthony Pettis, sofreu nova e amarga derrota, que o afastou novamente do título.

Um novo problema com a balança, desta vez por incríveis quatro quilos, e não houve jeito: o UFC obrigou Charles do Bronx a subir de categoria. Mesmo bem acima do peso, lutou e perdeu para Ricardo Lamas. No limite em relação a seu futuro, expulso da categoria e com resultados negativos em sequência, passou a ser considerado um lutador fraco, que não consegue superar os momentos difíceis nos momentos decisivos.

Mais forte e mais saudável, voltou ao peso-leve, em abril de 2017, e brilhou. A vitória por finalização sobre Will Brooks, no primeiro round. Parecia a chegada de novos tempos, mas a derrota para Paul Felder, após ter batido em desistência devido a uma cotovelada, sem o adversário ver, sofrendo o nocaute na sequência. Além da volta do estigma de desistir quando a corda aperta, passou a ouvir que teria chegado ao teto na carreira.

A afirmação, enfim, começou a chegar. Seis meses depois, Charles do Bronx voltou ao octógono no UFC 225 e se consolidou como o lutador com mais finalizações na história do Ultimate. Logo depois, chegou à liderança neste quesito, com uma grande festa no ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, onde aplicou um mata-leão no segundo round, contra o estreante Jared Gordon.

Em dezembro de 2018, o brasileiro deu o troco em Jim Miller, responsável pela primeira derrota de sua carreira, e venceu novamente pela via rápida, em mais um mata-leão, com um minuto de combate. Recorde ampliado, voltou ao ranking dos leves. Com uma sequência incrível de vitórias, tinha de enfrentar um grande nome para subir de posição. E foi Kevin Lee, oitavo colocado, que lhe fez subir em Brasília, já com a pandemia, sem público.

A morte do pai do russo Khabib Nurmagomedov provocou a aposentadoria do então campeão dos pesos-leves, com 29 vitórias e nenhuma derrota, após defender com sucesso o cinturão pela terceira vez. Uma grande mudança aconteceu e o título da categoria ficou vago. Geralmente, o UFC agenda um combate entre os dois primeiros colocados para definir um campeão.

O problema é que Justin Gaethje havia acabado de perder para o russo e o terceiro colocado, Dustin Poirier, tinha pendências com Conor McGregor. Com isso, o UFC teria de chamar outros lutadores para disputar o título da categoria. Depois de Nurmagomedov, Charles do Bronx tinha a maior sequência de vitórias no peso-leve, mas não poderia lutar, pois era o sétimo colocado.

Nada que uma grande vitória não resolvesse. O problema é que o brasileiro corria contra o tempo. Com apenas três semanas de treinamento, a oportunidade apareceu como o maior desafio de sua carreira, contra o “bicho-papão” Tony Ferguson, que tinha esse apelido por deformar seus adversários. Considerado azarão, Charles do Bronx teve um desempenho espetacular, o melhor da carreira até então, e diante dos olhos incrédulos do mundo da luta, quase ganhou por finalização, mas a vitória veio com vantagem em todos os rounds. Era a oitava vitória seguida.

O desafio para o cinturão veio após um período de descanso no sítio da família, interrompido pelo celular, que não pegava direito, mas mesmo assim alertou que havia algo no ar. E não era pouca cosa. Na cidade, com um sinal melhor, ficou sabendo por meio do treinador Macaco que havia chegado a hora: a próxima luta valeria o título dos leves.

Com a confirmação da aposentadoria de Nurmagomedov, que abriu mão do cinturão, e em razão da ausência de Dustin Poirier, a disputa ficou entre Charles do Bronx e o ex-campeão do Bellator, Michael Chandler, terceiro e quarto colocados do ranking, respectivamente, na luta principal do UFC 262, em maio de 2021.

Depois de 11 anos, o menino da favela de Vicente de Carvalho, no litoral paulista, superou todas as desconfianças que pairavam sobre a sua cabeça e estava apto a lutar pelo cinturão mundial, aos 31 anos. Foi o maior período que um lutador levou para chegar a uma decisão. E mais uma vez as apostas estavam em peso para o adversário, pois achavam que o brasileiro não aguentaria a potência e a pressão dos golpes do americano. Nada de novo.

As provocações de Chandler não demoraram. O foco era tentar desestabilizar Charles do Bronx com o estigma de ser um lutador fraco, que se entrega nos momentos cruciais. O americano não perdeu por esperar enquanto seu oponente silenciava. No dia 15 de maio de 2021, o mundo passou a respeitar o garoto da favela, que superou problemas graves de saúde e a pobreza para conquistar o cinturão dos leves em Houston, nos Estados Unidos.

Foi uma luta dolorida, com vários golpes sofridos e ferimentos no rosto. As bombas de Chandler levaram Charles à lona, logo no primeiro round. Ao contrário do que todos esperavam, o brasileiro não correu da raia e aproveitou o relaxamento e a guarda aberta do adversário para massacrá-lo, com joelhadas e golpes, até o juiz encerrar o combate por nocaute técnico.

A frase que Charles do Bronx repetiu exaustivamente ganhou significado real: “A favela venceu!”. Estas palavras, entretanto, foram complementadas logo após a vitória.

“Há 11 anos meu pai disse que eu era um menino entre os leões. Hoje estou te provando e provando para todo mundo que sou um leão no meio dos leões”, disse Charles “Do Bronx” Oliveira, ainda no octógono, desta vez chorando de alegria.

A primeira defesa foi contra Dustin Poirier, que todos acreditavam ser o rei sem coroa, que tinha uma derrota em dez lutas, sendo duas delas por nocaute técnico sobre McGregor. Muito completo, com mão pesada e faixa preta de Jiu-Jitsu, o americano estava no auge. Apenas Nurmagomedov havia conseguido pará-lo, enquanto Charles do Bronx ainda não tinha o respeito do público.

Mais uma vez, o brasileiro teria de enfrentar o amplo favoritismo do adversário e a desconfiança do mundo. Ele foi ofuscado em todos os eventos antes da luta, marcada para dezembro de 2021, no UFC 269, em Las Vegas. Todos só queriam saber de Poirier, mas o respeito mútuo deixou o clima entre os dois bastante ameno, contrariando as expectativas. Inclusive os lutadores prometeram doações aos institutos de um para o outro depois do combate.

Em novo confronto bastante equilibrado, Charles do Bronx aguentou as bombas de Poirier, que causaram muito estrago, mas não o impediram de levar a luta para o chão. Investindo pesado em golpes na cintura para minar o americano e na luta agarrada, o tradicional mata-leão voltou a consagrar o brasileiro, no terceiro round. Agora, ele era o rei. Com coroa e tudo.

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