Lúcio de Castro: o futebol está sob ataque do crime organizado
Com todas as letras, Bap falou do imenso e corrente risco do futebol ser usado como 'lavanderia'

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Tinha tudo para ser uma noite virtuosa. Diante dos sócios e em transmissão para milhares de pessoas pela FlaTV, o presidente do Flamengo apresentava com desenvoltura a prestação de contas de 2025. Muito mais do que isso: o planejamento do futebol para os próximos anos.
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Aquilo que se pode chamar de uma "carta para o futuro". E vale a observação: o registro da promessa de um tempo de glórias no horizonte.
Em resumo, estamos falando de uma barulhenta explosão de êxitos como jamais visto no futebol brasileiro. Incontestável, amarrada em números superlativos assustadores. Por serem imensos e também por não apresentarem nenhum devaneio. Todas as vírgulas lastreadas em pés no chão e números difíceis de serem contestados.
Mas o machismo e a arrogância de Luiz Eduardo Baptista foram mais fortes até do que o conjunto exemplar de excelência em gestão ali exibidos. Um ataque abjeto a uma profissional de imprensa mulher pautou os dias seguintes. Com inteira razão.
Já tratei muito sobre tal aberração em minhas redes sociais. Mas é impossível entrar em qualquer análise sobre o teor do que foi apresentado esta semana sem esse preâmbulo obrigatório. Isso feito, mas nunca o suficiente, é possível tentar avançar e podermos falar sobre alguns pontos. Que valerão abordagem em outros diversos momentos mais para a frente.
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Em particular, nessa sexta preguiçosa do leitor, espremida entre Natal e ano novo, e provavelmente sem maior disposição para "textões", vou passar brevemente por algo dito ali pelo presidente do Flamengo que passou batido na repercussão.
Um único tópico.
Na verdade, um sub-item de uma das transparências apresentadas no telão da Gávea.
Perdido ali, perdido na repercussão, mas que por si só, deveria ser o grande objeto de congressos, reportagens, debates na TV e do parlamento brasileiro. Como um tema solo, único e principal.
Foi quando Bap clicou e abriu a tela "Riscos nos próximos anos".
Eram quatro tópicos. Perdido, ali em terceiro lugar, estava:
"Entrada de receita ilegal no futebol: pela falta de uma regulamentação de licenciamento, owners check e de verificação de integridade no futebol brasileiro".
O risco do futebol ser usado como lavanderia
Até aqui, ninguém, salvo engano, nenhum cartola de clube, CBF, nenhum painel, tampouco a imprensa tem falado disso. Com todas as letras, comentando cada item, Bap falou do imenso e corrente risco do futebol ser usado como uma lavanderia do crime organizado. Ou de aventureiros vindo de fora sem que se saiba a procedência do seu capital aqui investido.
Foi do próprio Bap a citação nominal sobre enventual participação do Primeiro Comando da Capital, o PCC, organização criminosa agora multinacional, promover lavagem de dinheiro através do futebol. Assim como o de investidores estrangeiros aventureiros e duvidosos.
Está na pauta do dia do futebol brasileiro. Ou deveria estar. Talvez, pelo óbvio, a mais urgente. Mas infelizmente sequer é tratada. Razão pela qual, a inclusão do tópico por Bap chama tanto a atenção. E chama também tanto a atenção não chamar atenção nos debates que se seguiram. E aqui, feito o desconto para não repercussão em razão da própria fala desastrada de Bap atacando uma mulher jornalista.
Mas urge atenção. É o presidente do Flamengo que está falando. Se nem isso acender o alerta, é possível que seja tarde demais. E, assim como o crime organizado tomou partes de cidade, rasgou um país cruzando grandes centros, indo até a captura das riquezas amazônicas e passando até pelas fintechs da Faria Lima, talvez o futebol seja a próxima fronteira a ser tomada. Porque a essa altura provavelmente ninguém duvida que dentro eles já estão. O crime organizado e os aventureiros a que Bap se referiu, travestidos de investidores. Resta saber ainda qual é o nível de tomada de território. Mas ao contrário dos demais territórios citados, provavelmente no futebol ainda existe um ponto de retorno. Que só será de retorno se uma luz se acender nessa direção com urgência.
Aqui é preciso breve conceituação e entendimento desse processo. Sobre quando a porteira se abriu em definitivo. E como se construiu deliberadamente a brecha para que os mecanismos de transparência previstos na Lei das Sociedades Anônimas do Futebol (SAF) fossem retirados. Dando margem a esse vazio obscuro e escuro.
Resumido por Bap em seu power point como o risco da entrada de receita ilegal no futebol "pela falta de uma regulamentação de licenciamento, owners check e de verificação de integridade".
Sancionada em 2021, a Lei 14.193/2021 das Sociedades Anônimas do Futebol (SAF) tinha previsão para tal fundamental checagem.
Em seu artigo 6o, a lei era definitiva: "a pessoa jurídica que detiver participação igual ou superior a 5% do capital social da Sociedade Anônima do Futebol deverá informar a esta, assim como a entidade nacional de desporto, o nome, qualificação, o endereço e os dados de contato da pessoa natural que, direta ou indiretamente exerça seu controle". Outros artigos exigiam o mesmo de cotistas e transparência sobre composição acionária.
Um pedido-ordem do então ministro da economia, Paulo Guedes, fez com que esses artigos que regiam os mecanismos de transparência fossem vetados pelo presidente Jair Bolsonaro. Em breve resumo, a razão do veto: "a medida contraria o interesse público". Tal veto se justificaria porque se tratava de "exigência assimétrica e injustificada". Já que, segundo o veto, "fundos de gestão contam com estruturas de gestão profissional e discricionária".
O principal argumento apresentado foi de que tais regras criavam "burocracia excessiva" e poderiam desestimular investimentos.
Assim, em breve resumo, estava aberta a porteira. Uma canetada ministerial. Recomendamos vivamente sobre o tema os brilhantes artigos do pesquisador Irlan Simões.
Passados os vetos na calada da noite, a Lei da SAF não estabeleceu um regime robusto e obrigatório de due diligence, algo como o KYC ("conheça seu cliente"), e o AML - Anti-Money Laundering (combate à lavagem de dinheiro) especificamente para a aquisição de clubes. A responsabilidade por essas verificações ficou, na prática, diluída e dependente de análises internas dos clubes e de procedimentos genéricos dos bancos que eventualmente estejam na intermediação dos negócios, sem um padrão único e fiscalização específica da autoridade esportiva.
O resultado é um ambiente regulatório frágil, vulnerável à entrada de recursos de origem duvidosa. Vulnerável a se transformar em uma enorme lavanderia. Fatos recentes deram conta de que isso já estaria acontecendo em fundos de investimento envolvido com SAF. Convenhamos, nem tão novo isso é. Basta nos lembrarmos do Corinthians da MSI e de Kia Joorabchian. As denúncias de então do Ministério Público Federal davam conta de lavagem de dinheiro por parte de "organização criminosa". A peça falava "em valores obtidos de forma supostamente ilícita no exterior, lavados ao entrar no Brasil". No fim, deu em nada. Mas, na dúvida, Joorabchian saiu corrido daqui. Agora tudo é muito mais sofisticado e conta com a omissão da lei.
Resultado do ruído causado pelo próprio erro grosseiro no ataque misógino, tudo o que foi dito por Bap parece perdido. Mas os tempos futuros talvez apontem que uma das coisas mais fundamentais para o futuro do futebol brasileiro pode ter sido dita ali. Perdida como terceiro ponto de um tópico coadjuvante.
O futuro dirá se tal tópico não deveria ser protagonista dos nossos debates: a "entrada de receita ilegal no futebol: pela falta de uma regulamentação de licenciamento, owners check e de verificação de integridade no futebol brasileiro".
Em bom português: a transformação do futebol brasileiro numa grande lavanderia do crime organizado e de aventureiros que seguem batendo por aqui parece estar em curso. Estimulados pela frouxidão de uma lei onde vale-tudo. E nem fui eu que falei isso.

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