Conheça brasileiro que saiu do interior da Bahia e se encontrou no futebol da Ucrânia
Em entrevista ao Lance!, Sidnney passou a carreira a limpo e contou curiosidade do futebol ucraniano

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O zagueiro Sidnney é mais um fruto das migrações que só o futebol proporciona. Natural de Lages do Batata, um distrito do município de Jacobina, no interior da Bahia, ele apostou no esporte desde cedo e passou dificuldades para entrar nesse mundo desejado pela maioria dos jovens, mas que pode ser cruel e surpreendente ao mesmo tempo. Não à toa, o baiano foi parar na Ucrânia e constrói sua vida em um país que constantemente ganha a atenção dos brasileiros por causa da guerra.
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Aos 25 anos, Sidnney joga atualmente no Livyi Bereh, time da segunda divisão localizado próximo à capital Kiev, e vive um dos pontos mais altos da carreira. Em entrevista exclusiva ao Lance!, o zagueiro explicou como é a vida de um atleta no futebol da Ucrânia e os impactos da guerra com a Rússia.
— É totalmente diferente do que se fala nos jornais do Brasil. Claro que tenho vários vídeos aqui: mísseis passando, os drones também. Às vezes acontece de você estar dormindo e começar os estouros, começar a escutar, entendeu? Você fica com medo. Isso acontece. Mas, como você falou, estamos numa região onde não tem tanto ataque assim. Você me perguntou o que impacta na minha vida sobre isso. Impacta porque comecei a dar mais valor às coisas. Vivendo todos os dias aqui, você vê que as pessoas vivem assustadas e com medo de, a qualquer momento, perderem o que é deles. Então, você começa a dar mais valor às coisas, você começa a amar as coisas mais simples da vida — esclareceu.
Essa é a segunda passagem de Sidnney pela Ucrânia. Ainda novo, ele se destacou na base do Atlético Diadema (SP) e do Bahia e foi logo observado por agentes internacionais, que correram para assinar com o garoto e garantir a ida dele para o leste europeu aos 18 anos. E assim o fez.
Sidnney chegou à Ucrânia para defender o Rukh Vinnyky na temporada 2018/2019 e teve poucas oportunidades. Ainda assim, ajudou o time a subir para a primeira divisão da Liga Ucraniana na temporada seguinte. Logo antes de viajar rumo ao desconhecido, ele estava emprestado ao Bahia, que até tentou segurá-lo, mas não venceu o "cabo de guerra" com os ucranianos.
— Eu sem entender nada, e o Bahia, na época, não queria rescindir o contrato. Daí foram empurrando, negociando, até que 2 semanas depois que eu fiz 18, os caras rescindiram o contrato. Voltei para São Paulo e já estava com a passagem pronta para a Ucrânia. Quando pisei em São Paulo, o presidente me ligou e falou: "Ó, você viaja quarta-feira". Cheguei segunda-feira e ele falou: "Você viaja quarta-feira para a Ucrânia". Eu nem sabia que existia esse país chamado Ucrânia — contou.

A vida de Siddney no interior da Bahia
Mas antes de embarcar rumo ao futebol europeu, Sidnney viveu uma juventude comum para muitos jovens que vivem no sertão baiano. Logo no início da adolescência, ele chegou a ajudar o pai em um trabalho árduo nas roças da região, mas a paixão pelo esporte falou mais alto.
Sidnney, porém, esbarrou em alguns obstáculos, como o levantamento de patrocínios e a falta de infraestrutura para treinamentos.
— Um belo dia, meu pai recebeu uma proposta para desmatar um hectare, né, de roça. Ele aceitou a proposta; o dinheiro também era tentador. Ele aceitou e, no segundo dia de trabalho, eu lembro que cheguei em casa com a mão toda calejada, minha mão doendo. Eu não conseguia fechar a mão de tanto roçar, desmatar os matos. Daí eu falei que tinha algo para falar com ele. Me estremeci todo, mas tive coragem. Eu falei: "Olha, é o seguinte, eu não quero ser igual ao senhor, não". Ele meio que se assustou, né? "Ser igual a mim? Como assim?" Eu falei: "Olha, eu não quero ser igual ao senhor que trabalha em roça, não". Ele perguntou: "O que você quer da sua vida então?" Eu respondi: "Eu quero jogar futebol".
— Eu comecei a treinar na pista de vaquejada, porque eu tenho um tio que sempre foi amante do futebol. Ele era um cara que fazia três, quatro jogos no final de semana e ganhava muito dinheiro, um volante muito bom. Ele treinava sozinho, só que ele treinava sempre 11 horas da manhã. E 11 horas da manhã na Bahia é um calor retado, cara. Ele treinava em uma pista de vaquejada, e eu lembro que nas primeiras semanas eu tive calos nos pés. Treinando com ele, não aguentava — concluiu.
Depois de dar esse primeiro passo, Sidnney acumulou passagens por Bahia, Atlético Diadema, Rukh Vinnyky (UCR), Ararat Yerevan (ARM), Desportivo Brasil (SP), Ska Brasil (SP), Vera Cruz (PE) e Taquaritinga (SP) antes de se consolidar no futebol ucraniano. Superadas as dificuldades de patrocínio no início da carreira e as mãos calejadas antes mesmo de entrar para o futebol, o zagueiro não pensa em sair da Ucrânia tão cedo.
— Para mim está sendo maravilhoso. O time todo abraçou os estrangeiros, os brasileiros, o africano que está aqui também. O time é jovem, onde os jogadores entendem também o que se passa conosco. Os caras tentam nos ajudar, tentam nos entender, assim como nós também fazemos de tudo para entender eles. Essa experiência que estou tendo agora com este clube, para mim está sendo surreal. Acho que se eu tivesse o poder de escolha novamente, eu escolheria voltar e fazer tudo que estou fazendo aqui, ou até melhor.
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Leia outros trechos da entrevista com Sidnney
L!: Eu queria começar perguntando um pouco da sua história. Você é daqui da Bahia, de Jacobina? Como é que você começou no futebol? Se você chegou a jogar aqui na Bahia por algum time do interior, algum time, até mesmo Bahia ou Vitória? Como é que foi esse seu início no futebol?
Sidnney: Sou de Jacobina, Bahia, Cidade do Ouro. Cidade onde eu tenho muito carinho também. Mas eu sempre vivi muito entre Jacobina e Mambaí, Goiás, onde meus pais moram hoje. Quando eu tinha 13 anos de idade, minha avó teve o segundo AVC e eu tive que voltar para Jacobina, porque meu pai estava com medo de perder ela. Chegando em Jacobina, o único trabalho que você pode começar a se sustentar melhor é na roça. Minha família sempre foi de ter roça, a família toda sempre teve roça, teve fazenda. Então meu pai sempre trabalhou de roça. Trabalhou no cinzal. A gente trabalhava em cinzal carregando palha, meu pai cortava e eu carregava.
Depois que eu comentei sobre meu desejo em jogar futebol, ele falou assim: "Você acha que o futebol vai te dar dinheiro? Você acha que você vai conseguir ir longe com futebol?" Eu falei: "Pô, eu acho que sim. Estou com 13 anos de idade, já estou jogando quase no mesmo time que o senhor". Antigamente tinha essa divisão: o primeiro time que joga o municipal e o segundo time que joga um campeonato inferior, como se fosse primeira divisão e segunda divisão no amador". Ganhava R$ 50, eu acho, por jogo, se eu não me engano. Daí ele falou: "Vamos fazer o seguinte: não precisa mais trabalhar comigo, pode começar a treinar. Só que eu vou te dar a educação e a alimentação, e você me dá o seu esforço para o futebol e o estudo. Fechado?" Eu falei: "Feito". Depois desse dia, ele começou a trabalhar sozinho, eu comecei a treinar.
L!: Com você conseguiu entrar no mundo do futebol e jogar nos primeiros times da carreira, mesmo saindo do interior da Bahia?
Sidnney: Eu persisti no mundo do futebol e, com 14 anos, saí de casa para ir atrás de fazer um teste. Fiz um teste no Moto Club, em Salvador, passei, fiquei dois meses, mas voltei para casa porque o campeonato acabou. Quando voltei, eu falei que o futebol não era para mim. Meu pai falou: "Eu tinha te avisado". Só que agora minha mãe entra [na história]. Minha mãe sempre foi a mulher que acreditou em mim. Ela, inclusive, me ajudou com patrocínios.
A primeira pessoa que fui pedir patrocínio foi [o dono de] uma loja de material de construção. Eu sempre trabalhava lá quando faltava funcionário, ele sempre me encaixava para eu poder ganhar meu dia lá também, né? Eu fui pedir patrocínio para ele, expliquei o caso, que ia fazer um teste em São Paulo. Precisava de R$ 1.400, e ele sempre falou que gostava de mim. Eu achei que ele ia ajudar. Só que ele ajudou de uma maneira não tão positiva. Ele me deu R$ 5 dos R$ 1.400. Eu lembro que voltei para casa chorando muito, e no meio do caminho um cara me parou e perguntou porque eu estava chorando.
Fomos, então, para Jacobina. Lá tem uma avenida, e caminhamos nela para começar a pedir patrocínio. Até tatuei [esse momento]: eu com minha mãe nessa avenida, que segue para o estádio de Jacobina. Pedimos patrocínio e conseguimos R$ 1.600 em um dia. Dois dias depois, viajei para São Paulo. Chegando em São Paulo, fiz teste, passei e entrei no futebol. E, graças a Deus, consegui jogar ainda na base do Bahia.
L!: Como foi a experiência de jogar na Ucrânia antes e depois da guerra?
Sidnney: Eu sempre falo para alguns jogadores, ou até amigos meus, que me perguntam porque eu voltei após 2 anos, sendo que eu tinha um contrato de 4 anos. Foi porque no começo eu sofri muito aqui com a questão do racismo. Sofri muito, muito mesmo. Em termos de, às vezes, estar dentro de campo e escutar torcidas rivais chamando de "chorny", que é preto, né? Às vezes chamam de macaco também na língua deles aqui. Eu não sabia antes o que eles estavam falando. Mas eu comecei a estudar e fui aprendendo.
A primeira vez que eu vim para cá, as relações desse clube que eu jogava—que era o Rukh, né? O Rukh lá de Lviv. Eu e o Gabriel fomos os primeiros estrangeiros a estar no Rukh. Eles não sabiam como ter esse cuidado com a gente, entendeu? Isso também afetou muito a gente. Nem eu nem o Gabriel conseguimos suportar também. Eu consegui até mais que ele; ele ficou um ano e meio, se eu não me engano. Mas a gente sofreu muito, sabe? A diferença de eu estar neste clube agora para o clube de antes é porque este clube agora me dá total respaldo para eu poder trabalhar.
Decidi voltar porque já estava adaptado ao país, já falava um pouco também. Só que esse impacto de voltar agora complicou bastante, porque na época eu estudava russo. E agora nem todos os ucranianos querem falar russo. Eles querem falar ucraniano por conta da guerra. E isso foi um pouco chato para mim, entendeu? Porque eu estudei muito russo, mas não estudei ucraniano, e o ucraniano é muito mais difícil.

L!: Já aconteceu de você estar no jogo, ter que parar, ter que evacuar todo mundo por causa de alguma ameaça de ataque?
Sidnney: Já aconteceu várias vezes. O jogo mais difícil em que isso aconteceu foi contra o Obolon, lá na casa deles. Fomos literalmente para o subterrâneo e tivemos que ficar lá por algumas horas, entendeu? A ameaça foi muito grande, e alguns torcedores não voltaram para assistir o jogo.
Para mim, isso foi muito complicado, cara. Isso é muito complicado. No penúltimo jogo em casa também, estávamos aquecendo e tivemos que voltar para o vestiário. Tem um aplicativo, um mapa aqui. Você abre o aplicativo e vê onde vai ser atacado, entendeu? Querendo ou não, alguns mísseis devem passar por perto, e a galera acaba parando alguns jogos para que não aconteça o pior.
L!: Como está sendo a experiência no clube e como você vê essa questão da visibilidade do futebol ucraniano perante a Europa?
Sidnney: A questão de visibilidade para que você saia daqui da Ucrânia para ir para um país melhor, eu acho uma vitrine muito boa, na verdade, porque muitos empresários olham para a Ucrânia. Muitos jogadores bons da Ucrânia saem daqui para jogar em outros países. Acredito que a visibilidade aqui na Ucrânia, para que você possa crescer na Europa e mundialmente, tem muita chance de acontecer. Entendeu? Basta você trabalhar, fazer bons números e aparecer, cara. Aparecer, eu acho que isso é o importante.
L!: Você tem algum objetivo em mente de clube, ou de continuar na Ucrânia, de repente, e alcançar conquistas pelo próprio clube em que está? Quais são os seus objetivos profissionais daqui para frente?
Sidnney: A gente sempre quer voar mais longe, né? Essa é a verdade. Sempre queremos dar um passo à frente. Tenho muitos objetivos que quero conseguir. Até falo com os outros brasileiros aqui: já fui vice-campeão na Ucrânia, já fui terceiro lugar, mas nunca fui campeão de divisão nenhuma. Já tenho dois acessos na liga ucraniana também, mas nunca fui campeão.
Claro que quero ir para outras ligas maiores. Quero poder um dia jogar na Espanha, na Alemanha, na Inglaterra, em lugares onde somos mais vistos, entendeu? Lugares onde o futebol acontece de verdade. Não que aqui não aconteça, mas você sabe que está em um país onde todo mundo é amante do futebol, e as coisas acontecem de maneira muito mais rápida.
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