Sul-Americano de 1919: há cem anos, nascia a ‘pátria em chuteiras’

Gol em dramática segunda prorrogação, pioneiro ídolo negro, goleiro heroico, país em turbulência... Primeiro título de ponta da Seleção Brasileira é repleto de histórias!

Primeiro ídolo brasileiro, Friendenreich marcou o gol do título da Seleção na vitória por 1 a 0 sobre o Uruguai
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O Campeonato Sul-Americano de 1919 não foi um pontapé inicial apenas no panteão de conquistas relevantes da Seleção Brasileira. Quando, há cem anos, Arthur Friendenreich estufou a rede e decretou a vitória por 1 a 0 do Brasil sobre o Uruguai, em 29 de maio, o futebol foi alçado de vez a uma paixão nacional:    

- A conquista deste Sul-Americano trouxe uma mobilização muito grande de todas as classes no plano esportivo. O pobre e o rico se uniram em torno do sucesso da Seleção Brasileira, numa sensação de "orgulho nacional" - detalhou ao LANCE! Roberto Sander, jornalista e autor do livro "Sul-Americano de 1919 - Quando o Brasil Descobriu o Futebol".

Aos olhos de Sander, a partir do título do Sul-Americano, o futebol jogado no país ganhou novos rumos:

- O futebol antes era um esporte mais elitista, voltado para oligarquias. Com o passar do tempo, ele passou a ser disputado também nas periferias, nas fábricas. Isto ajudou a incluir o negro em campo e influenciou na forma do brasileiro jogar.

PAÍS COM TURBULÊNCIAS E A GRIPE ESPANHOLA QUE ADIOU O TORNEIO

Gripe Espanhola - Rio - 1918
Gripe Espanhola, que adiou Sul-Americano, matou até recém-eleito presidente Rodrigues Alves (Reprodução)

O Sul-Americano teve de lidar com as turbulências que assolavam o Brasil. O impacto começou na organização da competição. Inicialmente prevista para ocorrer em 1918, ela teve de ser adiada para o ano seguinte.

- A Gripe Espanhola chegou ao Brasil e matou milhares de pessoas, entre elas o recém-eleito presidente Rodrigues Alves. O cancelamento do Sul-Americano gerou ainda um grande inconveniente para a CBD: a entidade já tinha adiantado o valor de participação aos jogadores de São Paulo. Foi pedido o dinheiro de volta, mas alguns atletas já tinham gasto a quantia com roupas novas, presentes - detalhou Roberto Sander, que complementou:

- Houve um grande mal-estar! Jogadores quase foram punidos pela CBD de não disputar o Sul-Americano, inclusive o Friendenreich. Botaram panos quentes e, além do "Fried", Neco e Amílcar foram muito hostilizados na chegada ao Rio de janeiro. Mas, quando a bola enfim rolou em 1919, tudo mudou.

Historiador da PUC-Rio, Leonardo Pereira apontou o que pesou para que o Sul-Americano só ocorresse em 1919:

- Na verdade, foi um receio das outras delegações serem contaminadas com a Gripe que se alastrava pelo mundo. O Rio de Janeiro lidava com epidemias com frequência.

CBD teve de contornar 'mal-estar' interno causado por adiamento do torneio


A doença chegou ao país por meio de tripulantes de navios de carga europeus. Em cerca de dois meses, a Gripe Espanhola causou a morte de 17 mil pessoas no Rio de Janeiro e de outras oito mil pessoas em São Paulo. 

O Campeonato Carioca ficou paralisado por 56 dias e a lista de mortos pela Gripe contabilizou o atacante Archbald French, do Fluminense. 

Já o país era regido pela "Política do Café com Leite", um acordo entre políticos de São Paulo e Minas Gerais pelo poder. Contudo, naquele momento, o governo vinha lidando corriqueiramente com paralisações de trabalhadores influenciados pela Revolução Russa e por anarquistas.  Um dos ápices deste movimento foi a Greve Geral de 1917, na qual operários de indústria e comércio ficaram por 30 dias de braços cruzados.

De acordo com o historiador, em meio a este contexto, os operários viram no futebol outra válvula de escape para sentir-se representados:

- O mundo passava pelo período do "pós-Guerra" (a Primeira Guerra Mundial teve fim em 11 de novembro de 1918),  fase na qual nacionalismos ficam muito exacerbados. E os trabalhadores, que não tinham direito nem sequer a voto na República, encontraram no futebol um caminho para disputar seu espaço por nacionalidade. Queriam seu lugar, sua representatividade na nação!

SELEÇÃO BRASILEIRA: DO DESCRÉDITO AO OTIMISMO

Brasil x Argentina 1919
Friendenreich sobe para cabecear diante da zaga argentina (Reprodução)

Embora fosse anfitriã, a Seleção Brasileira estava longe de ser favorita ao título do Sul-Americano de 1919. Tanto que o governo tinha outras prioridades:

- A preocupação era mostrar que o Brasil tinha condições de organizar uma competição. Os governantes tinham este desafio de passar uma bela imagem. No entanto, ao longo da disputa a torcida passou a ficar mais efusiva - detalhou Roberto Sander.

O jornalista contou que no gramado do Estádio de Laranjeiras (inaugurado durante o torneio), a previsão era que a disputa, inicialmente, fosse acirrada entre Uruguai e Argentina.

- O Uruguai já era bicampeão do Sul-Americano, tinha um time muito forte e muito cerebral, bem estruturado. Do lado da Argentina, era uma equipe taticamente bem organizada e perigosa. Já no Brasil, prevalecia o talento individual.

'Os governantes queriam passar uma boa imagem do Brasil. Mas a torcida ficou efusiva com a Seleção', diz Roberto Sander


Contudo, os brasileiros foram mostrando poder de fogo. Logo na estreia da Seleção, Friendenreich marcou três gols na goleada por 6 a 0 sobre o Chile, enquanto Neco (outro atleta importante na campanha) marcou dois e Haroldo fez o outro. 

Próxima adversária brasileiro, a Argentina foi derrubada de seu posto de favorito. Heitor, Amílcar e Milton marcaram para o Brasil, enquanto Izaguirre diminuiu para 3 a 1.

- Isto aumentou bastante a confiança da Seleção Brasileira e também da torcida, que já abarrotava Laranjeiras - disse Roberto Sander.

Diante da tradicional Celeste, o embate foi muito mais intenso. Os uruguaios abriram dois gols de vantagem em apenas 17 minutos, com Gradín e Scarone. Entretanto, o Brasil renovou seu ímpeto e, contando com um Neco inspiradíssimo, arrancou o empate em 2 a 2. Um jogo extra decidiria o título.

DUAS PRORROGAÇÕES E MUITA EXPECTATIVA

Brasil 1x0 Uruguai - Sul-Americano de 1919
Disputa tensa acabou com gol de Friendenreich (Divulgação)

Sobrou tensão naquele 29 de maio de 1919. Além de a torcida lotar o Estádio de Laranjeiras, a decisão entre Brasil e Uruguai proporcionou cenas curiosas no Rio de Janeiro: 

- Enquanto as pessoas mais abastadas foram às Laranjeiras, nos morros próximos ao estádio os torcedores se amontoavam para acompanhar a partida. Foi uma junção simbólica - destacou o historiador Leonardo Pereira.

O autor do livro "Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938" contou como era a mobilização, em especial em um período no qual não havia rádio: 

- Nas redações deixavam exposto só o placar, que ia mudando à medida que alguém ligava para anunciar os gols.

E os brasileiros tiveram de acalmar os ânimos. A equilibrada partida foi para a prorrogação, após um empate em 0 a 0. E depois de mais 30 minutos, o gol não saiu.

'Enquanto torcedores lotaram o estádio, grupos se amontoaram em morros próximo às Laranjeiras para ver a final', detalha historiador


- Marcos Carneiro de Mendonça foi fundamental para a conquista. Segundo os relatos, o goleiro, conhecido por usar uma fita roxa em seu calção, desdobrou-se para salvar as tentativas do Uruguai. Ele salvou chances de Scarone, Gradín... - ressaltou Roberto Sander.

Somente aos sete minutos da segunda prorrogação, o grito de gol saiu. Neco passou como quis pela zaga uruguaia e cruzou para a área. Na sobra de Saporiti, Friendenreich bateu com categoria no canto do goleiro.

Em euforia, torcedores jogaram seus chapéus para o alto e celebraram, enquanto jogadores se abraçavam. Porém, algumas emoções ainda aconteceriam nas Laranjeiras. De acordo com o jornal "O Paiz", o uruguaio Scarone ameaçou um torcedor e, na reta final, Marcos Carneiro de Mendonça salvou providencialmente uma finalização de Gradín.

Somente às 17h25, o grito de "é campeão" pôde ecoar. Aos poucos, com os torcedores anunciando a "boa nova" à medida que saíam do estádio ou que ligavam para as redações.

Roberto Sander crê que a equipe trouxe um simbolismo:

- Foi uma conquista que uniu classes também em campo, como mostram os jogadores mais assediados após a parceiro. De um lado, o habilidoso Marcos Carneiro de Mendonça, goleiro que era filho de filho de família rica, estudante. Do outro, o Friendenreich, que era o único mulato da Seleção Brasileira, uma exceção em uma época na qual o futebol pouco abria espaço para negros.

'FRIED', O PRIMEIRO ÍDOLO BRASILEIRO

Sul-americano de 1919
Friendenreich foi pioneiro entre os ídolos negros do país' (Reprodução)

A conquista do Sul-Americano de 1919 apresentou ao Brasil seu primeiro ídolo. Então atacante do Paulistano, Arthur Friendenreich encheu os olhos dos torcedores por apresentar um estilo de jogo fora do comum:

- Friedenreich era um jogador muito talentoso. Por ser filho de um imigrante alemão com uma lavadeira brasileira, ele tinha no seu futebol uma ginga diferente, um molejo que ajudavam no futebol dele. E assim ele foi essencial para o futebol nacional - exalta Roberto Sander.

'A ginga ajudava Friendenreich', diz Roberto Sander


Aos olhos do jornalista, a habilidade fez com que "Fried" superasse o preconceito no futebol e se tornasse um pioneiro:

-  O Brasil ainda tinha um resquício muito grande do período de escravidão. Mesmo assim, Friendenreich se firmou porque tinha um futebol de qualidade e era um dos craques da equipe. Por ser o primeiro ídolo negro, ele abriu as portas para que, décadas depois, viessem Leônidas da Silva, Zizinho, Pelé, Garrincha...

SELEÇÃO QUE JÁ JOGAVA POR MÚSICA

A emoção com a conquista do inédito Sul-Americano fez a Seleção Brasileira "jogar por música". Pixinguinha e Benedito Lacerda imortalizaram o triunfo com o chorinho "Um A Zero":

- Na época, Pixinguinha tinha 22 anos e, em parceria com Benedito Lacerda, compôs este choro descritivo. Dá para ver uma melodia bem sinuosa, que busca mostrar os dribles da partida. Embora seja de 1919, a música só foi gravada décadas depois - destaca o pesquisador musical Rodrigo Faour.

Considerado um prodígio da música, Pixinguinha já tinha composto obras-primas como "Carinhoso" e "Rosa" quando decidiu reverenciar o futebol.

- À época, Pixinguinha fazia polcas, tangos, maxixes... Na verdade, o termo choro só passou a ser "adotado" de fato a partir dos anos 1910, para definir esta canção mais sentimental.

Além da canção de Pixinguinha e Benedito Lacerda, o êxtase pela conquista se alastrou pelo país. Segundo o livro "Sul-Americano de 1919 - Quando o Brasil Descobriu O Futebol", em Belo Horizonte salas de cinema ficaram abarrotadas de espectadores que queriam acompanhar os feitos dos primeiros ídolos da Seleção Brasileira.

Definitivamente, as multidões tinham despertado para se tornar "a pátria em chuteiras". 

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