O ‘furacão’ Kaká e sua afronta ao preconceito contra as mulheres
Na véspera do Dia Internacional da Mulher, goleira multicampeã do Flamengo conta histórias de luta e fala sobre a admiração por Dona Therezinha, sua mãe
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Carnaval, Rio de Janeiro. Um caminhão com gelo passa e arranha a porta do carro de Renata Maria Sant’Anna, de 37 anos. Bem mais conhecida pelo apelido de Kaká, a goleira do Flamengo/Marinha se aproxima para tirar satisfações com o motorista do veículo. Ao contrário de um pedido de desculpas, no entanto, ouve uma ameaça.
- Quando eu reclamei com o cara, ele respondeu que só não me batia porque eu era mulher. Nessa hora confesso que fiquei muito p*** e falei pra ele: “ah, já que vc só não vai me bater por isso, agora eu quero que você venha aqui e tente e a sorte. Encosta um dedo em mim pra você ver, não vou denunciar nem fazer nada, só quero que você venha aqui e faça o que tá falando então” - devolveu a jogadora.
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No próximo domingo, dia 8 de Março, é celebrado o Dia Internacional da Mulher. Mas a data não é motivo de festa. Segundo levantamento de 2019 do Ministério da Saúde, a cada quatro minutos, uma mulher é agredida no Brasil, e a cada oito horas, uma é morta. Kaká, por sorte, não entrou para nenhuma destas estatísticas. O episódio, apesar da gravidade, agora é tratado com leveza, e retrata a personalidade da paulista de Taboão da Serra.
- Até uma moça que estava perto ficou assustada com a minha reação e falou pra deixar ele, mas eu estava meio revoltada (risos). Claro que ele não fez nada, mas depois repensando a gente fica com medo que tivesse uma arma, isso sendo homem ou mulher né, e pode acontecer algo. Mas são algumas situações que às vezes ainda acontecem, só que comigo não se cria, que eu não deixo (risos).
O currículo de Kaká é recheado com 21 títulos. Entre eles, estão três Libertadores, uma delas ao lado de Marta no Santos, em 2010, quatro Copas do Brasil, quatro Campeonatos Paulistas e uma sequência de seis Cariocas. Mas acima das conquistas, está o amor por Dona Therezinha.
“Infelizmente hoje ainda tem um menosprezo, o pessoal só quer acompanhar a modalidade masculina”
Depois de perder o pai, há 17 anos, ela interrompeu a carreira ainda no início para dar apoio a mãe. Assim, deixou o Juventus, da capital São Paulo, e retornou ao interior do estado:
- Foi difícil realmente, mas não tinha o que fazer. O meu pai já não ajudava muito em casa, ele infelizmente bebia muito e gastava muito na rua, então o pouco que ajudava, quando ele faleceu, minha mãe ficou sem. Ela tinha uma pensão que recebia do meu avô e sustentava a gente, eu e meus dois irmãos, mas nessa época eu não recebia salário no Juventus-SP, eu na prática pagava pra jogar, ela que me ajudava, com o dinheiro da passagem.
Com a camisa grená do tradicional clube do Bairro da Mooca, Kaká disputou a Brasileiro sub-19 como a jogadora de linha que ainda era - os 1,68m, altura relativamente baixa para goleiras, denuncia o passado em outra posição. A realidade de uma equipe com poucos investimentos, somada as desafios enfrentados pelo futebol feminino no Brasil, deferiram o duro golpe na atleta.
- Eu morava no alojamento que ficava a duas quadras da Rua Javari, era um lugar com várias atletas, e voltava pra casa no final de semana. Então tive que parar pra ajudar, não podia ser somente ela sustentando. Nessa época trabalhei num colégio - conta.
O cenário não ajuda em casos como o de Kaká. Enquanto a folha de pagamentos dos gigantes de São Paulo, por exemplo, giram entre R$ 10 milhões, os gastos com os times femininos são 100 vezes menor e beiram os R$ 100 mil. A remuneração de mulheres da Série A é compatível com a dos homens das Séries B, C e até D do Campeonato Brasileiro.
O abismo se estende às demais áreas. Dados compilados pelo Dieese, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, a Pnad Contínua, do IBGE mostram que, no Brasil, o salário das mulheres é, em média, 22% menor que o dos homens: R$ 2.495 para eles e R$ 1.958 para elas. Uma discrepância menor poderia ter mudado trajetória da atual guardiã da meta do Flamengo.
- Com certeza eu não teria parado, provavelmente teria trazido minha mãe pra morar comigo ou mais perto, também meus irmãos. Acho que essa diferença é muito grande né, e não é só no futebol, mas em todo o esporte. Infelizmente hoje ainda tem um menosprezo, o pessoal só quer acompanhar a modalidade masculina - lamentou.
“O futebol feminino está crescendo e ainda vamos ver o auge dele”
Apesar do início difícil, a evolução recente do esporte deixa Kaká otimista. Depois de 40 anos desde que a prática do futebol feminino foi liberada por lei no Brasil - desde 1941, o Decreto-Lei 3199, do governo de Getúlio Vargas, proibia a "prática de esportes incompatíveis com a natureza feminina” - no ano passado, passou a ser obrigatório para os clubes da Série A masculina a manutenção de uma equipe de mulheres.
Além disso, a Copa do Mundo feminina, também em 2019, foi um sucesso e mais do que dobrou a audiência em relação à edição anterior.
- Já foi muito pior, eu lembro de receber 50 reais, da gente no alojamento ter que dividir o que comer, comia ovo, porque não tinha dinheiro pra comprar carne. As meninas que começam hoje não sabem o que é isso, mas na minha faixa depois dos 30 sabem, era tudo por amor ao futebol. Mas as coisa estão melhorando, o futebol feminino está crescendo e acho que ainda vamos ver o auge dele - celebra Kaká. Por isso, incentiva craques do futuro a enfrentar os percalços da profissão:
independente de qualquer situação, se a dificuldade é financeira, é não ter ninguem ajudando, que se é aquilo que você quer pra sua vida, vai batalhar e ir atrás. Se for necessário trabalhar pra conseguir uma renda extra, vai atrás, as coisas não são fáceis mas lute pelo seu sonho.
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