Há 20 anos, Deportivo derrubava gigantes e vencia La Liga; Mauro Silva relembra conquista

Ídolo local, volante é o terceiro jogador que mais vezes vestiu a camisa do clube. Ao LANCE!, ele fala do período de ouro do time que foi carrasco de Real Madrid e Barcelona

Deportivo La Coruña
O Deportivo fez história no futebol espanhol no fim dos anos 90 e início dos anos 2000 (Reprodução)

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O que você estava fazendo no dia 19 de maio de 2000? A princípio, essa é uma pergunta que não faz tanto sentido, certo? Para muitos, sim. Para a parte azul e branca da região da Galícia, no norte da Espanha, definitivamente não. Afinal de contas, numa data como a desta terça-feira, 20 anos atrás, o Deportivo La Coruña tornava-se campeão espanhol pela primeira e única vez em sua história depois de vencer o Espanyol por 2 a 0 em casa, no estádio Riazor.

Quatro brasileiros estavam naquele elenco: Djalminha, Mauro Silva, Donato (que se naturalizou espanhol) e Flávio Conceição. O Super Depor, como ficou conhecida aquela geração que marcou o imaginário do fã de futebol europeu no fim dos anos 90 e início do século XXI, não foi um acontecimento repentino. Pelo contrário. Entre 1999 e 2004, a espinha-dorsal foi mantida com sucesso e outras taças foram adicionadas ao modesto currículo do clube (uma Copa do Rei e duas Supercopas da Espanha).

"Djalminha, Donato, Roy Makaay, Luque, Sergio González, Pandiani, Molina, Victor. Era muito talento junto" - afirma Mauro Silva

No entanto, a partir de uma forte decepção no Campeonato Espanhol que time e torcida buscaram força para darem a volta por cima. Na temporada 1993/94, o Deportivo chegou à última rodada necessitando de uma vitória em casa para conquistar La Liga e desbancar o Barcelona de Cruyff e Romário, então tricampeão e alcunhado de Dream Team.

Contudo, um pênalti perdido pelo sérvio Miroslav Djukic, aos 44 minutos do segundo tempo, impediu o feito e levou a cidade de Corunha à depressão esportiva. O momento marcou para sempre a carreira do ex-defensor, que daria a volta por cima em 2002, quando seria campeão com o Valencia. Com o triunfo por 5 a 2 no Camp Nou contra o Sevilla, o Barça abocanhou a quarta taça consecutiva.

Para falar do ápice do Super Deportivo, é preciso voltar mais ainda ao tempo. Em 1988, quando o Deportivo vivia períodos de instabilidade financeira, agonizando na segunda divisão nacional, Augusto César Lendoiro assumiu a presidência sob negativa perspectiva. Apostando num modelo de austeridade, Lendoiro gradativamente diminuiu as dívidas cortando gastos com contratação de jogadores. A solução foi apostar na base, sob o comando do técnico Arsenio Inglesias Pardo, ídolo nos anos 50.

Finalmente, em 1991, a equipe galega retornou à primeira divisão. A partir daí, com o aumento das receitas, Lendoiro pôde começar a reforçar o elenco de forma mais ambiciosa. Uma das primeiras contratações foi Mauro Silva, que não tardaria a cair nas graças da torcida e virar ídolo do clube. O volante, tetracampeão do mundo com a Seleção Brasileira, ficou no Deportivo por 13 anos e tornou-se o terceiro jogador que mais vezes vestiu a camisa azul e branca (458 jogos oficiais disputados).

Deportivo La Coruña
No título de 2000, o Deportivo só perdeu dois jogos no seu estádio (Reprodução)

O LANCE! conversou com Mauro Silva para relembrar a gloriosa época. Até chegar ao auge em 2000, o time passou por oscilações naturais, com campanhas irregulares em âmbito doméstico e uma etapa positiva em 1994/95, quando conquistou a Copa do Rei vencendo a final contra o mesmo Valencia que havia se tornado um pesadelo outrora. Para Mauro Silva, a perda do Espanhol em 94 foi traumática.

- Foi difícil. Para mim, para o Donato e para o Fran, os três que estiveram em 94, foi um trauma. Para gente, para os torcedores... terminamos empatados com o Barcelona em pontos e perdemos porque eles fizeram melhor campanha. Seria fantástico ganhar o campeonato logo ali. Quando você está disputando um torneio contra Real Madrid e Barcelona, está disputando contra os dois melhores times do mundo. É muito difícil chegar às rodadas finais "pau-a-pau". Porque se um não chega, o outro chega. São dois times muito fortes, com orçamentos enormes. É muito complicado competir em 38 jogos.

"O vice em 94 foi um trauma. Em 2000, antes da rodada final, bateu aquela memória de novo. Tínhamos que esquecer esse trauma" - disse.

A escalação do Deportivo em 1999/2000 virou um almanaque para o torcedor. Songo'o; Manuel Pablo, Naybet, Donato, Romero; Mauro Silva, Flávio Conceição; Víctor, Djalminha, Fran; Roy Makaay formavam o onze inicial que ia a campo costumeiramente. Em 38 jogos, o Depor venceu 21 vezes, empatando seis e perdendo 11. Com 69 pontos, terminou cinco à frente do Barcelona. Assim como em 94, mais uma vez as equipes chegaram à última rodada com possibilidade de título. Mais uma vez, o Deportivo dependia somente de si. Apesar do final ter sido feliz, Mauro Silva reconhece o clima temerário pré-jogo.

- Bateu aquela memória de 94 de novo, é lógico. A nossa preocupação era esquecer esse trauma. Mas você via a festa dos torcedores, o clima, tudo preparado no estádio e tudo vinha a cabeça. Paramos e falamos: "não vamos permitir que isso aconteça novamente!". Mas, sabe, enquanto o jogo não acaba, fica difícil de esquecer. Nosso desejo era acabar com aquele trauma e conquistar o título. E conseguimos. Foi incrível. Incrível. Foi meu maior momento no La Coruña, minha melhor lembrança nessa passagem, futebolisticamente falando. A Liga Espanhola é um torneio muito difícil. Eu ganhei seis títulos no Deportivo, mas a liga é muito difícil. Não à toa, somente nove clubes ganharam o campeonato em toda a história - salienta.

Mauro Silva
Mauro Silva jogou no Deportivo por 13 anos (Foto: Site Oficial do Deportivo)

Um dos muitos jogos marcantes da campanha foi a goleada contra o Real Madrid por 5 a 2 no Riazor pela 23ª rodada. Àquela altura do torneio, o Deportivo viveu uma pequena má fase, com quatro derrotas, um empate e uma vitória nos seis jogos anteriores. Não obstante à queda de produção, um novo tropeço poderia marcar uma fuga do Barcelona ao término da jornada. Não foi o que aconteceu. Com gols de Roy Makaay, Djalminha, Víctor e duas vezes de Turu Flores, o La Coruña levou seus torcedores à loucura com uma atuação de gala. Que o diga Djalminha, autor de uma 'lambreta' no início do jogo que deixou os espanhóis boquiabertos.

- Foi uma atuação muito boa por causa do que representa o adversário. Você ganhar de 5 a 2 do Real Madrid é uma vitória contundente. Demonstra um potencial forte. Sem dúvidas, foi a melhor atuação do time na temporada. O Deportivo em casa... amigo, caiu ali era uma coisa difícil (risos). Tanto que o Real Madrid tem um dado interessante. O Real Madrid ficou 17 temporadas sem ganhar no Riazor, a partir de 92/93. Não estamos falando de qualquer time. Estamos falando do Real Madrid. Nossa casa era um caldeirão. Na Liga dos Campeões, metemos 4 a 0 no Milan nas quartas de final, naquela famosa virada (o Deportivo tinha perdido a ida na Itália por 4 a 1, na edição de 2003/2004). Tem um jogo contra o PSG que eu lembro que estávamos perdendo de 3 a 0 e, faltando 20 minutos pra terminar, viramos pra 4 a 3. Aquele estádio era um ambiente muito hostil pro adversário - afirma.

Confira o bate-bola com Mauro Silva.

Ainda falando em Real Madrid, o Deportivo venceu a Copa do Rei em 2002 contra o Real na casa do Real e no dia do centenário do Real! Aquele é um feito tão memorável quanto o título do Campeonato Espanhol, imagino. E sua atuação, Mauro, é muito recordada. Conte-nos um pouco mais sobre esse jogo.
Esse jogo foi incrível. Foi no aniversário de 100 anos do Real Madrid. Era o Real dos Galáticos: Roberto Carlos, Figo, Raúl, Zidane... O super time deles contra o nosso. Era realmente Davi contra Golias (risos)! O Real em casa, com a torcida, toda a festa. Eu lembro perfeitamente de todas as autoridades políticas presentes no Bernabéu naquele dia. O José María Aznar, que na época era o primeiro ministro espanhol, o Joseph Blatter, o Mariano Rajoy, que anos depois foi primeiro ministro do país, a Esperanza Aguirre. A festa pro Real estava pronta. Djalminha e eu encontramos o Flávio Conceição e o convidamos para jantar depois do jogo. O Flávio, de uma forma natural, espontânea, falou: "Ô Djalma, não vai dar pra jantar com vocês porque tenho uma festa depois do jogo". Aí o Djalma: "o que é isso? Festa? Já são campeões?" (risos). Tudo isso serviu de motivação. Tinha 20 ou 25 mil torcedores do La Coruña em Madrid. Eu não saía do vestiário antes do jogo para ir para o campo. Nesse dia, o Djalminha saiu. Quando ele voltou, perguntei como tava o ambiente lá fora. Ele virou e falou: "Mauro, tá toda a cidade de Corunha aqui!". (risos). Foi um jogo muito intenso, disputado. Tiveram umas jogadas de maior tensão. Mas deu tudo certo desde o início. Pra mim, foi a melhor partida que eu fiz com a camisa do La Coruña. Eu já conhecia o Zidane. Já tinha marcado-o quando ele jogava pela Juventus e pela França. Lá no Real, era mais difícil controlá-lo porque você tem Raúl, Figo, os companheiros de alto nível, o time era muito bom. Mas deu tudo certo e consegui controlá-lo bem.

O grande rival do Deportivo é o Celta Vigo, que também viveu um período positivo naqueles anos. Como era o clássico?
Era complicado. A rivalidade era forte. E o nível técnico do Celta era alto. Naquele momento tinha Mazinho. Giovanella, Vágner, muitos jogadores brasileiros que passaram pelo Celta. Tinha também os russos Karpin, Mostovoi. Era um time muito bom. Além da rivalidade, o nível técnico do Celta deixava os jogos ainda mais especiais. Foi um momento incrível pra região. O auge do Deportivo contra um Celta que frequentemente disputava competições europeias com um time muito forte e competitivo.

"Minha maior tristeza foi não ter vencido a Liga dos Campeões. Tínhamos time para isso" - lamenta Mauro Silva

O treinador daquele time era o Javier Irureta. Qual o mérito dele na construção do time, nas conquistas que vocês tiveram?
Pra mim, o treinador é sempre fundamental, até porque é ele que escala o time. O Irureta, se não me engano, ficou oito anos e ganhou quatro títulos. Jogamos cinco edições da Liga dos Campeões e fomos semifinalistas uma vez. O único lamento, aliás, foi não ter vencido a Champions. Poderíamos ter vencido. O trabalho do Irureta foi fundamental pra construir o time campeão. Tínhamos bons jogadores, mas sem dúvidas o trabalho dele foi excelente.

Aproveitando que você falou da Liga dos Campeões e do fato de não ter vencido, o Deportivo por duas vezes caiu para times "modestos", o Leeds United em 2001 e o Porto em 2004, na semifinal. Foram dois momentos decepcionantes pelo Deportivo?
Na Liga dos Campeões, sem dúvidas. O La Coruña merecia ganhar a Champions. E eu tive duas situações em particular nesses jogos. No primeiro contra o Leeds, em Leeds, eu não fui. Eu acho que estava suspenso, ou machucado. Só joguei o segundo em casa, que ganhamos por 2 a 0 (a ida tinha sido 3 a 0 para o Leeds). E também contra o Porto foi uma infelicidade. No primeiro jogo, eu tomei o terceiro amarelo. O árbitro alemão (Markus Merk)... (risos) eu não gosto de criticar árbitro, mas eu achei o cartão que ele me deu não era pra isso. Aí depois, teve o lance com o Jorge Andrade, nosso zagueiro português, que foi uma coisa que achei absolutamente boba. O Jorge Andrade jogava com o Deco (meio-campista do Porto em 2004) na seleção de Portugal. O Deco faz uma jogada na frente dele e sofre a falta. O Jorge Andrade chega perto do Deco e, como eles eram companheiros, faz uma brincadeira e dá um chutinho na bunda do Deco, tipo assim: "levanta aí, Deco, vamos jogar, para de história". Aquela brincadeira sadia. O árbitro alemão interpretou como agressão, chegou no Jorge Andrade e expulsou ele! Uma das coisas mais absurdas que vi num campo futebol. Aí no jogo da volta, o Jorge Andrade, que era importante, era zagueiro de seleção, fica de fora. Foi difícil. O Irureta acaba deixando o Djalminha de fora também. Era um jogador que num jogo desse nível poderia fazer a diferença. Mas foi uma pena. Uma pena mesmo. Pelo time que tínhamos, seria a cereja do bolo ganhar a Liga dos Campeões com a camisa do Deportivo La Coruña.

Mauro, aquela geração do Deportivo durou muito tempo, certo? Porque é campeão espanhol em 99/2000 e, por exemplo, em 2003/2004 alcança uma semifinal de Liga dos Campeões da UEFA. Nesse período, tem a conquista da Copa do Rei e outras campanhas positivas em La Liga. Por que aquela geração deu tão certo?
Investimento. Por exemplo, o Deportivo contratou Bebeto e eu, dois titulares da Seleção Brasileira. Aí o Bebeto saiu e o clube pegou o Rivaldo. Rivaldo ficou um ano e foi pro Barcelona, chegou o Djalminha. Aí você tem Djalminha, Cesar Sampaio, Luisão, Emerson, Donato, Roy Makaay, Luque, Sergio González, que hoje é treinador do Valladolid, o Pandiani, que é uruguaio, o Molina, enfim, tinha o Victor. O Roy Makaay depois foi pro Bayern, o Flávio Conceição depois foi pro Real Madrid. Era muito talento junto também. E muito investimento. Como era momento de juros baixos, o La Coruña apostou bem financeiramente. Mas pra você ver como o futebol é complicado. Ganhamos seis títulos em 13 anos. Mas depois vieram as dívidas, que chegaram a ficar próxima dos 200 milhões de euros. O La Coruña termina essa etapa de glórias, de conquistas e títulos e fica endividado. É difícil ter esse equilíbrio financeiro e esportivo no futebol.

Você é o terceiro jogador que mais vezes vestiu a camisa do Deportivo. Para muitos, é o maior ídolo do clube. Recentemente, uma rua em Corunha foi batizada de "Rua Mauro Silva". Como você recebeu essa homenagem?
Foi muito especial. Eu acho que é fruto dessa relação com a cidade. Porque extrapola o relacionamento "atleta-clube". Eu tive uma relação muito próxima com as instituições da cidade. Com a prefeitura, com Universidade, que criou um campo "Mauro Silva", o prefeito criou essa rua. E isso me deixa com muito orgulho porque eu sou brasileiro, né. Você sair do Brasil, ficar 13 anos num clube e receber tanto carinho a ponto de uma cidade colocar o seu nome numa rua é um motivo de orgulho. Pra mim e pro Brasil. O futebol brasileiro é enorme. Essa relação com o Deportivo sempre muito especial. Eu sou muito grato com o clube e o clube comigo, por ter continuado mesmo tendo propostas pra sair. Depois da Copa eu machuquei o joelho. Fiz uma cirurgia no tendão patelar e depois, na sequência, no tornozelo. O médico comentou que talvez eu poderia não voltar a jogar futebol. Eu tinha 26 para 27 anos e o Lendoiro me chama e fala: "Mauro, fiquei sabendo da situação. Estou te oferecendo uma renovação de contrato por mais quatro anos". Isso sabendo que eu tava machucado, que poderia, talvez, não jogar nunca mais. Diante de todas essas demonstrações de carinho, em um momento eu falei pra mim mesmo que jamais sairia de lá. Foi uma relação muito especial com o clube, com a cidade e os torcedores.

Você falou da cidade de Corunha. Como é a relação do povo com o futebol? Acredito que não só naquela temporada, mas nos anos do SuperDeportivo ela foi especial; mas é uma região que costuma respirar futebol, de fato?
Eu digo sempre que o La Coruña tem um grande time porque tem uma grande torcida. O estádio cabe 35 mil lugares e a cidade tem mais ou menos 200 mil habitantes. Quase 10% da cidade é sócio do Deportivo. Eles amam futebol. E um dado muito legal é o fato da cidade ser apaixonada por jogadores brasileiros. Isso é muito legal. Existe esse vínculo com o Brasil, com o nosso futebol, essa relação é muito bacana. Eles adoram o futebol brasileiro.

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