Um ano depois de sancionada, lei da SAF ainda gera o debate entre salvação e desconfiança nos clubes
Texto que oficializa a criação dos clubes-empresas faz aniversário em meio aos exemplos positivos entre três grandes, mas sob o julgamento de grande parte do público
Há exato um ano o presidente Jair Bolsonaro (PL) sancionava a lei que prometia revolucionar o futebol brasileiro, mas que ainda é motivo de forte discussão entre torcedores e dirigentes sobre sua funcionalidade: a criação das Sociedades Anônimas do Futebol. Desde então já são são 23 SAFs registradas nas juntas comerciais, em 11 estados.
GALERIA
+ Dedé rescinde contrato, novo reforço no Cruzeiro e mais… Veja as movimentações do Dia do Mercado!
Para muitos, a esperança de dias melhores. É com esse status que a Lei nº 14.193, que permite a instituição das SAFs, completa um ano de existência. A solução, que promete transformar o cenário para os próximos anos, apesar de parecer prática, requer muito conhecimento, discussão e planejamento.
Caracterizada por dar aos clubes um "respiro", principalmente por proporcionar a chance de recomeçar longe das dívidas, a SAF surge como um modelo capaz de abrir as portas para novas receitas, além de potenciais investidores. Para Jorge Braga, CEO do Botafogo e um dos principais encarregados pelo sucesso da transformação do alvinegro carioca após a venda do futebol ao estadunidense John Textor, essa possibilidade de mudança pode ser vista como uma belíssima ferramenta para os clubes rumo à modernidade.
- A lei não é um marco regulatório que irá resolver todos os problemas do futebol brasileiro, mas é uma belíssima ferramenta para solucionar o maior problema da maioria, que é o alto endividamento. De uma forma mais clara, é como se fosse criada uma startup, usando as cores e a bandeira dos clubes, e que os permite captar novos investimentos, criando novas receitas que proporcionarão investimentos em estrutura, novos jogadores e etc. Por outro lado, é preciso cumprir exigências como pagamentos condicionados à receita, divulgação de balanços e relatórios, responsabilidade civil, sendo um avanço em direção à uma modernidade que alinhará o Brasil com o que já é feito em outros lugares, especialmente na Europa - analisou.
Além do Alvinegro carioca, Cruzeiro e Vasco são outros gigantes nacionais que aderiram ao modelo da SAF. A Raposa foi adquirida pelo ex-atacante Ronaldo, enquanto o Cruz-Maltino acabou nas mãos da 777 Partners, um conglomerado dos EUA.
Ainda de acordo com Braga, no entanto, o sucesso de uma SAF vai muito além da injeção de dinheiro no clube. Citando sua experiência no Botafogo, o especialista chama atenção para a importância de se "preparar o terreno" antes de mais nada.
- A SAF é melhor aproveitada quando ela chega para ser a cereja do bolo. Antes da chegada do investidor, é preciso organizar a casa. Foi assim que fizemos no Botafogo. Demos um choque de cultura e de gestão no clube. Reduzimos despesas, melhoramos processos administrativos, buscamos novas receitas, honramos compromissos e mudamos a mentalidade de como encarar os problemas. Assim, quando o investidor, o clube já estava equacionado, com o endereçamento de suas dívidas. Sem dúvida, até pelo que vejo no mercado, o Botafogo hoje é um exemplo no processo de transformação em SAF - pontuou o CEO botafoguense.
Segundo Braga, cravar que as SAFs serão a salvação do futebol brasileiro é querer adivinhar o futuro. No entanto, essa 'segunda chance' dada pelo modelo pode mudar o cenário.
- Falar em futuro é complicado, mas acho que a SAF dá uma espécie de segunda chance. Se bem executada, é a segunda chance que pode mudar o cenário do futebol brasileiro, de movimentar peças. É importante também que os investidores tratem a SAF como um ativo do clube, colocando a instituição sempre em primeiro lugar.
Ainda que o assunto esteja muito em alta e o processo de transformação já esteja em curso em muitos clubes, Braga incentiva o caminho, coloca o alvinegro carioca como um desbravador e fala em 'muita água limpa para beber'.
- Não necessariamente é o modelo ideal para 100% dos clubes brasileiros. Alguns possuem seus modelos de gestão, outros não convivem com muitas dívidas. Mas, acredito que quem percorrer esse caminho, que já foi desbravado pelo Botafogo, ou seja, livre de surpresas, terá muita água limpa pra beber e certamente criará um diferencial competitivo.
TABELA
> Confira classificação, jogos e simule resultados do Brasileirão-22
> Conheça o novo aplicativo de resultados do LANCE!
MODELO JÁ GERA TRANSFORMAÇÕES NO FUTEBOL BRASILEIRO
Importante ressaltar que o modelo de SAF não se tornou atrativo apenas para os clubes grandes. Entre os pequenos, a procura em se transformar em empresa têm sido alta. Em São Paulo, os tradicionais Guarani, Ponte Preta e Portuguesa já estão com projetos em análise. E o Botafogo-SP aderiu neste ano.
- Na gestão do clube não mudou muita coisa, funcionamos como SA há mais de quatro anos. Por outro lado, as tributações foram regularizadas, otimizando a mudança administrativa das agremiações. Como já disse em outras oportunidades, a SAF é o futuro do futebol brasileiro, que sofre há décadas com dirigentes que não podem seguir um planejamento financeiro para atender a demandas políticas que os mantém nos cargos - afirma Adalberto Baptista, responsável pelo projeto empresarial do clube de Ribeirão Preto (SP).
Para especialistas em gestão esportiva, a aprovação das SAFs abre caminho para uma modernização completa no futebol brasileiro. E um dos pontos, por exemplo, é o crescimento na discussão pela formulação de uma liga de clubes, assunto que vinha sendo abafado nos últimos anos.
- Quando olhamos para o início de 2021 percebe-se que o panorama da organização do futebol brasileiro não era nada animador, pois não havia no radar qualquer sinalização quanto a criação de uma liga, a CBF continuava sendo comandada por interesses exclusivamente personalistas e os clubes se afundavam em dívidas, alavancadas pela pandemia, sem nenhum elemento ou fato novo capaz de trazer algum alento. Neste contexto, sob uma ótica conjuntural, minhas expectativas eram realistas-pessimistas. Passados alguns meses, em junho, surpreendentemente, os clubes voltaram a se organizar visando a criação de uma liga profissional para gestão das séries A e B. Tive a oportunidade de ser diretor jurídico da Primeira Liga, do início ao fim, e sei na prática as barreiras e dificuldades que se colocam para a realização deste objetivo. Não obstante isso, desta vez tudo indica que vai dar liga - apontou Eduardo Carlezzo, advogado, sócio do Carlezzo Advogados, especialista em direito desportivo.
Coautor do texto da Lei da SAF, o advogado especializado em Direito Desportivo José Francisco Manssur observa que a repercussão, as discussões e as adesões à SAF são muito maiores do que poderíamos imaginar, nas previsões mais otimistas.
- Em um ano, a SAF se incorporou ao vocabulário, ao noticiário e às discussões do futebol brasileiro. O número de adesões e clubes interessados no assunto demonstra, de forma definitiva, que o futebol brasileiro tinha uma demanda reprimida de investimentos, que dependia da edição de uma lei que trouxesse condições formais e práticas para quem tivesse o objetivo de constituir sociedade anônima para o futebol e, em especial, para investidores que buscavam segurança jurídica para aportar recursos no futebol pentacampeão mundial - destacou.
A lei da SAF, segundo Manssur, estabelece um modelo de governança e transparência muito importante e deve trazer modernidade e respiro financeiro aos clubes brasileiros em consonância com os principais clubes europeus.
Para Juliana Biolchi, diretora geral da Biolchi Empresarial e mestre em direito e especializada em revitalização de empresas, negociações complexas e recuperação extrajudicial, algumas certezas começam a se formar no horizonte, e muitas já vinham sendo antecipadas por especialistas. Dentre as mais importantes constatações, duas se destacam: o Regime Centralizado de Execuções (RCE) gerou mais perguntas do que respostas e, por isso, os clubes começam a buscar segurança jurídica, migrando para recuperações, quando o assunto é renegociar suas dívidas.
- Por ser um sistema pouco estruturado e repleto de lacunas, além de bipartido (há dois juízes responsáveis por tomar decisões: juiz do trabalho e o juiz cível), o RCE não é para todo e qualquer caso. Ele pode, sim, ser uma ferramenta adequada para determinadas situações, mas há outras, mais complexas, em que o endividamento é maior e mais capilarizado, que requerem outro tipo de tratamento. É aí que entram as recuperações, tanto a extrajudicial, quanto a judicial. Previstas na Lei 11.101/2005, são ferramentas à disposição dos clubes, por previsão na própria Lei da SAF, e que são (até pelo tempo de vigência da Lei que as criou – 17 anos) muito mais estáveis.
Em busca de juízo unificado, da oportunidade de elaboração e negociação um plano de reestruturação (e não só de pagamento) com seus credores, e, sobretudo, previsibilidade, a lista de clubes em recuperação só aumenta: Coritiba, Figueirense, Joinville, Paraná e Cruzeiro já fazem parte dela.
- A Lei da SAF, em pouco tempo, já deixou um enorme legado: está mudando o mercado de futebol no Brasil. Muitos clubes entenderam que precisam profissionalizar não só a gestão, mas também endereçar o problema do seu endividamento de forma estruturada e profissional. Os movimentos estão sendo feitos e alguns resultados já começam a aparecer. Em um ano, muita coisa aconteceu; e a tendência, daqui para frente, é que o processo se acelere. Quem não entendeu o momento, vai ficar para trás. Para esses, fica o alerta: não adianta varrer a sujeira para baixo do tapete, ela seguirá lá e, um dia, o que foi um pequeno problema vai se transformar numa ameaça à continuidade - completou Juliana.