menu hamburguer
imagem topo menu
logo Lance!X
Logo Lance!

Quatro décadas de tentativas frustradas: Brasil falha em conter a violência das torcidas organizadas

Entrada de membros desses grupos em CT´s na última semana ligou sinal de alerta

MAFIA-ATACA-MANCHA-2022-aspect-ratio-512-320
imagem cameraMáfia Azul realizou ataque contra Mancha Verde (Foto: Reprodução)
Avatar
André Caramante
São Paulo (SP)
Dia 21/07/2025
04:55
Atualizado há 3 minutos

  • Matéria
  • Mais Notícias

A presença de torcidas organizadas nos centros de treinamento voltou a se tornar rotina no futebol brasileiro. Nas últimas semanas, membros desses grupos estiveram nos CTs de Vasco, São Paulo, Corinthians e Sport. Enquanto em três clubes houve reuniões — algumas pacíficas, outras marcadas por cobranças e ameaças — o caso mais grave ocorreu no Leão da Ilha, onde a violência ultrapassou os limites do aceitável.

continua após a publicidade

O Lance! preparou uma série especial para mostrar como a escalada de tensão entre torcedores organizados e clubes tem avançado, com episódios cada vez mais frequentes de invasões, intimidações e protestos que pressionam dirigentes, comissões técnicas e jogadores, em um cenário que desafia a segurança e a governança dos times brasileiros.

Ao longo das últimas décadas, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, o Brasil coleciona dezenas de tentativas frustradas de coibir a violência promovida por torcidas organizadas de futebol. Apesar da persistência do problema, o Brasil não possui um órgão específico para tratar da questão, o que impede a formulação de políticas duradouras e faz com que medidas paliativas surjam apenas após tragédias, geralmente com mortes. É a chamada "legislação sob impacto” — medidas criadas às pressas, em reação a tragédias, sem planejamento ou continuidade.

continua após a publicidade

➡️ Siga o Lance! Fora de Campo no WhatsApp e saiba o que rola fora das 4 linhas

Nesse período, autoridades das mais variadas áreas e poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) criaram medidas com o objetivo de conter a violência nos estádios e em seus arredores, onde acontecem muitos dos confrontos. Desde 1988, foram registradas pelo menos 407 mortes relacionadas a confrontos entre torcedores, conforme levantamento realizado pelo jornalista Rodrigo Vessoni.

MANCHA ATACA MÁFIA 2024 2
Ataques entre torcidas organizadas (Foto: Reprodução)

Os números comprovam que, apesar dos esforços, os embates entre torcedores organizados continuam a fazer vítimas e a ameaçar o futebol como espaço seguro de convivência.

continua após a publicidade

A seguir, estão listadas algumas das iniciativas adotadas ao longo dos anos, acompanhadas de possíveis razões pelas quais muitas delas fracassaram ou tiveram pouco impacto.

  1. Estatuto do Torcedor (2003): Criou regras para proteger os direitos dos torcedores e garantir a segurança nos eventos. A falta de aplicação efetiva da lei comprometeu seus efeitos.
  2. Proibição de torcidas organizadas em estádios: Usada como punição, mas os torcedores continuam frequentando disfarçados ou em grupos não identificados.
  3. Cadastro de torcedores: Buscou mapear integrantes de torcidas organizadas. Falta de atualização e integração de dados limitou a iniciativa.
  4. Reconhecimento facial em estádios: Tecnologia para identificar torcedores violentos. Pouca abrangência e problemas legais com privacidade atrapalharam sua adoção ampla.
  5. Torcida única em clássicos: Restringe a entrada de torcedores visitantes em jogos de alto risco. Resolve parcialmente o problema, mas é medida paliativa e não impede confrontos nos deslocamentos das torcidas.
  6. Campanha "Cadeiras Vazias" - Movimento de Ocupação Pela Paz no Futebol (2024): Sensibilização sobre mortes causadas por brigas de torcida. Incentiva a convivência pacífica. Efeito simbólico, mas sem alcance transformador. Sofre com falta de continuidade e apoio institucional.
  7. Punições severas para torcedores violentos: Prisão e multas. A impunidade e demora na Justiça enfraquecem seu poder dissuasório.
  8. Acordos entre governo e CBF: Buscam criar estádios mais seguros. Resultados ainda incipientes.
  9. Cursos de reciclagem para policiais: Tentam preparar melhor a segurança nos estádios. Não são ofertados regularmente.
  10. Proibição de cânticos violentos: Visa combater discursos de ódio nas arquibancadas. Fiscalização ineficiente.
  11. Monitoramento de redes sociais: Usado para prevenir confrontos marcados online. Dificuldade em acompanhar todo o conteúdo postado.
  12. Responsabilização de clubes: Clubes podem ser punidos por atos de suas torcidas. Resistência dos clubes e dificuldade de controle coletivo.
  13. Eventos conjuntos entre torcidas rivais: Tenta promover paz e diálogo. Pouca adesão e risco de conflitos.
  14. Delegacias especializadas em crimes esportivos: Focadas em investigar delitos ligados ao futebol. Falta estrutura. A mais forte e atuante do Brasil é a Drade (Delegacia de Polícia de Repressão aos Delitos de Intolerância Esportiva), da Polícia Civil de São Paulo.
  15. Educação sobre violência esportiva em escolas: Conscientiza jovens. Pouca integração com clubes e torcidas.
  16. Controle de deslocamentos em massa: Busca coibir caravanas de torcidas rumo a jogos de alto risco. A ausência de integração entre estados, a escassez de recursos e o improviso das abordagens tornam a medida de difícil aplicação em larga escala.
  17. Proibição de bebidas alcoólicas: A medida buscava reduzir a agressividade dos torcedores, mas a venda clandestina contorna a regra. Em alguns estados, a liberação voltou a ocorrer por pressão da indústria de bebidas.
  18. Aumento da segurança privada em jogos: Reforço em grandes partidas. Falta de integração com polícia atrapalha.
  19. Controle de acesso com biometria: Visa impedir a entrada de torcedores punidos. Custo e manutenção dificultam aplicação.
  20. Cerco judicial a lideranças de torcidas: Processos específicos contra líderes violentos. Muitos escapam por brechas legais.
  21. Batalhões especializados em futebol: Tropas treinadas para atuar em eventos esportivos. Nem todos os estados contam com estrutura.
  22. Vistorias preventivas em estádios: Avaliações antes de jogos. Nem sempre são seguidas de medidas concretas.
  23. Controle de material de torcidas (faixas, instrumentos): Visa impedir que objetos virem armas. Fiscalização falha.
  24. Limitação no uso de uniformes de torcida: Impede acesso de membros de torcidas com trajes identificados. Contorna-se com roupas comuns.
  25. Vigilância com drones: Observa movimentação de torcedores. Uso ainda restrito.
  26. Reuniões pré-jogo com torcidas e autoridades: Busca organizar o fluxo e reduzir tensões. Nem sempre são respeitadas. Acontecem pouco.
  27. Proibição de instrumentos musicais em jogos de risco: Evita que virem armas. Medida controversa.
  28. Bloqueio de acessos a zonas de confronto: Barreiras físicas para evitar choques. Torcedores driblam os bloqueios. Proibição de torcidas visitantes em jogos de punição: Suspensões temporárias. Não atacam a causa da violência.
  29. Campanhas educativas nas mídias de massa: Visam conscientizar o grande público. Pouco frequentes e sem continuidade.
  30. Criação de observatórios da violência nos esportes: Entidades para estudar e propor soluções. Pouco articuladas com o poder público.
  31. Repressão a facções dentro das torcidas: Investigação de conexões com o crime organizado. Complexidade dificulta ações efetivas.
  32. Banimento judicial de torcedores reincidentes: Impede entrada em estádios. Difícil fiscalização.
  33. Criminalização de organizações com histórico violento: Proibição da atuação legal de certas torcidas. Reaparecem sob outros nomes.
  34. Limitação no número de ingressos para torcidas organizadas: Controla concentração de membros em setores específicos. Reduzido efeito prático.
  35. Cadastramento das torcidas organizadas nas federações estaduais de futebol: Visa identificar membros de torcidas. Costuma ser apenas burocrático, sem exigência de controle real sobre quem são os membros ativos.
  36. Busca coibir deslocamentos em massa para confrontos. Difícil de implementar em larga escala.
  37. Integração entre Ministério da Justiça e Ministério do Esporte: Alianças institucionais para articular ações. Pouco efetivas sem verba e apoio político. Enquanto o Brasil ainda recorre a medidas reativas e pontuais, outros países conseguiram enfrentar de forma mais eficaz a violência entre torcedores por meio de políticas públicas integradas, planejamento a longo prazo e articulação entre clubes, Estado e sociedade civil. Exemplos como Inglaterra, Alemanha e Argentina mostram que conter a escalada da violência é possível, desde que haja vontade política e estratégias consistentes.

Inglaterra – o caso clássico de reestruturação pós-tragédias

Nos anos 1980, a Inglaterra enfrentava um cenário de caos nos estádios, marcado pelo hooliganismo violento e frequentes mortes. O ponto de virada veio após a tragédia de Hillsborough (1989), que matou 97 pessoas. A resposta foi um conjunto de reformas radicais: demolição de estádios inseguros, criação da Premier League com novos padrões de segurança, proibição de torcedores com histórico de violência, câmeras de vigilância com uso judicial, e penas rigorosas com julgamento rápido. O combate ao hooliganismo se deu com políticas de Estado e cooperação entre polícia, justiça e clubes.

Alemanha – segurança com participação dos torcedores

A Bundesliga apostou em outro caminho: estrutura segura, ingressos acessíveis, diálogo constante com torcedores e investimento em prevenção. O país tem equipes especializadas dentro dos clubes para mediar conflitos e atua com forte inteligência policial para monitorar grupos de risco. A cultura do “torcedor cidadão” é reforçada com políticas sociais e envolvimento direto das torcidas em decisões organizacionais, sem abrir mão da repressão aos crimes.

Argentina – legislação dura e centralização da fiscalização

Na Argentina, onde também há histórico de violência associada às “barras bravas”, o governo criou o programa “Tribuna Segura” (2016), que exige identificação biométrica dos torcedores e impede a entrada de indivíduos com antecedentes criminais ou pendências judiciais. Além disso, o país criou o Comitê de Segurança no Futebol, órgão oficial que coordena ações entre federações, clubes e forças policiais — algo que ainda não existe no Brasil.

Mesmo com quatro décadas de tentativas, o Brasil ainda carece de uma política nacional articulada e contínua para enfrentar a violência das torcidas organizadas, seja nas arquibancadas ou fora delas. Sem investimento, coordenação entre entes públicos e privados, e envolvimento direto das torcidas em ações de cultura de paz, o futebol brasileiro continuará refém de medidas reativas, temporárias e, quase sempre, ineficazes — enquanto a violência segue se reinventando fora dos gramados e dentro de uma estrutura que segue ignorando a raiz do problema.

  • Matéria
  • Mais Notícias