Quatro décadas de tentativas frustradas: Brasil falha em conter a violência das torcidas organizadas
Entrada de membros desses grupos em CT´s na última semana ligou sinal de alerta

- Matéria
- Mais Notícias
A presença de torcidas organizadas nos centros de treinamento voltou a se tornar rotina no futebol brasileiro. Nas últimas semanas, membros desses grupos estiveram nos CTs de Vasco, São Paulo, Corinthians e Sport. Enquanto em três clubes houve reuniões — algumas pacíficas, outras marcadas por cobranças e ameaças — o caso mais grave ocorreu no Leão da Ilha, onde a violência ultrapassou os limites do aceitável.
O Lance! preparou uma série especial para mostrar como a escalada de tensão entre torcedores organizados e clubes tem avançado, com episódios cada vez mais frequentes de invasões, intimidações e protestos que pressionam dirigentes, comissões técnicas e jogadores, em um cenário que desafia a segurança e a governança dos times brasileiros.
Ao longo das últimas décadas, de Norte a Sul, de Leste a Oeste, o Brasil coleciona dezenas de tentativas frustradas de coibir a violência promovida por torcidas organizadas de futebol. Apesar da persistência do problema, o Brasil não possui um órgão específico para tratar da questão, o que impede a formulação de políticas duradouras e faz com que medidas paliativas surjam apenas após tragédias, geralmente com mortes. É a chamada "legislação sob impacto” — medidas criadas às pressas, em reação a tragédias, sem planejamento ou continuidade.
➡️ Siga o Lance! Fora de Campo no WhatsApp e saiba o que rola fora das 4 linhas
Nesse período, autoridades das mais variadas áreas e poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) criaram medidas com o objetivo de conter a violência nos estádios e em seus arredores, onde acontecem muitos dos confrontos. Desde 1988, foram registradas pelo menos 407 mortes relacionadas a confrontos entre torcedores, conforme levantamento realizado pelo jornalista Rodrigo Vessoni.

Os números comprovam que, apesar dos esforços, os embates entre torcedores organizados continuam a fazer vítimas e a ameaçar o futebol como espaço seguro de convivência.
A seguir, estão listadas algumas das iniciativas adotadas ao longo dos anos, acompanhadas de possíveis razões pelas quais muitas delas fracassaram ou tiveram pouco impacto.
- Estatuto do Torcedor (2003): Criou regras para proteger os direitos dos torcedores e garantir a segurança nos eventos. A falta de aplicação efetiva da lei comprometeu seus efeitos.
- Proibição de torcidas organizadas em estádios: Usada como punição, mas os torcedores continuam frequentando disfarçados ou em grupos não identificados.
- Cadastro de torcedores: Buscou mapear integrantes de torcidas organizadas. Falta de atualização e integração de dados limitou a iniciativa.
- Reconhecimento facial em estádios: Tecnologia para identificar torcedores violentos. Pouca abrangência e problemas legais com privacidade atrapalharam sua adoção ampla.
- Torcida única em clássicos: Restringe a entrada de torcedores visitantes em jogos de alto risco. Resolve parcialmente o problema, mas é medida paliativa e não impede confrontos nos deslocamentos das torcidas.
- Campanha "Cadeiras Vazias" - Movimento de Ocupação Pela Paz no Futebol (2024): Sensibilização sobre mortes causadas por brigas de torcida. Incentiva a convivência pacífica. Efeito simbólico, mas sem alcance transformador. Sofre com falta de continuidade e apoio institucional.
- Punições severas para torcedores violentos: Prisão e multas. A impunidade e demora na Justiça enfraquecem seu poder dissuasório.
- Acordos entre governo e CBF: Buscam criar estádios mais seguros. Resultados ainda incipientes.
- Cursos de reciclagem para policiais: Tentam preparar melhor a segurança nos estádios. Não são ofertados regularmente.
- Proibição de cânticos violentos: Visa combater discursos de ódio nas arquibancadas. Fiscalização ineficiente.
- Monitoramento de redes sociais: Usado para prevenir confrontos marcados online. Dificuldade em acompanhar todo o conteúdo postado.
- Responsabilização de clubes: Clubes podem ser punidos por atos de suas torcidas. Resistência dos clubes e dificuldade de controle coletivo.
- Eventos conjuntos entre torcidas rivais: Tenta promover paz e diálogo. Pouca adesão e risco de conflitos.
- Delegacias especializadas em crimes esportivos: Focadas em investigar delitos ligados ao futebol. Falta estrutura. A mais forte e atuante do Brasil é a Drade (Delegacia de Polícia de Repressão aos Delitos de Intolerância Esportiva), da Polícia Civil de São Paulo.
- Educação sobre violência esportiva em escolas: Conscientiza jovens. Pouca integração com clubes e torcidas.
- Controle de deslocamentos em massa: Busca coibir caravanas de torcidas rumo a jogos de alto risco. A ausência de integração entre estados, a escassez de recursos e o improviso das abordagens tornam a medida de difícil aplicação em larga escala.
- Proibição de bebidas alcoólicas: A medida buscava reduzir a agressividade dos torcedores, mas a venda clandestina contorna a regra. Em alguns estados, a liberação voltou a ocorrer por pressão da indústria de bebidas.
- Aumento da segurança privada em jogos: Reforço em grandes partidas. Falta de integração com polícia atrapalha.
- Controle de acesso com biometria: Visa impedir a entrada de torcedores punidos. Custo e manutenção dificultam aplicação.
- Cerco judicial a lideranças de torcidas: Processos específicos contra líderes violentos. Muitos escapam por brechas legais.
- Batalhões especializados em futebol: Tropas treinadas para atuar em eventos esportivos. Nem todos os estados contam com estrutura.
- Vistorias preventivas em estádios: Avaliações antes de jogos. Nem sempre são seguidas de medidas concretas.
- Controle de material de torcidas (faixas, instrumentos): Visa impedir que objetos virem armas. Fiscalização falha.
- Limitação no uso de uniformes de torcida: Impede acesso de membros de torcidas com trajes identificados. Contorna-se com roupas comuns.
- Vigilância com drones: Observa movimentação de torcedores. Uso ainda restrito.
- Reuniões pré-jogo com torcidas e autoridades: Busca organizar o fluxo e reduzir tensões. Nem sempre são respeitadas. Acontecem pouco.
- Proibição de instrumentos musicais em jogos de risco: Evita que virem armas. Medida controversa.
- Bloqueio de acessos a zonas de confronto: Barreiras físicas para evitar choques. Torcedores driblam os bloqueios. Proibição de torcidas visitantes em jogos de punição: Suspensões temporárias. Não atacam a causa da violência.
- Campanhas educativas nas mídias de massa: Visam conscientizar o grande público. Pouco frequentes e sem continuidade.
- Criação de observatórios da violência nos esportes: Entidades para estudar e propor soluções. Pouco articuladas com o poder público.
- Repressão a facções dentro das torcidas: Investigação de conexões com o crime organizado. Complexidade dificulta ações efetivas.
- Banimento judicial de torcedores reincidentes: Impede entrada em estádios. Difícil fiscalização.
- Criminalização de organizações com histórico violento: Proibição da atuação legal de certas torcidas. Reaparecem sob outros nomes.
- Limitação no número de ingressos para torcidas organizadas: Controla concentração de membros em setores específicos. Reduzido efeito prático.
- Cadastramento das torcidas organizadas nas federações estaduais de futebol: Visa identificar membros de torcidas. Costuma ser apenas burocrático, sem exigência de controle real sobre quem são os membros ativos.
- Busca coibir deslocamentos em massa para confrontos. Difícil de implementar em larga escala.
- Integração entre Ministério da Justiça e Ministério do Esporte: Alianças institucionais para articular ações. Pouco efetivas sem verba e apoio político. Enquanto o Brasil ainda recorre a medidas reativas e pontuais, outros países conseguiram enfrentar de forma mais eficaz a violência entre torcedores por meio de políticas públicas integradas, planejamento a longo prazo e articulação entre clubes, Estado e sociedade civil. Exemplos como Inglaterra, Alemanha e Argentina mostram que conter a escalada da violência é possível, desde que haja vontade política e estratégias consistentes.
Inglaterra – o caso clássico de reestruturação pós-tragédias
Nos anos 1980, a Inglaterra enfrentava um cenário de caos nos estádios, marcado pelo hooliganismo violento e frequentes mortes. O ponto de virada veio após a tragédia de Hillsborough (1989), que matou 97 pessoas. A resposta foi um conjunto de reformas radicais: demolição de estádios inseguros, criação da Premier League com novos padrões de segurança, proibição de torcedores com histórico de violência, câmeras de vigilância com uso judicial, e penas rigorosas com julgamento rápido. O combate ao hooliganismo se deu com políticas de Estado e cooperação entre polícia, justiça e clubes.
Alemanha – segurança com participação dos torcedores
A Bundesliga apostou em outro caminho: estrutura segura, ingressos acessíveis, diálogo constante com torcedores e investimento em prevenção. O país tem equipes especializadas dentro dos clubes para mediar conflitos e atua com forte inteligência policial para monitorar grupos de risco. A cultura do “torcedor cidadão” é reforçada com políticas sociais e envolvimento direto das torcidas em decisões organizacionais, sem abrir mão da repressão aos crimes.
Argentina – legislação dura e centralização da fiscalização
Na Argentina, onde também há histórico de violência associada às “barras bravas”, o governo criou o programa “Tribuna Segura” (2016), que exige identificação biométrica dos torcedores e impede a entrada de indivíduos com antecedentes criminais ou pendências judiciais. Além disso, o país criou o Comitê de Segurança no Futebol, órgão oficial que coordena ações entre federações, clubes e forças policiais — algo que ainda não existe no Brasil.
Mesmo com quatro décadas de tentativas, o Brasil ainda carece de uma política nacional articulada e contínua para enfrentar a violência das torcidas organizadas, seja nas arquibancadas ou fora delas. Sem investimento, coordenação entre entes públicos e privados, e envolvimento direto das torcidas em ações de cultura de paz, o futebol brasileiro continuará refém de medidas reativas, temporárias e, quase sempre, ineficazes — enquanto a violência segue se reinventando fora dos gramados e dentro de uma estrutura que segue ignorando a raiz do problema.
Tudo sobre
- Matéria
- Mais Notícias