Pó, dinheiro, traições, mortes e futebol: a rota do PCC pelo agenciamento de jogadores
Investigações rastreiam como facção criminosa tenta usar contratos e comissões no futebol para lavar dinheiro

- Matéria
- Mais Notícias
Das joias das bases de grandes clubes aos atletas profissionais, com passagens pela Seleção Brasileira e renome internacional, todos passaram a ser alvos de um grupo seleto de integrantes endinheirados do PCC (Primeiro Comando da Capital) para servir de peça na engrenagem movida por milhões do tráfico, principalmente o de cocaína. Aí entra o filtro: as empresas de agenciamento de jogadores. Contratos e comissões são investigados como usados para dar verniz legal ao dinheiro do pó.
➡️ Siga o Lance! Fora de Campo no WhatsApp e saiba o que rola fora das 4 linhas
Com as execuções do narcotraficante Anselmo Becheli Santa Fausta ("Cara Preta") e de Antonio Corona Neto ("Sem Sangue"), seu braço direito, em 27 de dezembro de 2021, no bairro do Tatuapé, zona leste de São Paulo, a engrenagem da máquina de lavagem do lucro do tráfico de cocaína com o futebol emperrou. As mortes puseram os negócios ligados aos dois no radar da Polícia Civil e, depois, da Polícia Federal e do Ministério Público de São Paulo — inclusive o uso do agenciamento de jogadores.
Anselmo Cara Preta era um broker (corretor, intermediário) responsável por negociar grandes carregamentos de cocaína para diversos membros do PCC. Coordenava a logística para o tráfico entre os países produtores da droga, a internalização no Brasil e, o que gerava mais lucro para ele e seus parceiros, as remessas pelo Porto de Santos para a Europa e África. Por isso, tinha o respeito dos aliados na facção.
Ao acumular milhões com o tráfico interno e internacional de drogas, Anselmo Cara Preta e Antonio Sem Sangue montaram métodos e buscaram parceiros para lavar o dinheiro. Com esse objetivo, passaram a usar negócios no futebol e, segundo documentos da Polícia Civil de São Paulo, mantinham a empresa Feerthi Evolution Esportes Ltda., de nome fantasia Promoesporte Brasil.

A Polícia Civil também constatou que Sem Sangue era sócio da Aqua Fish Comércio de Peixes e da Agência Promoesporte Brasil. Duas pontas — peixes e futebol — acenderam o alerta. Para o delegado Murilo Fonseca Roque, a combinação de ramos distintos somada ao histórico das vítimas “demonstraram um possível esquema para a lavagem do dinheiro obtido através do tráfico de drogas”. Ambas as frentes entraram no inquérito.
Anselmo Cara Preta e Antonio Sem Sangue foram executados, segundo a investigação do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), da Polícia Civil, e Ministério Público de São Paulo, a mando do empresário e corretor de imóveis Antônio Vinícius Lopes Gritzbach — apontado em relatório policial como suspeito de ordenar as mortes de 27 de dezembro de 2021. Os autos descrevem Gritzbach como responsável por movimentar e aplicar o dinheiro de Anselmo, inclusive com conversão de R$ 200 milhões em criptomoedas; a defesa do empresário sempre negou a participação dele nos homicídios.
Dias depois das execuções de Anselmo Cara Preta e Antonio Sem Sangue, a facção foi atrás de quem apertou o gatilho. O ex-detento Noé Alves Shaun foi rastreado. Assassinado e decapitado. A cabeça apareceu perto do local do duplo homicídio, um recado direto.
A partir dessa execução, a cadeia de nomes ganhou corpo: a investigação paralela do PCC chegou a um agente penitenciário apontado como um dos elos para contratar Noé Schaun para o duplo assassinato e, na sequência, ao elo central do jogo de traições — o corretor e empresário Antônio Vinícius Lopes Gritzbach.
Em janeiro de 2022, no Tatuapé, veio o primeiro acerto de contas da facção com Gritzbach. Rafael Maeda Pires (“Japa") e Danilo Lima de Oliveira (“Tripa") — investigados por integrar o PCC e usar agenciamento de jogadores para lavar dinheiro — participaram do sequestro de Gritzbach. Ele foi levado a uma casa usada como alojamentos para jovens jogadores de futebol e submetido a um “tribunal do crime”. Horas de terror, ameaças de morte e de esquartejamento.
Após um julgamento que durou 9 horas, Gritzbach acabou “absolvido" pela facção pelas mortes de Anselmo Cara Preta e Antonio Sem Sangue. Ele ressarciu R$ 27 milhões dos R$ 200 milhões que havia recebido de membros da facção para investir em criptomoedas, se comprometeu a devolver a diferença e passou a viver sob constante monitoramento do PCC e do “outro PCC”, como investigadores da trama passaram a tratar os policiais civis investigados sob suspeita de extorquir dinheiro do empresário.
Gritzbach foi morto com dez tiros de fuzil, disparados por dois policiais militares, segundo a polícia e o MP-SP, no aeroporto internacional de Guarulhos (Grande São Paulo), em novembro de 2024. O mandante do crime, ainda de acordo com a investigação, foi o traficante Emilio Carlos Gongorra Castilho (“Cigarreira"), outro membro do PCC que participou do seu sequestro em 18 de janeiro de 2022. Castilho tem prisão preventiva decretada pela Justiça pela morte de Gritzbach e está foragido.
+ Grupo ligado ao PCC consultou Danilo como 'crivo' para atletas da base do Corinthians
Danilo Tripa foi apontado por Gritzbach, em depoimento às autoridades sobre o “tribunal do crime”, como o mais violento e cruel durante o sequestro. Tripa repetira calçado luvas cirúrgicas ao dizer que esquartejaria Gritzbach caso ele não ressarcisse os R$ 200 milhões do PCC convertidos em criptomoedas, segundo o relato. Também disse para ele lugar para sua família e se despedir, já que iam mata-lo.
Encurralado por membros do PCC, Gritzbach decidiu delatar esquemas de lavagem do lucro do tráfico de drogas e, entre fevereiro e setembro de 2024, dedicou-se a tentar desmontar a engrenagem criminosa — em troca de eventual redução de pena pelos crimes que, segundo ele, ajudou antigos aliados a praticar por meio de negócios imobiliários, no setor automotivo e em criptoativos.
A partir desses relatos de Gritzbach, as autoridades passaram a mirar também os negócios do PCC conectados ao agenciamento de jogadores de futebol. É assim que Tripa e sua empresa, a Lion Soccer Sports, surgem como nomes principais entre os investigados sob suspeita de usar o futebol para lavar parte do dinheiro da facção criminosa obtido com o tráfico de drogas.
Tripa era amigo de infância de Anselmo Cara Preta e, em 24 de dezembro de 2021, apenas três dias antes do assassinato do broker do PCC e de seu braço direito, Antonio Sem Sangue, Tripa e e Cara Preta comemoram o Natal juntos. Foi nesse dia que Cara Preta disse para Tripa não fazer negócios com Gritzbach, “pois ele estava com má conduta nos negócios”.

Uma das raras aparições públicas de Danilo Tripa, de acordo com as investigações sobre o PCC, vídeos e fotos, aconteceu quando o lateral-direito Emerson Royal, formado na base do São Paulo e, hoje, no Flamengo, foi apresentado oficialmente, em 2 de agosto de 2021, como jogador do Barcelona (Espanha).
Na chegada de Royal ao time catalão, depois de ser comprado junto ao Betis (Espanha) por € 9 milhões, o dono da Lion Soccer posou ao lado do atleta, do presidente do time espanhol, Joan Laporta, e de Ulysses Jorge, um ex-jogador de futebol e dono da UJ Football Talent Intermediação Ltda, outra agenciadora de atletas na mira das autoridades após as delações de Gritzbach, com escritórios no Brasil e em Portugal.
"Buscamos enxergar o atleta como alguém que precisa de todo suporte para poder entregar o resultado do esporte em alto rendimento. Hoje em dia um menino de 10 anos já tem acompanhamento profissional, e a família precisa confiar em quem está tomando conta do seu filho. Temos esse cuidado, porque, somente desse jeito teremos novos Emerson Royal e Eder Militão [outro agenciado da UJ Football Talent]”, afirmou à imprensa Danilo Tripa, no dia da apresentação de Royal no Barcelona.

Danilo Tripa também já apareceu do lado de Murillo, zagueiro formado na base do Corinthians e vendido por € 12 milhões ao Nottingham Forest (Inglaterra), em agosto de 2023. O jogador foi outra joia da base corinthiana agenciada pela Lion Soccer, de Tripa. Outro zagueiro ligado à empresa é Vitão, do Internacional (Porto Alegre).
Outros atletas conhecidos e agenciados pela empresa de Tripa são: o lateral-esquerdo Ramon, ex-Flamengo e emprestado ao Vitória (Bahia), o atacante Guilherme Biro, ex-Corinthians e com passagem pela Seleção Brasileira de base, hoje no Sharjah (Emirados Árabes Unidos), e meio-campista Matheus Araújo, também ex-base do Corinthians, atualmente no Ceará.
Apesar das conexões, após as mortes de Anselmo e Antonio, Ulysses Jorge e a UJ Football Talent iniciaram uma tentativa de se desvincular de Tripa. Investigadores suspeitam que ele tenha atuado de forma não oficial em negócios da empresa, que, em abril de 2022, passou a negar publicamente sua participação.
A UJ Football Talent tem o zagueiro Eder Militão, do Real Madrid (Espanha) e com convocações para a Seleção Brasileira, como sua principal estrela. Outros nomes como o atacante Davidson, do Basaksehir (Turquia), o zagueiro Luan Patrick, ex-Athletico Paranaense, América Mineiro, RB Bragantino, Hellas Verona (Itália) e, hoje, no Estrela Amadora (Portugal), o meio-campo Rayan Lucas, formado no Flamengo e atualmente no Sporting B (Portugal), também fazem parte dos agenciados pela empresa.
Empresa de ex-jogador do Palmeiras recebeu dinheiro do patrocínio do Corinthians

No centro da teia de empresas investigadas, a UJ Football Talent, comandada pelo ex-jogador Ulysses Jorge, passou a ocupar lugar de destaque. Até então conhecida por agenciar nomes de peso — como Éder Militão e Emerson Royal —, a empresa voltou ao radar do Ministério Público de SP e da Polícia Federal, em 2024, por uma conexão direta com o escândalo do patrocínio da Vai de Bet ao Corinthians.
Relatórios oficiais descrevem que parte dos valores desviados do contrato milionário de patrocínio, assinado em janeiro de 2024 e avaliado em R$ 360 milhões, circulou por uma cadeia de empresas até chegar à UJ Football. A rota de repasses — que começou na empresa de fachada Rede Social Media Design, passou por Neoway Soluções Integradas, Wave Intermediações e Tecnologias e Victory Trading — terminou justamente na agência de Ulysses Jorge.
O próprio empresário agora é réu por lavagem de dinheiro, acusado de ter se beneficiado da triangulação financeira que drenou recursos do acordo com a casa de apostas. O caso reforça as suspeitas de que o agenciamento de jogadores, antes visto como um negócio paralelo da facção, se transformou em uma das engrenagens centrais da lavagem de dinheiro do PCC e seus aliados no futebol brasileiro.
FFP Agency e o “crivo" técnico de Danilo, ídolo do Corinthians

A FFP Agency é outra empresa de agenciamento e intermediação de jogadores de futebol dentre os principais alvos das investigações do Ministério Público de SP e a Polícia Federal sobre lavagem de dinheiro ligada à facção criminosa PCC.
Documentos da delação de Antônio Gritzbach, empresário executado em novembro de 2024 no Aeroporto de Guarulhos, e mensagens extraídas de grupos de WhatsApp revelam que a agência esteve no centro de negociações de atletas da base do Corinthians e de outros clubes de elite.
Apontado pela Polícia Civil como integrante do PCC, Rafael Maeda Pires, o “Japa”, foi considerado um dos sócios ocultos da FFP Agency. As mensagens mostram que ele tinha influência direta nas decisões da empresa, ao lado de Filipe de Lucca Morais Tancredi, dono formal da agência.
Rafael Japa endossava negociações e validava a importância de ter o “crivo técnico” de Danilo Gabriel de Andrade, ex-jogador e então treinador das categorias de base do Corinthians. Em junho de 2021, conversas em um grupo de WhatsApp mostram Tancredi relatando a Japa que havia consultado Danilo sobre o volante Du Queiroz, destacado como o “melhor jogador do Sub-23” e comparado a Paulinho, ídolo do clube.
Du Queiroz foi validado por Danilo em 2021 e passou a ser representado publicamente pela FFP Agency no mesmo ano. Igor Formiga, lateral então na base do Corinthians, hoje no Juventude, também aparece nas mensagens com referências a contrato de longa duração e é agenciado pela FFP Agency atualmente.
Outros nomes associados à agência são Gustavo Scarpa (Atlético-MG), Felipe Negrucci (São Paulo), Caio Matheus (ex-São Paulo), Guilherme Biro (Corinthians) e Murillo (Nottingham Forest).
Em maio de 2023, Rafael Japa foi encontrado morto dentro de um carro em um prédio comercial no Tatuapé, zona leste de SP, com um tiro na cabeça. A morte é investigada como possível suicídio forçado ou execução interna da facção.
A FFP Agency e Filipe Tancredi sempre negaram qualquer envolvimento com o PCC e sustentam que todas as operações são conduzidas dentro da legalidade.
Até agora, não há indício de participação criminosa por parte dos atletas citados nesta reportagem com o PCC, nem que eles sabiam das possíveis ligações das empresas que os representam com as investigações sobre a lavagem de dinheiro do crime organizado.
Tudo sobre
- Matéria
- Mais Notícias