Único negro na elite da vela foi ‘salvo’ por Grael e venceu olhares estranhos

Campeão mundial em 2015 como proeiro de Lars, Samuel Gonçalves afirma que ganhou respeito após títulos. Neste domingo, ele faz última regata internacional ao lado do ídolo

Samuel Gonçalves e Lars Grael
Samuel Gonçalves foi descoberto em projeto social e veleja com Lars Grael desde 2011 (Foto: Martina Orsini)

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Com a obsessão por vencer e velas ao vento, Samuel Gonçalves aprendeu a acreditar em sonhos impossíveis. Único velejador negro no circuito internacional de Star e, segundo ele, de toda a elite da vela, o proeiro de Lars Grael enfrentou olhares estranhos para chegar ao topo e atribui o tratamento à sua cor, em um esporte de gente branca.

Samuel conta que o Iate Clube do Rio de Janeiro, onde veleja, foi cenário de desconforto durante boa parte da carreira. Hoje, percebe avanços.

– No início, as pessoas lá me olhavam de forma estranha. Hoje, acontece menos. Depois que você obtém resultados, te respeitam mais. Mas até dois anos atrás, tinha gente que, mesmo sabendo quem eu era, só falava comigo se eu estivesse ao lado do Lars. Senão, passavam direto. É diferente quando estou com ele de quando estou sozinho – falou o velejador, de 31 anos, ao LANCE!.

O domingo será especial para ele. O Campeonato Europeu da classe, que tem status de Grand Slam da Star Sailors League (SSL), terá suas últimas regatas da fase classificatória e conhecerá a dupla campeã em seguida. A dupla fechou o sábado em 15º e ainda tenta entrar no top 10. O dia também marcará a despedida de Lars, de 55 anos, da vela internacional. Eles seguirão juntos em competições de Star dentro do Brasil.

Nascido em Niterói (RJ), o atleta ganhou da vida um mentor, parceiro e amigo, que não só deu a ele um rumo na vida, graças ao Projeto Grael, mas o impulsionou ao sucesso no alto rendimento. O ápice foi o título mundial de Star em 2015, em Buenos Aires (ARG), um marco de superação para um negro e um amputado. No ano seguinte, ficaram com o vice no evento, em Miami (EUA).

Desde o ano da maior conquista, no entanto, Lars veleja sem patrocínio, um dos fatores que o levou a encerrar a carreira internacional. Samuel tentará se manter no circuito, com outros parceiros.

– É curiosa a nossa dupla. Um negro com um deficiente físico. Eu sentia um misto de emoção nos velejadores quando perdiam para a gente, porque, apesar da derrota, ficavam felizes com a nossa caminhada – conta Samuel.

O projeto social, idealizado por Lars e seus irmãos Torben e Axel, leva a vela para as escolas públicas do Rio. Foi em 2001 que Samuel, de família humilde e ex-aluno da Escola Estadual Henrique Lage, no bairro do Barreto, na cidade fluminense, foi apresentado a um barco de Optimist, classe para iniciantes.

Ele se interessou pelo universo náutico e caiu no mundo das velejadas para nunca mais sair. Só lamenta que o reconhecimento tenha demorado.

– No resto do mundo, como aqui na Itália, as pessoas reconhecem os meus resultados, mesmo que eu nunca as tenha visto na vida. No Brasil, não é assim.

'Ele vai mostrar que é fera não à minha sombra', garante Lars

Na Itália, Lars compete com Pedro Trouche, excepcionalmente. A troca ocorreu devido à previsão do nascimento de filha de Samuel, Sofia, para junho, na época do Mundial da classe, entre 13 e 23 de junho, em Porto Cervo (ITA). O proeiro decidiu não disputar o torneio e mudou a programação de torneios, 

– Não acho que o Samuel seja visto com preconceito, mas como algo novo, bom e saudável para o esporte olímpico e, sobretudo, para a vela. As pessoas tratam ele com carinho. É um campeão mundial e é muito saudável para a classe a sua presença. Ele ainda vai provar para muita gente que é fera não à minha sombra, mas porque tem talento para brilhar – afirmou o medalhista olímpico de bronze nos Jogos de Seul-1988 e Atlanta-1996 na classe Tornado.

Na vela, a condição do proeiro, o responsável pela preparação das velas no momento da troca, não é de tanto prestígio quanto a do timoneiro, o encarregado der rumo ao barco. No Brasil, com a falta de uma tradição náutica, velejar em alto nível na função de Samuel Gonçalves é uma aventura ainda mais complicada.

O niteroiense pelo menos se orgulha de conseguir ganhar a vida dentro do meio. Sargento da Marinha, ele também é técnico em Máquinas Navais e árbitro em nível estadual. Fez faculdade de Desenho Industrial, mas a paixão maior é no mar.

– Aqui no Europeu, dos 90 barcos, 40 têm proeiros pagos para competir. Fora, dá para viver da vela. No nosso país, não é fácil, mas a gente dá um jeito – afirmou o velejador, que integrou o quadro de arbitragem no Pan do Rio, em 2007, e também trabalhou na Olimpíada do Rio nos bastidores, já que a classe Star não faz mais parte do programa desde o fim dos Jogos de Londres-2012.

Os demais proeiros do Brasil no Europeu são Bruno Prada (do americano Augie Diaz), Pedro Trouche (de Lars Grael), Arthur Lopes (do americano Paul Cayard) e Henry Boening (de Robert Scheidt).

BATE-BOLA
Samuel Gonçalves
Velejador, ao LANCE!

‘Se não fosse o Projeto Grael, não sei o que seria de mim atualmente’

Qual é a maior lição que o Lars te deu?
O que ele mais me ensinou foi a sonhar e a acreditar nos meus sonhos. É uma pessoa inacreditável, com toda sua garra e perseverança, de colocar metas e objetivos, como ser campeão mundial, mesmo depois do acidente que ele sofreu (em 1998, e que o levou a amputar a perna direita).   

Um momento marcante com o Lars?
Ele foi meu padrinho de casamento, um momento muito marcante. É um companheiro, um pai e um amigo. Foram oito anos velejando juntos, fora dez que eu o acompanhava, desde o início do Projeto Grael, no qual entrei em 2001. De um ídolo e herói da vela para um parceiro e amigo foi uma mudança grande. Sou muito feliz por tê-lo na minha vida.

Como foi o seu primeiro contato com a vela no Projeto Grael?
Quando vi um Optimist pela primeira vez, me interessei e fui com mais dois amigos ver como era. Foi paixão à primeira vista. Antes, o mar era só praia e pescar com meu pai. O projeto me mostrou um universo totalmente diferente, que é o náutico. E o esporte transformou completamente minha vida. Não sei o que seria de mim hoje se eu não tivesse entrado lá.

Por que ainda é tão difícil tirar o rótulo de esporte de elite da vela?
É algo cultural. O Brasil, no passado, cortou a cultura náutica, o que se reflete na política. Não tem marinas públicas, rampas, acessibilidade, como em outros países. As pessoas não se apegam a isso no Brasil. O stand up paddle e a canoa havaiana estão virando moda, o que é bom. Os projetos sociais são fundamentais para difundir o conhecimento do esporte. O Isaquias, por exemplo, é oriundo do projeto Segundo Tempo, do Ministério do Esporte. Não focam no alto rendimento, e sim a mentalidade marítima, o respeito ao meio ambiente, mas, quando se divulga o esporte, aparecem casos como o meu, que me tornei campeão mundial, e o dele.

*O repórter viaja a convite da Star Sailors League (SSL)

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