‘O esporte caiu em uma armadilha e tem de ser preservado’, diz Lars Grael

Velejador cobra punição de responsáveis por dívidas da época do financiamento de bingos ao setor durante anos 90, uma catástrofe que ainda causa danos ao COB e a confederações<br>

Lars Grael (Foto: Divulgação/CBDU)
O velejador Lars Grael é um dos atletas mais atuantes na política esportiva do Brasil (Foto: Divulgação/CBDU)

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Recém-aposentado da vela internacional, mas nunca menos preocupado com os rumos do esporte brasileiro, o velejador Lars Grael, dono de dois bronzes olímpicos e dois títulos mundiais, lamenta que seu esporte ocupe papel de destaque no enredo de uma novela trágica para o setor no país.

Uma dívida de R$ 200 milhões da extinta Confederação Brasileira de Vela e Motor (CBVM) com a Receita Federal levou o Comitê Olímpico do Brasil (COB) a sofrer bloqueio de repasses de verbas públicas em abril. Isso porque a entidade, assim como a Confederação Brasileira de Vela (CBVela), são consideradas corresponsáveis pelo rombo. A tragédia foi contornada pelo governo federal para a manutenção da verba da Lei Agnelo/Piva, essencial para financiar o esporte. Mas a pendência, sem solução, mantém o alerta ligado. 

Em entrevista ao LANCE! durante o Europeu de Star, válido como Grand Slam da Star Sailore League (SSL) e que marcou a despedida do atleta dos eventos mundiais da Star, em Riva del Garda (ITA)Lars, cobrou a responsabilização dos envolvidos e relembrou o contexto de financiamento dos bingos às modalidades, o que levou o esporte a cair em uma armadilha, como ele define.

Quais são seus planos após deixar a vela internacional?
Vou poder dedicar mais tempo ao Projeto Grael, que ajudei a conceber e instalar há 20 anos. E sempre que puder, pretendo ajudar na questão da política esportiva nacional, afinal sempre contribuí e fui Secretário Nacional de Esporte (em 1998). Não tenho nenhuma ambição de cargos públicos, mas sim vontade de ajudar para que possamos melhorar o esporte no Brasil. Eu tomei a decisão de encerrar minha carreira internacional na classe Star, mas não vou vou parar de velejar. Regatas de final de semana no Rio de Janeiro, seja de Star ou vela oceânica, continuarem fazendo. Quero aproveitar mais meu veleiro da classe 6 metros, um barco vintage, de 1933, fazer algo que nunca tive tempo na vida, que é cruzeiro, passear e curtir o barco. É uma fase que dedicarei mais tempo ao trabalho e à família e aos amigos. Quando surgirem oportunidades de participar de uma regata eu vou pelo prazer de velejar.

". Se acontece uma falência no sistema de educação e saúde, você não vai fechar hospitais e escolas. O esporte e a cultura são questões essenciais. É preciso encontrar solução."

O esporte brasileiro levou um susto, em razão de uma dívida antiga da vela. Isso preocupa?
A dívida da vela já aflige, em razão de toda uma circunstância que fez o esporte nacional cair em uma armadilha. Naquele período do governo Collor, o chamado “centrão” queria aprovar a liberação dos jogos de azar no Brasil. Quase conseguiram, quando houve uma reação de setores da mídia e da Igreja Católica. Quando viram que não haveria clima político para aprovar, sorrateiramente aprovaram a legalização dos jogos de bingo como forma de financiamento para o esporte, em uma lei que remetia toda a responsabilidade e risco para as entidades beneficiadas, e não por quem exercia o jogo do bicho. Isso gerou uma quebradeira generalizada no esporte brasileiro. Centenas de clubes, federações estaduais e confederações foram vitimas disto. Com a vela, não foi diferente.

Acha justa a responsabilização deste problema a entidades que nada tiveram a ver com ele?
É um fato lamentável, pois o esporte é um bem público. Se acontece uma falência no sistema de educação e saúde, você não vai fechar hospitais e escolas. O esporte e a cultura são questões essenciais. É preciso encontrar uma solução. Alguém tem de ser responsabilizado e o esporte tem de ser preservado. A CBVM foi uma das primeiras a se beneficiar de recursos do Bingo Augusta, em São Paulo. Isso gerou uma dívida fiscal enorme que inviabilizou a federação. Era impagável. A vela teve uma falência múltipla das atividades e o COB assumiu a gestão. Passados alguns anos, criou-se uma nova confederação, a CBVela, cujos propósitos e práticas não tinham nada a ver com aqueles do passado. Mas, no entendimento da Justiça, a atual entidade seria fiel sucessora da antiga. Essa dívida prejudica a vela, que está impedida de receber recursos diretos da Lei Piva. E o COB sofre devido à mesma dívida.

Foto Lars
Lars parou com a vela internacional na Itália (Foto: Marc Rouiller / SSL)

E quem seria responsável?
A decisão tem de ser tomada pela Justiça. A lei gerou a facilidade para que acontecesse a quebradeira do sistema de bingos e a responsabilização de entidades que eram só beneficiárias da arrecadação dos jogos. Cabe à Justiça avaliar o nível de conivência entre o dirigente esportivo e o empresário do bingo.

Que avaliação faz da vela brasileira hoje, em comparação com o seu início de carreira?

Na minha época, era tudo precário no Brasil, mas meus adversários já tinham uma estrutura parecida com a que os países têm hoje. A defasagem nossa perante os melhores do mundo era maior. Felizmente, conseguimos reduzi-la, mas a vela ainda precisa evoluir para que seja praticada por mais pessoas.

"Cabe à Justiça avaliar o nível de conivência entre o dirigente esportivo e o empresário do bingo"

O que mais mudou no período?
Quando comecei a velejar, no início dos anos 1980 (a primeira competição internacional foi em 1981), a vela vivia uma fase mais romântica e amadora. As pessoas com recursos tinham vantagem grande sobre os que tinham talento, mas não condições de comprar um barco e o material. Eu e Torben, filhos de um servidor público federal, tínhamos influência de uma família da vela, mas não as condições de nos lançarmos para uma carreira. Foi difícil. Então, veio o patrocínio esportivo, não de Lei de Incentivo, mas voluntário. Na época, houve um preconceito grande contra a introdução do patrocínio. Quantas vezes não participamos de regatas na vela de oceano ou olímpica e fomos desclassificados porque ostentávamos a marca de uma empresa? Éramos rotulados como mercenários.

Como foi o processo de sair do zero e chegar a uma medalha olímpica?
Primeira empresa a me apoiar foi a Xerox do Brasil, em 1984, ao doar um Tornado para mim. No final daquele ano, tivemos o apoio de um homem que era visionário, o Braguinha, que era presidente da seguradora Atlântica Boavista, assumiu a presidência do grupo Bradesco. Ele criou o Bradesco Esporte Clube. Como ainda tinha a proibição do patrocínio, o clube, no Rio Comprido, no Rio de Janeiro, filiava a todas as federações de modalidades que ele apoiava. Depois, para chegar à Olimpíada de Seul-1988 e à medalha olímpica, tive um patrocínio da Peróxidos do Brasil. Essa geração que criou uma viabilidade sustentável na vela foi um período duro, mas foi o que mudou o perfil do esporte.

QUEM É ELE

Nome 
Lars Schmidt Grael
Nascimento
9/2/1964, em São Paulo
Títulos
Dois bronzes olímpicos na classe Tornado (Seul-1988 e Atlanta-1996); campeão mundial de Snipe em 1983 (com Torben Grael) e de Star, em 2015 (com Samuel Gonçalves, já com a perna direita amputada após o acidente sofrido em 1998); 10 vezes campeão sul-americano e 23 vezes campeão nacional em classes olímpicas e pan-americanas.

* O repórter viajou a convite da Star Sailors League (SSL)

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