Ao L!, Rafaela Silva abre o jogo sobre Olimpíadas, doping e superação: ‘Não podemos desistir’

Após cumprimento de dois anos de punição, lenda do judô brasileiro vence grandes competições e retorna ao posto de número um de sua categoria


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Assim como num duelo no tatame, os obstáculos da vida parecem ter sido superados por Rafaela Silva. Lenda do judô brasileiro, a atleta passou dois anos punida por doping, se preparou e, agora, já soma mais um Campeonato Mundial, um ouro no Grand Slam de Antalya e detém o posto de número um de sua categoria (até 57kg). Em entrevista exclusiva ao LANCE!, ressaltou que não vai parar por aí: buscará mais uma medalha olímpica nos Jogos de Paris, que ocorrem em 2024, além do tão sonhado tricampeonato mundial.

Nada foi fácil. Antes de ficar com o ouro na Rio 2016, a atleta do Flamengo passou por momentos marcados por dificuldades e incertezas quanto ao prosseguimento da carreira. As críticas e ataques sofridos após a derrota em Londres 2012 a fizeram pensar em desistir do esporte. Porém, levantou a cabeça, reconheceu o seu potencial e se consagrou no cenário internacional. Ao L!, Rafaela Silva revelou detalhes da sua trajetória dentro da modalidade.

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NASCIMENTO EM MEIO AO ESPORTE

Criada na Cidade de Deus, na zona oeste do Rio de Janeiro, Rafaela conheceu o judô por conta da falta de oportunidade dada às meninas no futebol. Aos cinco anos, em um projeto da Associação de Moradores da comunidade, pôde escolher entre diferentes modalidades. Ficou com o esporte mais popular do Brasil, mas viu que nem sempre poderia competir. 

- Quando o meu pai foi na associação fazer a inscrição (para o projeto), tinha dança, judô e futebol. Eu queria ir para o futebol, porque eu não gostava muito de dançar, não levava jeito, e nunca tinha escutado nada sobre judô. Eu treinei durante um tempo futebol, mas não podia jogar sempre, porque era só para os meninos, não tinha para as meninas. Acabei indo para a segunda opção, conhecer um pouco a modalidade e acabei ficando - revelou.

A ascensão foi rápida. O talento da pequena Rafaela a colocou em novos ares, com torneios para federados e a possibilidade de tornar a prática desportiva em uma futura profissão. Veio a promessa que viria a ser cumprida: Geraldo Bernardes, primeiro mestre da atleta, disse que colocaria a futura medalhista olímpica na Seleção Brasileira de judô.

- Eu nem conhecia a modalidade, então falei para o meu pai: “esse velho está doido, não sei nem o que é Olimpíada, Mundial, só quero estar entre meus amigos brincando” - comentou.

Já adolescente, Rafaela Silva passou a almejar convocações para a equipe principal do Time Brasil. Aos 15 anos, começou a competir na categoria adulta. Um ano depois, inspirada em uma das maiores judocas do Brasil, realizou o sonho de representar a bandeira de seu país.

- Em 2007, quando tiveram os Jogos Pan-Americanos e o Mundial aqui no Rio de Janeiro, a gente foi assistir, levaram um ônibus do projeto que eu fazia parte. E foi onde eu pude ter o contato de assistir à competição, ver os grandes atletas. Quando ele (Geraldo Bernardes) começou a falar que eu poderia ir para a Seleção, não tinha para a minha idade. Falava que minha hora ia chegar, mas nunca chegava. Vi uma atleta que me chamou muita atenção, a Mayra Aguiar, porque ela era a atleta mais jovem da equipe. Eu coloquei na minha cabeça que ia chegar na Seleção jovem, como ela chegou. No ano seguinte, fui campeã do Mundial Júnior e fui convocada para fazer a seletiva para a Seleção - disse Rafaela.

PRIMEIRA QUEDA: LONDRES 2012

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Rafaela Silva lamenta derrota nos Jogos Olímpicos de 2012 (Foto: AFP)

Aos 19 anos, viria o primeiro grande desafio de sua carreira. Os Jogos Olímpicos colocam os atletas em evidência no cenário nacional, com um público maior acompanhando as modalidades, e internacional, com a consagração das referências de cada esporte. 

Na época, mesmo muito jovem, Rafaela já era candidata a medalhas. Em Londres, no entanto, foi desclassificada nas oitavas de final pela aplicação de um golpe ilegal. Em seguida, recebeu críticas e ataques de torcedores e pensou em desistir.

- Eu era quarta do ranking mundial, vice-campeã do mundo na época e na hora que eu perdi, eu estava bem chateada, não conseguia entender o que estava acontecendo. Parecia que o mundo estava parado, que a oportunidade que eu tinha de realizar o meu sonho tinha acabado - declarou.

O reconhecimento de que poderia dar a volta por cima cresceu em torno da atleta por conta dos conselhos recebidos após a eliminação. A judoca foi incentivada não só pela sua equipe do Time Brasil, mas por oponentes.

- Alguns treinadores das minhas adversárias vieram conversar comigo, disseram que eu era muito nova, que não precisava chorar e que a minha medalha olímpica iria chegar. Ali, eu entendi que tinha algo diferente, porque se os treinadores das adversárias que já eram medalhistas mundial e olímpica estavam falando aquilo de mim, eu poderia sim confiar e acreditar que poderia ir mais longe no judô - avaliou Rafaela, que conquistaria o ouro no Campeonato Mundial de 2013 e chegaria como uma das favoritas ao pódio na edição seguinte dos Jogos Olímpicos.

GLÓRIA NA RIO 2016

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Antes de tristeza, agora de alegria: Rafaela faz história em solo carioca com o ouro olímpico (Foto: AFP)

Em casa, com o apoio dos torcedores, sob os olhares orgulhosos de sua família. O ouro olímpico não poderia vir em cenário mais perfeito. Para Rafaela, os Jogos no Rio já seriam especiais pelo simples fato de ser uma anfitriã, mas conseguiriam superar mais barreiras por conta de uma vitória histórica.

- Tive a oportunidade não só de participar (de uma Olimpíada em casa), mas de sair com um feito enorme, que foi a medalha de ouro, com meus treinadores, amigos e muitas pessoas que participaram da minha trajetória. Foi muito especial. (...) Quando tocou o hino e os brasileiros começaram a cantar, fui entendendo. Foi mais uma sensação de alívio, de sair de uma Olimpíada onde as pessoas falaram que o judô não era para mim, que eu era a vergonha da minha família, e poder sair daquele tatame com uma medalha de ouro, foi mais uma sensação de alívio - desabafou.

O primeiro lugar no pódio do peso-leve (até 57kg) elevou o nível de confiança da atleta. Mesmo com a conquista do Mundial em 2013, ainda faltava uma resposta para si mesma nas Olimpíadas. Com a vitória, parecia ter superado todas as barreiras. Só não contava com uma penalização que a suspenderia dos tatames.

PUNIÇÃO POR DOPING, DOIS ANOS SEM LUTAR E VOLTA POR CIMA

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Rafaela Silva reafirma que uma grande atleta pode vir de qualquer lugar (Foto: Reprodução/Instagram)

Rafaela Silva conquistou a medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de Lima, em 2019. Porém, não ficou com a medalha: um exame acusou a presença de fenoterol, substância proibida de ser ingerida pelos atletas. Dessa forma, teve de ficar dois anos fora das atividades profissionais. Um golpe mais duro que um ippon.

- Um dos piores momentos da minha carreira. Faço judô desde os cinco anos, vou fazer 26 anos treinando judô e, de uma hora para a outra, recebi um e-mail falando que eu não podia mais subir no tatame. Então eu não podia mais treinar, não podia mais competir, se eu quisesse treinar teria que treinar com a sombra, porque não podia ter contato com ninguém, federado ou de alto rendimento - lamentou.

A atleta não poderia, portanto, competir nos Jogos Olímpicos de Tóquio, realizado em 2021. Deprimida, ganhou peso e sentiu que precisava se recuperar tanto fisicamente, quanto emocionalmente. Nesse momento, se iniciou uma caminhada rumo a mais uma volta por cima.

- Achei que o advogado ia conseguir resolver, que a situação era um erro, então tinha esperança de ir para Tóquio e defender o meu título. Mas foi passando a primeira audiência, a última instância e quando eu de fato recebi a notícia de que eu não ia, foi bem difícil. Fiquei alguns meses trocando o sofá pela cama, a cama pelo sofá, não fazia nada. Quando subi na balança, estava 11kg acima da minha categoria. Naquele momento, entendi que precisava fazer alguma coisa. Sabia que para o Japão eu não iria mais, mas que, se eu tivesse o objetivo de ir para as olimpíadas de Paris, precisava me manter em forma. Comecei a correr na rua, fiz uma parceria com uma academia para inventar alguma coisa, focar na parte física - contou Rafaela.

O sentimento de tristeza deu lugar à vontade de se provar. O retorno às atividades deu resultado. Quando voltou, de fato, aos tatames, estava mais leve e, em seu primeiro ano após a suspensão, acumulou feitos históricos.

- Depois do período de doping, eu sabia que queria voltar. Era algo que eu não fiz, então estava pagando por algo injustamente e queria mostrar para as pessoas que eu não precisava daquilo para ser uma atleta de alto rendimento. Coloquei na minha cabeça que eu ia voltar, ia pra mais uma olimpíada para representar o Brasil da melhor maneira possível - acrescentou.

Rafaela se sagrou bicampeã mundial no ano passado. Além disso, ficou com a prata no Grand Slam de Budapeste, uma das competições, de acordo com ela, mais difíceis da carreira. Em 2023, trouxe a medalha de ouro do Grand Slam de Antalya. Consequentemente, subiu posições no ranking e se tornou a número 1 do mundo mais uma vez.

- Reconquistei a minha confiança de saber que eu poderia estar entre as melhores. Meu objetivo é chegar não para contar a história positiva de que eu dei a volta por cima indo para as Olimpíadas, eu quero ter chances reais de trazer uma medalha - declarou a atleta, única campeã olímpica e mundial da história do Brasil no judô.

INSPIRAÇÃO PARA JOVENS MENINAS

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No topo: após volta por cima, Rafaela Silva não esconde o sorriso (Foto: Bruno Vaz/LANCE!)

Estar em uma posição de ídolo é uma missão tão difícil quanto encarar uma grande adversária durante três rounds. Ao mesmo tempo, talvez seja o troféu mais significativo que um atleta pode ter. Rafaela Silva, sinônimo de superação e conquistas, já teve as suas referências. Agora, impulsiona a prática desportiva de centenas de jovens meninas. 

- Estar do outro lado é muito gratificante para mim. Saber que eu tive exemplos, espelhos, ídolos que me ajudaram a evoluir não como atleta, mas como ser humano. O que eu faço hoje no tatame é para retribuir e mostrar para as crianças que independente da nossa cor, nossa quantia de dinheiro, se a gente tem um sonho, a gente tem um objetivo, a gente pode sim realizá-lo. Mesmo se as pessoas falarem que você não consegue.

- A gente não pode desistir dos nossos sonhos. Eu não desisti do meu sonho em Londres, por isso que eu estou aqui hoje. Se eu tivesse desistido dos meus sonhos lá atrás, eu não estaria contando essas histórias - finalizou.

Nos próximos dias, a lenda do judô brasileiro viajará de olho numa missão tão importante quanto os Jogos Olímpicos. Rafaela vai ao Qatar para defender o seu título mundial, em competição realizada entre os dias 7 e 14 de maio.

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