Guia dos Jogos Olímpicos de Inverno: Pequim entre politização do evento e consolidação econômica da China

Palco da Olimpíada de Verão em 2008, cidade-sede 'aproveita' estrutura e abriga Jogos de Inverno 14 anos depois. Governo chinês faz uso político e lida com reações de outros países

Logo Pequim 2022
Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim-2022 têm cerimônia de abertura oficial nesta sexta-feira (4) (Foto: ANNE-CHRISTINE POUJOULAT / AFP)

Escrito por

Os jogos Olímpicos de Inverno de 2022, que têm sua abertura oficial nesta sexta-feira (4), expõem contrapontos de um país. Sediada em Pequim, a competição traz uma China consolidada como a segunda economia do mundo e com condições de ter conseguido um feito raríssimo: em 2008, a cidade já  havia sido palco de uma Olimpíada de Verão. Contudo, por mais que a capital chinesa seja capaz de voltar a abrigar um evento de grande porte, as condutas autoritárias do Partido Comunista Chinês não são bem vistas por outros países.

CUSTOS ALTOS DOS JOGOS AFASTAM 'CANDIDATURAS EUROPEIAS'

Estocolmo
Estocolmo, capital da Suécia, foi uma das cidades da Europa que descartaram candidaturas  (Foto: AFP

A definição da cidade-sede da Olimpíada de Inverno de 2022 foi precedida por uma movimentação incomum do lado europeu. A primeira a descartar a candidatura foi Munique, ainda em 2013, após a população dizer "não" em um referendo, devido aos valores exorbitantes.

O temor pelos altos gastos também fez Estocolmo, capital da Suécia, e Cracóvia (cidade do sul da Polônia) rechaçarem a hipótese de sediar a competição.  Já a cidade de Lviv, na Ucrânia, utilizou como justificativa os conflitos entre o governo nacional e os separatistas pró-Rússia.

Posteriormente, a Noruega retirou a candidatura de Oslo. O Partido Conservador e o Partido do Progresso não aceitaram apoiar a competição, devido à falta de apoio popular para um evento que custaria muito aos cofres públicos.  

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Uerj, Maurício Santoro detalhou os fatores que levaram os europeus a não terem condições financeiras de receber a Olimpíada de Inverno de 2022. 

- No período da escolha da cidade-sede, entre 2014 e 2015, boa parte da Europa vivia uma crise muito grave. Foi uma década muito ruim, na qual países como a Grécia, Itália, Espanha e Portugal sofriam com a dívida externa e a União Europeia debatia se eles deveriam ser ajudados ou não. Além disto,  o Reino Unido saiu da União Europeia. Em meio a este contexto, houve a ascensão de movimentos populistas, com regimes autoritários. A própria Rússia aproveitou a realização da Olimpíada de Söchi para utilizar de maneira política o evento - destacou ao LANCE!.

Santoro apontou como a capital da China teve condições para manter sua candidatura aos Jogos de Inverno de 2022.

- O governo da China é extremamente autoritário. Os protestos ou manifestações da população são reprimidos com mão de ferro. Além disto, a máquina do governo é usada em prol dos interesses do regime da República Popular da China, que usa um evento da dimensão da Olimpíada como afirmação nacionalista - disse.

Pequim teve como sua única concorrente a cidade de Almaty, no Cazaquistão. A vitória aconteceu de maneira apertada, por 44 votos a 40. Pesou a estrutura que a capital da China tinha como legado da Olimpíada de Verão de 2008.  

OUTRA OLIMPÍADA EM PEQUIM: O QUE MUDOU NA CHINA 14 ANOS DEPOIS

Pequim (Cidade)
Pequim, de ascensão a símbolo da consolidação econômica chinesa (Foto: Bertha Wang / AFP)

Iniciada na última quarta-feira (2), a Olimpíada de Inverno mostra ao mundo uma China que teve um salto exponencial. O professor do Departamento de Relações Internacionais da Uerj, Maurício Santoro, explica quais foram as mudanças que ocorreram no país 14 anos depois de ter sediado uma edição dos Jogos Olímpicos de Verão.

- O intervalo entre as duas Olimpíadas é muito significativo para uma visão sobre o país. Em 2008, a Olimpíada de Pequim foi um marco da China que alcançou o posto de potência global. Agora, em 2022, os chineses têm uma economia bastante consolidada - e apontou:

- Neste período, o país conseguiu ter forças para rivalizar com o Ocidente em questões como o 5G e a inteligência artificial. Trata-se de uma China poderosa economicamente, mas com uma imagem política que piorou muito, principalmente devido à postura autoritária. Há repressão do governo, que tem duros conflitos políticos internamente e também com outros países - completou.

A postura do atual líder da República Popular da China, Xi Jinping, reflete os impactos ocorridos no país.

- O desenvolvimento tornou o governo mais disposto a fazer reivindicações nacionalistas que contrariam países do Ocidente. Este cenário aumentou a figura do líder forte, centralizador na China, semelhante ao que vemos hoje na Índia e na Rússia - constatou Santoro.    

CONFLITOS POLÍTICOS CULMINAM EM BOICOTE DE AUTORIDADES NOS JOGOS

Conflito em Xinjiang
Repressão em Xinjiang foi um dos motivos para autoridades de países do Ocidente boicotarem evento (Foto: Peter Parks / AFP)

Pequim disponibiliza suas instalações para a Olimpíada de Inverno em um momento no qual os chineses lidam com conflitos bélicos e tomam medidas discutíveis. Um dos desdobramentos envolveu um ritual tradicional dos Jogos.

- A disputa territorial entre a China e a Índia pela região do Himalaia ficou mais acentuada nos últimos anos. Em 2020, houve um confronto violento que feriu dezenas de soldados. Uma das pessoas que carregaram a tocha olímpica foi um soldado chinês ferido em uma batalha. A Olimpíada costuma ser um símbolo de paz, de competição... Foi uma medida que causou uma imagem negativa em outros países - afirmou o especialista em Relações Internacionais da Uerj, Maurício Santoro.

Países também não levarão representantes diplomáticos para o evento.

- Estados Unidos, Austrália, Reino Unido e Canadá são alguns que já explicitaram que não levarão autoridades para os Jogos Olímpicos. Somente os seus respectivos atletas competirão. Os países do Ocidente contestam a forma como a China age e suspeitam que eles ferem os direitos humanos - disse Santoro.

Dinamarca e Japão também aderiram ao boicote, assim como a Holanda, que afirmou que a causa é a pandemia de Covid-19.

O professor do Departamento de Relações Internacionais citou a repressão que aconteceu no Noroeste chinês.  

- Em Xinjiang, por exemplo, a opressão ficou ainda mais grave aos muçulmanos (do grupo minoritário uigure). Há registros de suspeitas de maus tratos, repressões, tortura... - detalhou.

Os demais acirramentos políticos aconteceram em áreas turbulentas. Uma delas foi em Hong Kong, na Costa Sul chinesa. O professor Maurício Santoro apontou.

- Hong Kong tinha ficado durante mais de um século (155 anos) como colônia britânica. Embora não chegasse a ser uma democracia plena, a região tinha liberdades civis, independência econômica... Em 1997, ano no qual Hong Kong foi devolvido à China, houve a assinatura de um acordo intitulado "Um País, Dois Sistemas". A região continuaria a ter uma relativa autonomia, com direito à democracia na política, além de liberdades econômica, religiosa e de expressão - e destacou:

- Desde que Xi Jinping assumiu o poder, no entanto, a postura centralizadora do líder aumentou os conflitos da China com esta região. Hong Kong era a capital da mídia chinesa, devido à liberdade que proporcionava para os jornalistas. Só que a repressão política aumentou e hoje são impostas restrições à imprensa. Jornalistas foram detidos, outros fugiram para outros países - completou.

Outra situação delicada é em relação a Taiwan. Inclusive, após um rumor de que iria boicotar os Jogos Olímpicos de Inverno, o país (que compete como Taipé Chinesa) afirmou que não enviará representante do alto escalação do governo ao evento em virtude da pandemia.

- Trata-se de um conflito que piorou muito. Taiwan tem sua autonomia, com democracia plena, poderes independentes e é uma região muito rica, com sistema capitalista e que também tem apoio e proteção dos Estados Unidos. A China ameaçou uma invasão militar em Taiwan e tomar medidas drásticas caso haja algum movimentos pró-separatista. Os chineses vivem um momento mais rigoroso do seu regime. Há um tom nacionalista, no qual o governo da China pretende anexar Taiwan como parte de seu território - destacou o professor do Departamento de Relações Internacionais da Uerj.

DESAFIOS DA CHINA PARA EVENTO SUNTUOSO 

Xi Jinping
Xi Jinping: líder chinês, que completará seu segundo mandato, teve seu poder ampliado por mudança na Constituição (Foto: AFP)

Os Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim trazem um pano de fundo político bem mais profundo. O líder Xi Jinping vê ao horizonte perspectivas de aumentar sua força no poder chinês.

- Xi Jinping foi eleito em 2012, inicialmente para um limite de dois mandatos. A lei estava em vigor desde a morte de Mao Tsé-Tung (que comandou o país entre 1945 e 1976). Entretanto, com a ajuda do Parlamento, houve a alteração na Constituição. Graças a isso, Xi Jinping pode prosseguir no poder - detalhou o professor Maurício Santoro.

Nos últimos anos, os chineses veem medidas retrógradas serem tomadas pelo regime.

- Embora a China tenha continuado a ser uma ditadura neste período, o atual líder chinês é bem mais autoritário. Antes de sua ascensão ao poder, o governo tinha diminuído a interferência no dia a dia dos indivíduos. Houve permissão para que a população pudesse fazer pesquisas na Internet por meio de mecanismos de busca e tivesse acesso a redes sociais do Ocidente. Mas isto mudou. No momento, eles só podem acontecer em sites semelhantes, mas de origem chinesa - explicou o professor do Departamento de Relações Internacionais da Uerj.

Maurício Santoro destacou a maneira como a China tende a aproveitar brechas para ficar atenta a movimentações cibernéticas dos atletas. Os sites de busca e redes sociais ocidentais são bloqueados para evitar circulação de notícias e informações "que desagradem o governo ou que, no ponto de vista deles, possa causar problemas para a sociedade".

- Há uma suspeita de tentativa de controlar a rotina dos atletas, com a instalação de aplicativos em seus respectivos celulares durante a Olimpíada de Inverno. A sofisticação tecnológica hoje permite que o Xi Jinping tenha controle sobre a população de uma forma que nem Mao Tsé-Tung conseguiu! - constatou.

Já em relação à competição, um dos aspectos chama atenção: a neve dos Jogos Olímpicos é artifical. 

- Embora Pequim seja frio, é uma cidade semi-árida, raramente há neve. Para conseguir a estrutura da Olimpíada de Inverno, é necessário desviar muita água (a estimativa que a China tinha em 2019 era de 185 milhões de litros para neve em eventos como esqui ou snowboard, mas membros do Comitê Olímpico Local garantem que só será gasto 1% do reservatório)- afirmou Maurício Santoro.

Xi Jinping, que foi prestigiado internamente também por seu combate à pandemia de Covid-19, agora arcará com a preocupação da nova escalada do vírus.

- O grande desafio da Olimpíada de Inverno é em relação à Ômicron e a outras possíveis variantes. A passar o máximo de seguranca sanitária tanto aos atletas quanto a eventuais torcedores que assistam às competições. Além disto, os demais países ainda veem com ressalvas a maneira como a China tentou controlar o avanço do novo coronavírus, que posteriormente se alastrou até se tornar uma pandemia - opinou o professor de Relações Internacionais da Uerj.

Contudo, o especialista frisou que, em meio a tantas turbulências, os chineses podem ser alvo de protestos na Olimpíada de Inverno de outra forma.

- A China é um país marcado por crises e, em edições de Jogos Olímpicos, há protestos positivos de atletas. Não é necessário sequer uma faixa ou uma bandeira. Gestos como o dos Panteras Negras se tornam marcantes. Não há um controle sobre isso de fato - explicou o professor do Departamento de Relações Internacionais da Uerj, Maurício Santoro.

Haverá muito em jogo.

News do Lance!

Receba boletins diários no seu e-mail para ficar por dentro do que rola no mundo dos esportes e no seu time do coração!

backgroundNewsletter