Portuguesa Santista é condenada por exploração de menores
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"Para você jogar bem, você tem que se alimentar direito". Essa foi a reação de Francisca do Nascimento, ao telefone, em Marabá, ao ouvir o filho, M., então com 15 anos, dizer que faltava comida no "alojamento" montado pelo "olheiro" Ronildo Borges de Souza para os meninos que vieram do Pará para Santos, com a promessa de disputar Campeonatos Paulistas Sub-15 e Sub-17 vestindo a camisa da Briosa, a Portuguesa Santista, time centenário de Segunda Divisão do litoral de São Paulo.
Os doze meninos de famílias pobres do Pará foram recrutados pelo conterrâneo Ronildo, que obteve procurações dos pais o habilitando a negociar qualquer tipo de contrato para os garotos sem, no entanto, transferir-lhe a guarda legal, nem fixar condições para que os meninos viessem para Santos com o "técnico", com diploma de treinador - em curso de 36 horas de aulas teóricas -, concedido pelo Sindicato dos Treinadores Profissionais de Futebol do Estado de São Paulo.
O sonho de se tornar um Ganso ou um Pará, ambos jovens de famílias humildes de origem paraense, fez bater o coração de pais e filhos e confiar no vizinho que visitava as escolinhas de futebol em busca dos meninos com maior potencial. Hamilton de Abreu, pai de D., conta que Ronildo era conhecido por levar garotos para jogar no Sudeste.
- Ele conversou muito bem, mostrou outros jogadores que tinham ido para o Cruzeiro, o Atlético, então a gente confiou - explica. - Nosso menino queria muito ir, também influenciado pelos colegas, pela promessa de chegar lá e começar a jogar. Como aqui não tem oportunidade, resolvemos deixar - afirma ele, que via a situação como uma chance do filho realizar seu sonho.
Os meninos foram inscritos para participar do Campeonato Infantil da Federação Paulista de Futebol, pela Portuguesa Santista, como prometera Ronildo, mas, aos poucos, os telefonemas se tornaram preocupantes para os pais.
- Chegou um momento que ele começou a ligar para cá: 'Pai, a gente não está passando muito bem aqui, está faltando comida' - diz Hamilton. Assim como outros pais, ele afirma que enviava mensalmente uma quantia de R$ 350 a Ronildo para a manutenção de seu filho em Santos.
No dia 2 maio de 2011, depois de uma denúncia anônima, o Conselho Tutelar da Zona Leste de Santos visitou o número 90 da Rua Bassin Nagib Trabulsi, onde viviam os doze meninos, no apartamento da zeladoria, uma "espécie de mini-kitchenette" de 40 metros quadrados no alto do prédio. De acordo com a declaração prestada ao Promotor da Infância e Juventude de 2011, em situação "bastante precária, mobiliário em péssimo estado e falta de limpeza e higiene em todos os cômodos. Observa-se que não havia alimentos e, quando questionado, o sr. Ronildo nos respondeu que iria providenciar".
No dia seguinte, o Ministério Público ajuizou uma Ação Civil Pública contra a Associação Atlética Portuguesa e Ronildo Borges de Souza, exigindo do clube que parasse de utilizar os adolescentes em partidas oficiais ou treinamentos até que estivessem sob guarda de pessoa responsável, com a documentação em Santos regularizada e matriculados na escola – direitos assegurados pela Lei Pelé. Também pedia a tranferência imediata dos garotos para hotéis e o pagamento dos custos para os que quisessem voltar para casa, sendo "impossível condescender que os jovens permaneçam em condições tão precárias, onde sequer recebem alimentação".
A ação civil foi acolhida pelo juiz da Infância e Juventude, Evandro Renato Pereira, que emitiu mandados de citação e intimação para Ronildo e o clube santista, que resultaram na volta de dois meninos para as casas dos pais e na tranferência dos outros dez para a Pensão Capelinha, R$ 30 a diária, incluindo as refeições, ainda assim melhor do que o apartamento sem ventilação e a ração de "frango e milharina (flocos de milho pré-cozidos)", que, segundo um dos pais, era a única coisa que os meninos comiam.
No dia 13 de fevereiro deste ano, o juiz considerou, em parte, procedente a ação do Ministério Público, fixando multa de R$ 50 mil por atleta em formação alojado precariamente e condenou "os réus a não inscreverem ou intermediarem de qualquer forma a inscrição de atletas em formação não residentes na Baixada Santista na Federação Paulista de Futebol sem que estejam matriculados, alojados adequadamente e recebam assistência médica, odontológica e psicológica; bem como garantia de retorno aos pais". Não considerou procedente porém a denúncia de tráfico de pessoa de acordo com o Protocolo de Palermo – que fixa as regras internacionais para esse crime – por considerar que não se configurava esse tipo de crime.
A condenação da Portuguesa Santista
O juiz também rejeitou a defesa da Portuguesa que contestou a ação civil do Ministério Público alegando ser "parte ilegítima" pois "terceirizou a exploração da atividade de futebol amador ao sr. Fernando Cezar de Matos, o qual passou a ter integral responsabilidade pelo desenvolvimento deste departamento". "Se transferiu a terceiro (Ronildo) tal tarefa, continua sua (de Fernando) a responsabilidade de supervisionar as atividades por ele desenvolvidas", diz a contestação, concluindo que o clube não teria "qualquer relação entre os fatos apurados".
"Se vieram para Santos e estão inscritos na Portuguesa Santista, é o clube, em última instância, que deve assegurar a eles todos os direitos da Lei Pelé e do ECA, sem prejuízo da ação regressiva contra pessoas", interpretou o juiz. E determinou: "Todos aqueles que de uma forma ou outra aproveitaram desse deslocamento ilegal de adolescentes para Santos, com vistas a aferir alguma vantagem futura esportiva ou comercial são responsáveis solidariamente por indenizar os adolescentes de todos os prejuízos (…). O clube por conta própria ou por terceiros não deve estimular que adolescentes cruzem o país se aqui não tiverem ótimas condições de desenvolvimento".
E, referindo-se a Ronildo, que apresentou as procurações dos pais, os certificados de matrícula dos adolescentes na escola - sem notas ou avaliação de presença - e contas de supermercado em sua defesa, disse o juiz: "Não se pode aceitar que pessoas ligadas ao clube ou empresários com interesses comerciais sejam guardiões dos adolescentes (…). A figura do guardião é afetiva e desinteressada, não empresarial".
Por telefone, o advogado Cláudio Luiz Ursini, representante legal de Ronildo disse à Pública que "não havia mesmo (alimentos) porque, se deixasse, a molecada comeria tudo errado". E afirmou que os meninos viviam melhor no apartamentinho condenado do que na casa dos pais. "O que eventualmente foi considerada uma condição ruim (pelo Ministério Público), para os meninos era muito melhor do que a condição que eles viviam na própria cidade", afirmou, utilizando a pobreza das famílias a favor de sua tese. Procurada pela reportagem, a Portuguesa Santista não quis se pronunciar pelo telefone.
Passando na peneira
O desejo de fazer parte dos "escolhidos", que conquistam uma nova condição social no futebol, é o principal fator para que pais e filhos caiam em armadilhas como essa que vitimou os meninos da Briosa, explica o ex-craque Raí Souza Vieira de Oliveira, um dos criadores da Fundação Gol de Letra, que desenvolve atividades culturais e educativas com crianças e jovens de baixa renda.
- A maioria dos atletas que jogam em clubes de destaque vêm de outros estados. Muitos são convencidos por oportunistas a entrar nessa aventura, sem nenhuma estrutura - diz Raí.
Mesmo os que conseguem realizar seus sonhos, muitas vezes têm sua formação prejudicada pela profissionalização precoce, estimulada por famílias e clubes.
- Eles esperam que dali saia um atleta, e só. Com isso fica faltando o outro lado, que é a formação, a orientação e a educação.
Ainda adolescentes, os jogadores disputam uma vaga nas categorias de base de clubes profissionais, tentando se destacar nos campeonatos estaduais. O Santos FC, por exemplo, realiza quase toda semana uma peneira (teste técnico) em alguma cidade do Brasil, onde são avaliados até 500 meninos de 10 a 17 anos. Em 2011, 30 mil garotos passaram por testes do clube.
Além disso, muitos chegam através de agentes ou empresários que têm contato com integrantes da equipe de grandes clubes e oferecem os meninos para fazer testes ou jogar em campeonatos juvenis. Em alguns casos, essa função é "quarteirizada", como ocorreu com Ronildo, contatado por Fernando Cezar Matos que prestava um serviço terceirizado para a Portuguesa Santista, como responsável pelo epartamento amador do clube.
- É comum os jovens chegarem aos clubes com 12 anos e ficarem até os 20 para se tornarem jogadores profissionais. Mas acabam não sendo utilizados no profissional e vão fazer o quê da vida? Não estudaram, não têm diploma, não têm absolutamente nada - diz outro ex-jogador, o Neto (José Ferreira Neto), comentarista da Rede Bandeirantes de Televisão.
Mesmo os exemplos de sucesso às vezes exigem grandes sacrifícios dos adolescentes e famílias, como no caso de Pará. Antes de se tornar o conhecido lateral, primeiro no Santos FC, teve que "vender o almoço para pagar o jantar", como conta o jogador, atualmente no Grêmio.
- Meus pais tiveram que vender quase tudo para me sustentar - diz Pará. - Um dia o treinador me disse que queria levar três ou quatro meninos para São Paulo, para jogar profissionalmente, e perguntou se eu queria ir.
Apesar da resistência de seus pais, ele aceitou o patrocínio do treinador e encarou os três dias de ônibus para a capital paulista, onde passou todo tipo de privação antes de se revelar como lateral.
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