Iazaldir Feitoza é vice na Tahoe Rim Trail 100 Milhas

Ultramaratonista carioca conta como foi sua preparação para uma das principais provas de trail dos Estados Unidos

Iazaldir Feitoza durante a Tahoe Rim Trail 100 milhas Endurance Run, uma das principais provas de trail dos Estados Unidos (Divulgação)
Iazaldir Feitoza durante a Tahoe Rim Trail 100 milhas Endurance Run, uma das principais provas de trail dos Estados Unidos (Divulgação)

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O ultramaratonista carioca Iazaldir Feitoza, campeão de várias provas de trail e de rua no Brasil e na América do Sul, conta sua jornada para a Tahoe Rim Trail 100 milhas Endurance Run, no estado de Nevada. A prova, uma das principais dos Estados Unidos, aconteceu no dia 20 de julho.

A ESCOLHA DA TAHOE RIM TRAIL 100 MILHAS

Todo final de temporada vem aquela pergunta o que farei no próximo ano, quais provas e lugares quero conhecer, será que terei tempo para treinar, em determinados momentos até me questiono se ainda sou capaz de percorrer algumas distâncias em um nível de excelência satisfatório.

E foi com todos estes questionamentos que iniciei o processo de montagem para meu calendário desta temporada. Entre os critérios a serem definidos decidi que a prova alvo deveria acontecer em pleno verão e teria que ser nos Estados Unidos por ter o sonho de conquistar uma das tradicionais fivelas entregue aos atletas que completam provas de cem milhas naquele pais.

Foi uma árdua pesquisa, pois para correr provas de cem milhas você precisa ter um certo handicap definido por sua participação em provas anteriores. Entre todos os requisitos a Tahoe Rim Trail 100 milhas Endurance Run foi a prova que meu handicap se encaixou. Mais para entrar na prova não basta você ter a performance solicitada, pois ela apenas qualifica o corredor a entrar em um concorrido sorteio limitado a 240 vagas, pois as leis americanas limitam o número de participantes em corridas de trilha em seus parques. No caso da Tahoe Rim Trail 100 mile Endurance Run, o limite para a prova de cem milhas são estas duzentas e quarenta vagas.

O SORTEIO

O sorteio acontece no último dia do ano e seu resultado e divulgado no dia 1º de janeiro. Na verdade tinha até me esquecido que estava inscrito neste sorteio. Só fui lembrado quando recebi um e-mail da organização com a confirmação que tinha sido sorteado para a prova.

A PREPARAÇÃO

A divulgação do sorteio já no inicio do ano me ajudou a definir um bloco de treinamento de seis meses, onde defini que colocaria como provas treinos a Tutan 100k, em Agulhas Negras (RJ), e a Maratona do Rio, como podem ver uma prova de trail e uma prova de rua.

A escolha da Tutan se definiu por ser no mês de abril. É um período perfeito para fazer uma prova de 100km, pois teria tempo para fazer alguns ajustes e acertos para as cem milhas em julho. Já a escolha da Maratona do Rio se deu primeiramente pela necessidade de não perder tanta velocidade com os treinos na montanha e manter um ótimo trabalho na melhora da utilização do VO2 durante a prova em Tahoe. Outro estimulo para a Maratona do Rio foi definir que correria ela para sub 3h, o que me qualificaria para a tradicional Maratona de Boston 2020.

Um dos pontos altos da preparação foi a criação do jargão “DEIXA DOER”. Ele que virou meu grito de guerra.

A PROVA

A prova tem sua largada em Sponner Lake e percorre as montanhas do famoso Lake Tahoe, no Estado de Nevada, em uma das trilhas mais icônicas: a Tahoe Rim Trail. Os atletas têm um limite de 35 horas para completarem estas 100 milhas, com um total de 10.972 metros acumulados entre subidas e descidas.

ACLIMATAÇÃO

Cheguei a Carson City uma semana antes da prova para fazer um processo de aclimatação à atitude e à temperatura. A prova é toda disputada acima de 2.000 metros e as temperaturas ficam em torno 30 graus com 10% de umidade do ar, ou seja um verdadeiro caldeirão.

O GRANDE DIA

Acordei às 2h, tomei um belo café da manhã. Me arrumei com calma e sai para pegar o ônibus que nos levaria até a linha de largada. Esta caminhada até o ônibus durou cerca de dez minutos. Pude perceber que estava me sentido descansado.

A largada aconteceu às 5h em Spooner Lake. Estavam ali alinhados, Bob Shebest, recordista do percurso, Chris Price, quarto colocado na tradicional Hard Rock 100 Milhas, Ben Tedore, corredor local campeão da prova de 50 milhas de 2018, Bryce Murry, Dennis Boic, Madison Hart, Elan Lieber, campeão da Kodiak 100 milhas, entre outros. Nos Estados Unidos têm corredor bom demais.

Meu objetivo era passar a primeira metade abaixo de 10 horas de prova e estar entre os 10 primeiros para ser mais forte e manter o ritmo constante na segunda metade e finalizar entre os cinco primeiros.

O primeiro PC, em Hobart, estava a sete milhas. Minha estratégia era começar devagar para analisar o terreno e os adversários, além de manter uma segurança para não ter nenhuma entorse durante o período sem luz natural.

Cheguei em Hobart entre os cinco primeiros. Fiz uma pausa rápida e sai para Tunnel Creek, que estava cinco milhas. Este PC funcionava como o centro da prova, pois ali passávamos seis vezes, sendo que a cada passagem íamos para uma diferente direção. Era preciso ficar atento para não tomar a direção errada. Neste PC funcionava um dos pontos de drop bags e foi neste ponto que deixei grande parte todo meu material de apoio durante a prova.

Sai deste PC na terceira colocação em direção ao PC Bull Whell e Diamond Peak. A minha prioridade ao chegar nestes PCS era fazer uma hidratação e alimentação, enquanto eu, calmamente, realizava as minhas necessidades. Os corredores locais enchiam suas garrafas rapidamente e seguiam. Já sabia que os caras faziam isso, mas eu tinha a consciência que este estilo não era para mim. Precisava manter minha estratégia e seguir em frente.

DOR E SOFRIMENTO

Ao chegar no PC de Diamond Peak estava lado a lado com Bob Shebest, recordista da prova. Este PC estava a 2.603m e chegaríamos a crista da pista de sky Crystal Ridge para uma subida de 518m em três quilômetros, onde atingiríamos o ponto mais alto da prova: 3.118ms.

Foi nesta subida de três quilômetros, com 500 metros de ascensão, que o diabo deu as caras pela primeira vez. Sentia como que se carregasse toneladas nas minhas costas e, ao mesmo tempo, sentia como que se o diabo enfiasse seu tridente em meu quadríceps. Era uma dor incrível. Lutava para suportar aqueles momentos. Gritava de dor e acreditava que estava pronto suportar aquilo tudo e que só precisava aguentar um pouco mais. Assim segui até começar a descer para chegar a Tunnel Creek. 

Não foi um alívio. Minhas pernas estavam inchadas. Eu estava inchado. Meu quadríceps destruído tentava me intimidar, mais eu lutava bravamente. Minha cabeça era a única coisa que funcionava naquele momento. No caminho de volta para Tunnel Creek, passei por uma pequena parte de gelo que ainda restara do inverno. Parei e enchi as mãos com gelo para esfregar nas pernas como forma de aliviar aquelas dores.

A fivela da Tahoe Rim Trail 100 milhas Endurance Run. (Divulgação)
A fivela da Tahoe Rim Trail 100 milhas Endurance Run. (Divulgação)

STONEHENGE 80K

Neste ponto fechávamos o primeiro loop de 80km. Estava na quinta colocação, com 9h26m13s de prova, ou seja, dentro do que eu tinha planejado. Fiz uma parada um pouco maior. Me alimentei bem e sai para o segundo loop. A prova é cem milhas, com duas voltas em percurso de 80km quilômetros. 

Agora sim a prova começou. Sai com este pensamento e gritando para o público presente. A subida até a milha 12 do Tunnel Creek teve seu inicio desastroso, mas, ao chegar na milha 7 da segunda volta, alcancei o quarto colocado que se arrastava. Isso foi uma injeção de animo, pois não importa em qual situação você esteja, ultrapassar alguém é sempre contagiante. 

Ao chegar em Tunnel Creek, agora pela quarta vez, sendo que esta era a primeira passagem neste PC da segunda volta. Avistei Bob Shebest, que ocupava a terceira colocação. Percebi que o cara não estava muito bem. Decidi fazer um breve refil e seguir em frente. Agora eu já estava na terceira colocação e com a moral elevada.

RED HOUSE LOOP

Este é um PC que não citei na primeira volta. Ele funciona como uma alça, com três milhas e meia para retornar ao Tunnel Creek. Pois bem, foi aqui que alcancei Ben Tedore, que estava em segundo lugar. Conversamos um pouco e falei que precisava seguir em frente.

DIAMOND PEAK II

O caminho ate Diamond Peak foi sobre uma noite de lua cheia incrível e de pensamentos maravilhosos. Fiquei martelando na minha cabeça que a subida de duas milhas deste PC até a crista da pista de Sky Crystal Ridge iria ser carregado pelo diabo. Mas agora eu enfiaria as pontas de meus bastões em seu quadríceps. Foram algumas milhas martelando isso na minha cabeça e deu certo. Fiz a segunda subida deste ponto melhor que da primeira vez: sorrindo, feliz e tirando sarro do diabo. 

SNOW VALLEY PEAK

Outro PC que não citei na primeira passagem. O caminho até aqui era incrível e com aquela noite de luar, ele se tornava mais belo ainda. Fui até este PC com a certeza que estava sendo perseguido por meus adversários. Tinha a certeza que se chegasse neste ponto na segunda colocação não a perderia mais. Me encontrava em modo automático, pronto para "Deixar doer" o quanto fosse preciso. Eu tinha sete milhas ladeira abaixo até a linha de chegada.

Sentei o sarrafo ladeira abaixo. Me sentia leve e forte. Acreditava que a qualquer momento poderia alcançar o primeiro colocado. Passava por cima de tudo. Sentia a presença da Manu, minha filha de 5 anos, gritando no meu ouvido: "não desista. Você é forte". Ao mesmo tempo me lembrava dos primeiros passos da Nina, minha outra filha, de 11 meses, que foram dados dias antes da minha viagem.

As lágrimas começaram a escorrer. Tentava dominar aquele sentimento. Ainda faltavam algumas milhas. Começava a passar um filme na cabeça. Você se lembra o quanto sua esposa foi companheira durante toda a preparação.

Enquanto sigo correndo e chorando feito criança de tanta felicidade, avisto as luzes na base de Sponner Lake. A linha de chegada está próxima. Estou prestes a completar pela segunda vez uma prova de cem milhas. Estou no pódio, top três. Lembro de uma frase do meu amigo Marcinho, que se recupera de uma cirurgia: “Só tem para os três primeiros”. Isso é demais. É uma sensação incrível e única.

Iazaldir com Chris Price, campeão da Tahoe Rim Trail 100 mile Endurance Run. (Divulgação)
Iazaldir com Chris Price, campeão da Tahoe Rim Trail 100 mile Endurance Run (Divulgação)

Ao cruzar a linha de chegada, sou recepcionado por George Ruiz, organizador da prova, e por Chris Price, campeão da prova. 

Obrigado a todos que acompanharam esta jornada. Foi um caminho incrível. Quando estiver doendo. “Deixa doer” e vai para cima, pois a dor de desistir é maior que a dor que você sentira até chegar à linha de chegada. 

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