Nova fronteira transposta! Mundial de Clubes surge como um marco na luta das árbitras brasileiras

Pioneiras da arbitragem valorizam escolhas de Edina Alves e Neuza Inês Back como representantes do país para o torneio e lembram suas superações no gramado 

Montagem Edina Alves / Neuza Inês Back
'Foi uma satisfação muito grande para mim, porque aqui no Brasil foi um trabalho muito difícil até a gente ter uma continuidade', diz Claudia Guedes, que apitou no Mundial Feminino de 1991 (Divulgação CBF)

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Por mais que Palmeiras e o Santos  ainda lutem para alcançar o título na Copa Libertadores, o Brasil já sabe de antemão que fará história na do Mundial de Clubes em fevereiro, no Qatar, de outra forma. A árbitra Edina Alves (Fifa/SP) e a assistente Neuza Inês Back (Fifa/SP) se tornaram as primeiras mulheres da história do futebol brasileiro convocadas para arbitrar uma competição de futebol masculino da Fifa. 

O feito foi celebrado por outras mulheres que, no Brasil, batalharam para ganhar espaço no apito. Foi o caso de Claudia Guedes, que fez parte do quadro de arbitragem da Fifa em competições como o Mundial feminino de 1991 e nos Jogos Olímpicos de 1996. Ao LANCE!, a ex-árbitra rasgou elogios à dupla.

- É extremamente merecida a escolha, fiquei muito emocionada quando anunciaram o nome delas. Edina é uma das grande árbitras e Neuza é uma das melhores assistentes do país. Foi uma satisfação muito grande para mim, porque aqui no Brasil foi um trabalho muito difícil até a gente ter uma continuidade, um reconhecimento - afirmou.


Também ex-integrante do quadro de arbitragem nacional, Maria Edilene Siqueira valorizou o empenho de todas para se tornarem referências para as mulheres que hoje seguem esta luta.

- Fiquei muito feliz porque o trabalho que a gente fez lá atrás surtiu efeito. É bonito ver que a batalha das mulheres continuou. Edina atua muito bem, faz jus à sua escalação, assim como a Neuza. Fiquei com os olhos marejados quando elas foram confirmadas - disse.

Hoje observadora e instrutora de VAR, a ex-assistente da Fifa Cleidy Mary Ribeiro destacou.

- Foram excelentes a escolhas da Edina e da Neuza. Elas não estão escaladas para o Mundial por causa do gênero, mas por estarem fazendo um excelente trabalho no Campeonato Brasileiro e em outras competições. É um histórico e merecido reconhecimento de profissionalismo - e detalha em seguida:

- Saber que fiz parte desta luta por dar mais oportunidades às mulheres é muito gratificante - completou. 

DE PROVOCAÇÕES MACHISTAS A DIFICULDADES PARA TER PROJEÇÃO: OS 'PERRENGUES' DAS PIONEIRAS

Edina Alves
'Demos alicerce para abrir caminhos', diz Cleidy Mary Ribeiro (Foto: Kin Saito/CBF)

A afirmação da arbitragem feminina no Brasil foi construída por muito suor, garra e superação. Em um período no qual havia restrições para mulheres praticarem alguns esportes (inclusive o futebol), Léa Campos fez o curso de arbitragem, mas foi barrada de participar inclusive da formatura. Das muitas dificuldades para apitar em federações do Brasil ao apoio do então presidente Emílio Garrastazu Médici, ela aos poucos se tornou a primeira árbitra do mundo, apitando jogos de competições femininas no exterior. A carreira,  contudo, foi interrompida por um acidente de ônibus que a deixou na cadeira de rodas por dois anos.

Em seguida, veio uma nova geração no apito. Porém, os apuros prosseguiram. Maria Edilene Siqueira contou como foram seus primeiros passos em Pernambuco.


- Fiz alguns jogos femininos no início da década de 1980 que transcorreram sem muito problema. Depois, comecei a ter espaço em jogos masculinos e me lembro que de início parecia que tinham medo de mim. Aí eu fui escalada para ser árbitra principal de um Sport e Santa Cruz, veja você, um clássico! Na época, o melhor jogador do Santinha era o Malhado. O jogo estava acontecendo e vinha ele no meu ouvido sempre que passava por mim: "sai daqui!", "vai pilotar fogão!", "vai limpar bunda de menino!", "sua rapariga"... - e em seguida, contou:

'O jogo estava acontecendo e vinha ele no meu ouvido sempre que passava por mim: "sai daqui!", "vai pilotar fogão!", "vai limpar bunda de menino!", "sua rapariga"', relembra Maria Edilene


- Quando teve uma falta e ele reclamou com mais veemência, me aproximei  e disse: "por gentileza, o senhor está expulso e sabe porque está saindo". Todo mundo do Santa Cruz veio em cima de mim e eu pensei: ou me consagro agora ou não dá mais. No dia seguinte, a imprensa falou: "Edilene dá show no apito". Respirei aliviada - completou.

Maria Edilene lidou com outro incidente após o jogo no qual o Corinthians venceu o Cruzeiro por 2 a 1 no Campeonato Brasileiro de 1993. Irritado por achar que o meia corintiano estava impedido na jogada, o lateral cruzeirense Nonato encontrou uma brecha em meio ao cerco da polícia e deu um chute na bandeirinha.

- Além do chute que ele me deu pelas costas, ouvi de tudo do time do Cruzeiro. E eu estava corretíssima no lance. Na hora não virei para ele. Muito tempo depois, fui apitar uma partida beneficente e houve o pedido de desculpas dele, que aceitei. Eu disse: "jogue sua bola, que eu apito" - declarou. 

Claudia Guedes também contou alguns obstáculos encontrados em seus primeiros passos.

- Fui da turma de formandos de 1983. Era muito difícil para nós. Tínhamos de nos deslocar sempre de ônibus para os jogos de campeonatos femininos, era bem mais complicado. Antes, não recebíamos taxas como árbitras da CBF ou da Fifa. Aos poucos fomos ganhando espaço - e detalhou:

- Fui escalada para o quadro de arbitragem do Mundial Feminino da Fifa, o primeiro da modalidade, que aconteceu na China. Tínhamos basicamente espaço nas competições femininas. Somente depois de muitos anos a Maria Edilene (Siqueira) e eu começamos a ter chances na Série A do Brasileiro masculino. Fui bandeirinha em jogo com José Roberto Wright, outro com Renato Marsiglia, enquanto a Maria Edilene esteve em uma equipe que teve como árbitro principal o Wilson de Souza Mendonça. Aí veio aquela história do Nonato com a Edilene (o pontapé do lateral-esquerdo na bandeirinha) e regredimos um pouco. Dois anos depois é que pude ter o privilégio de apitar em Atlanta, na primeira vez que o futebol feminino foi incluído nos Jogos Olímpicos - completou. 

A ex-árbitra contou qual era, aos seus olhos, o maior empecilho para o progresso da arbitragem feminina.

- Éramos muito bem recebidas pela imprensa, por torcedores, mas os dirigentes não nos prestigiavam muitos. No Rio de Janeiro, a gente tinha espaço em categorias de base e divisões inferiores e eu cheguei a apitar jogos também de times da elite estadual. Só que eu sempre era escalada para partidas entre times de menor investimento - completou Claudia.

'Nos preocupamos sempre em trabalhar com seriedade e proporcionamos que viessem seguidoras', diz Cleidy Mary Ribeiro


Segundo ela, a maneira como a ascensão ocorreu nos anos seguintes só comprova a qualidade das árbitras.

- A Edina e a Neuza provam que bastava dar uma oportunidade para que todas tivessem projeção. Foi o caso também da Silvia Regina, que graças ao apoio da Federação Paulista de Futebol (FPF), chegou aonde chegou, apitando jogos do Paulistão, do Campeonato Brasileiro - afirmou sobre Silvia, primeira mulher a apitar uma partida do Brasileirão masculino, no duelo entre Guarani e São Paulo, em 2003.

Cleidy Mary Ribeiro, que trabalhou por 16 anos na arbitragem e colecionou 13 torneios internacionais (dentre eles edições de Olimpíadas), reforça a maneira como as árbitras vêm pavimentando o espaço para comprovarem em campo seu valor.

- Acho que, lá atrás, conquistamos nosso espaço e demos alicerce para abrir caminhos. Nos preocupamos sempre em trabalhar com seriedade e proporcionamos que viessem seguidoras. Hoje temos árbitras profissionais ao extremo. As escolhas da Edina Alves e da Neuza Inês Back só vão fortalecer o Brasil, ainda mais em uma competição tão relevante quanto é um Mundial de Clubes  - destacou. 

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