Ao L!, especialista vê Flamengo repetir erro de rivais de São Paulo e diz: ‘Legislou em causa própria’

Economista e consultor de gestão e finanças do esporte, Cesar Grafietti analisa o impacto da nova MP, postura rubro-negra durante o processo e avalia o cenário para a Rede Globo

Flamengo Bolsonaro
Fla estreitou relações com Bolsonaro e viu êxito na assinatura da MP 984 (Foto: Divulgação/Presidência da República)

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Desde o último mês, os bastidores do futebol vêm gerando debates acalorados e disputa entre gigantes, inclusive na Justiça, após a Medida Provisória nº 984, publicada pelo presidente Jair Bolsonaro no dia 18 de junho, alterar as "regras do jogo" quanto aos direitos de transmissão. E o Flamengo liderou tal processo, avaliado por Cesar Grafietti, economista e consultor de gestão e finanças no esporte, a convite do LANCE!.

Além de tecer críticas em cima da elaboração da MP, Grafietti vê a postura do Flamengo favorável apenas para os seus "benefícios próprios", e não em prol da indústria, por exemplo. E comparou a atitude da diretoria atual com a do São Paulo, Corinthians e Palmeiras de momentos distintos.

- Eu veria o Flamengo como revolucionário se ele tentasse organizar os clubes de uma maneira onde a indústria crescesse. Na hora que ele (Flamengo) age pensando só no objetivo dele, eu vejo o Flamengo, hoje, como se via o São Paulo na época do tricampeonato brasileiro (2006, 2007 e 2008) ou o Corinthians do título mundial (2012) ou até o Palmeiras mais recentemente... (Flamengo) É o clube mais estruturado do momento e o que conquista mais, então, por isso, consegue impor os seus desejos e se achar acima do resto dos clubes. Não considero a melhor postura para um clube que já esteve, na história do futebol brasileiro, levantando bandeiras importantes, como a própria questão dos direitos de transmissão, uma bandeira levantada lá atrás pelo Flamengo, que (há cerca de 40 anos) não agiu em benefício próprio, mas, sim, em prol da indústria.

Assim, o Fla teria "legislado em causa própria", de acordo com o especialista em finanças do esporte, que externou a sua visão a respeito da tendência de streaming nas plataformas próprias dos clubes, diante de um cenário ampliado no futebol brasileiro - e cabe informar que a entrevista ocorreu antes do Rubro-Negro cobrar R$ 10 para não sócios-torcedores assistirem a Flamengo x Volta Redonda, no último fim de semana, pela semifinal da Taça Rio.

- Acredito que o Flamengo, hoje, tem força o suficiente para puxar isso de uma maneira que ele se beneficie naturalmente, já que tem a maior torcida e um poder de fogo muito maior que os outros. Neste momento, efetivamente, legislou em causa própria, e isso me parece muito ruim em relação ao resto dos clubes. Vou dar um exemplo do quão ruim é isso: ele conseguiu um belíssimo sucesso no jogo de quarta-feira (contra o Boavista, pela 5ª rodada da Taça Rio), nem foi tanto e nem tão pouco que a gente possa ignorar. Era um jogo que estava no meio de uma briga com uma TV (Rede Globo), houve excesso de entusiasmo, na prática era de graça, doava apenas quem queria. Conheço muita gente de fora do Rio que quis ver o jogo para ver como a plataforma funcionaria...

Cesar Grafietti: Eu veria como revolucionário se o Flamengo tentasse organizar os clubes de uma maneira onde a indústria crescesse

- Mas a hora que estiver em um ambiente normal de competição, com outras partidas sendo disputadas e você cobrando por isso (serviço de streaming), pois é óbvio que não deixará grátis a vida inteira, talvez você tenha um resultado menos satisfatório do que gostaria. Ainda assim, se alguém pode se beneficiar com um modelo desse é o Flamengo... Não precisa ir muito longe. Se o clube resolver fazer um pacote de 10 reais por mês para essas 2 milhões de pessoas que viram o jogo na quarta passada (dia 1º) poderem assistir aos 19 jogos do Brasileiro, por exemplo, vai receber mais ou menos o que já recebe da Globo... Mas é ele, Flamengo, que consegue fazer isso... É o Corinthians que talvez consiga... Não sei nem se Palmeiras, São Paulo e Vasco também conseguiriam. Você vai limitar, pois serão poucos clubes que terão a capacidade de êxito em um projeto solo desse. Resumindo: entendo que o Flamengo poderia ter agido de uma maneira mais construtiva para a indústria, mas ele olhou só a capacidade dele de gerar resultado e benefícios próprios neste momento - completou. 

Rodolfo Landim - presidente do Flamengo
Landim apresenta novo patrocinador master: Fla enxerga a criação da MP 984 como uma 'Lei Áurea' para os clubes (Foto: Marcelo Corte/CRF)

Confira abaixo outros temas da entrevista com Cesar Grafietti:

'NOVA MP 984 GERA MAIS PROBLEMAS QUE BENEFÍCIOS'

Cesar Grafietti: 
A questão da MP tem alguns aspectos que precisam ser discutidos. Primeiro, na minha opinião, a respeito do momento e da forma. Não era o momento para se debater isso, se for pensar em indústria no futebol, nem a forma, via MP. Penso que, em processos como esse, na hora em que você joga dessa maneira para o Congressos discutir, você está terceirizando uma discussão que deveria ser entre interna entre os clubes, sobre diversos temas, como as regras do direitos de TV e como eles acham a melhor forma de tratar o assunto. Daí, de uma forma organizada, levar para a mudança da lei, que é o que faz a diferença para eles. Levar de uma forma só dada como foi tem cara de atender principalmente a alguns interesses específicos. Primeira e obviamente, os do Flamengo, que estava sem as receitas do Carioca, mas também não podemos esquecer dos clubes que tinham assinado com a Turner, e aí tem a questão da tentativa da empresa em cancelar o contrato. Logo, eles também teriam um benefício com uma mudança tão rápida. Esse é o primeiro ponto.

Cesar Grafietti: O ideal é migrar para uma negociação coletiva, como são as ligas americanas de esporte ou as grandes ligas de futebol na Europa

- O segundo é pela tese em si. Acredito que o modelo que vigorava, até então, era ruim e uma de nossas jabuticabas. Só no Brasil você tem um contrato que é privado, mas que depende do coletivo para existir. Uma clara ineficiência. Se em nenhum lugar organizado do mundo existe esse contrato, é porque ele não é o melhor contrato para tratar desse tema. Quando você muda, muda para um modelo que, quando funciona isoladamente, gera distorções como nos casos de Portugal e do México. Em Portugal, você tem três times que se destacam (Benfica, Sporting e Porto) e que querem negociar sozinhos porque, para eles, vale muito mais que negociar em conjunto e entregar dinheiro para os clubes menores. Não estão preocupados com o desenvolvimento da Liga e da indústria local do futebol, já que todos os anos vão para a Champions League. No México também é assim, mas lá é uma grande confusão, porque os clubes têm donos, há uns que têm mais mais de um dono, tem TV que é dona de clube... É um campeonato rico, com bons atletas, mas que ninguém vê, na prática... Não tem transmissão internacional, com a exceção para os Estados Unidos. Então é uma liga que vale menos do que poderia valer. O ideal é migrar para uma negociação efetivamente coletiva, como são as ligas americanas de esporte ou as grandes ligas de futebol na Europa, que mudaram para um modelo coletivo, seja por acordo ou por lei.

- Penso que a MP (984) muda uma regra ruim para uma que não é a mais eficiente e gera mais discussão e problemas do que benefícios neste momento.

MUDANÇA PODE COMPLICAR A GLOBO NO FUTURO?

Cesar Grafietti: Acho que sim. O modelo de negócio da TV aberta vem perdendo força ano após ano. A Globo ainda é gigante. É um negócio extremamente forte. Ninguém tem que ter preocupação com a capacidade da TV, mas é óbvio que é um negócio que, no Brasil especialmente, vem perdendo força ano após ano, que é a programação da TV aberta. Ela tem migrado para outras alternativas: seja na TV a cabo ou no streaming.

Vamos lembrar que a renovação anterior de contrato nasceu com a Globo pedindo uma redução dos valores. Ela (Globo) entrou propondo uma redução de valores, aí a Turner, que era o Esporte Interativo na época, veio com uma proposta de aumento de valor, que gerou ali um problema. E a Globo teve que bancar aquele aumento que a Turner trouxe. Então, já é uma ideia da Globo reduzir valores desde lá detrás. Depois, ela veio falando na redução dos estaduais, que atrapalhava o processo do negócio do pay-per-view...

Tentando encaixar as coisas, na hora que ela (Globo) fala 'não quero mais o Campeonato Carioca', ela fica, na prática, com a única amarra o Campeonato Paulista, para atuar do jeito que ela gostaria, como é no campeonato nacional. Ao mesmo tempo, ela tem na mão uma oportunidade, já lançou a ideia: que se a coisa engrossar demais... 'Eu abro mão também do Brasileiro e aí vocês não vão ter onde buscar dinheiro...' Porque não tem 20 Flamengos... Não tem 20 clubes com capacidade de organizar uma TV para transmitir jogos com a mesma qualidade dela e a mesma receita do dia para a noite.

Então, acho que ela mexeu especialmente com uma peça importante deste xadrez, que é: 'Eu estou aqui, posso sair e vocês avaliam o resultado da minha saída deste processo'. Bom, eu não acho a Globo nem santa e nem demônio. Tem ganhos óbvios e tem prejuízos quando acontece alguma coisa diferente. Ela está agindo de uma maneira comercial e usando bem a lei de onde ela opera. Mas eu acho que ela deu um belo sinal, que assim: 'Eu também estou neste jogo e estou olhando as peças aqui. Eu vou mexer, se vocês (clubes) de repente acharem que eu não sirvo mais, eu vou tirar meu time de campo e vocês vão ter que buscar outro perfil... Talvez alguns (clubes) tenham que bater na porta dela de novo e falar: 'Então, minha alternativa é você'. Outros vão dizer: 'Não, eu vou seguir minha vida'... Acho que a gente, de fato, está num momento de transformação grande, inclusive, com o maior player desse segmento colocando um pouco suas cartas na mesa.

Globo x Flamengo
Globo rescindiu contrato após transmissão do Fla (Foto: Arte LANCE!)

CRIAÇÃO DA LIGA VIA LEI (EMENDA DO DEPUTADO PEDRO PAULO)

Cesar Grafietti: A MP recebeu cerca de 90 emendas. Ali transformou-se um assunto que seria específico em um grande Frankenstein e encheram de coisas dentro, inclusive com algumas que não fazem o menor sentido, como propor o refinanciamento das dívidas do Profut via recursos da Timemania... Uns negócios completamente malucos. O que o Pedro Paulo tenta colocar é na linha do modelo espanhol, já que ele e o Rodrigo Maia (presidente da Câmara dos Deputados) foram visitar a La Liga (representantes) e entenderam que é um modelo eficiente. Agora, lá já existia a liga e eles criaram uma lei para que todo e qualquer direito esportivo fosse negociado em conjunto, inclusive determinando a forma de distribuição. O que a emenda do Pedro Paulo coloca, pelo que eu entendi, e esse é o grande problema, obriga a criação de uma liga e uma negociação dos direitos através dela. Aparentemente, isso seria inconstitucional, porque você não pode obrigar ninguém a se juntar em grupo, como seria a criação da liga. Esse é mais um dos problemas... Quando você terceirizar, vai mudar a MP, que eventualmente pode ser aprovada com esta emenda inconstitucional, vai bater no STF (Superior Tribunal Federal), cair e, daqui a 120 dias ou um pouco menos, voltar para a situação anterior, pois a MP teria mudado de um jeito que não valeria e, obviamente, todas as alterações ali deixariam de valer e tudo retornaria ao modelo anterior (pré-MP). Ou seja: criaria uma confusão em 120 dias, traria o debate, que poderia existir sem a questão da MP, mas de nada valeria.

- Penso que a lei, e aí até vale uma alteração na lei, seria nesse sentido: todo e qualquer direito de transmissão pertence a quem organiza o campeonato, como é feito na Espanha, mais precisamente com a La Liga, que distribui as cotas de acordo com o estabelecido em lei, pois, se deixarem para os clubes definirem, pode ser que eles causem um novo descompasso na distribuição dos recursos. Por isso, há essa lei que centraliza e evita tais desarranjos.

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