‘Vai ser uma ressaca brava após a Olimpíada’, diz Magic Paula

Personagem da Entrevista da Semana no LANCE!, campeã mundial e medalhista olímpica no basquete vê o futuro do esporte brasileiro com desconfiança após a Rio-2016

Veja alguns momentos da carreira de Magic Paula&nbsp;<br>​
Ex-jogadora brilhou dentro das quadras, e agora é gestora esportiva (Foto: Reginaldo Castro)

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Se existe algo que não se pode falar de Maria Paula Gonçalves é que ela fica em cima do muro. Uma das maiores jogadoras da história do basquete feminino, campeã mundial em 1994 e medalha de prata na Olimpíada de Atlanta-1996, a eterna Magic Paula mostra com as palavras a mesma precisão cirúrgica com que armava incríveis jogadas nas equipes onde atuou em quase 30 anos de careira.

Gestora esportiva, comandando há 11 anos o Instituto Passe de Mágica, além de atuar como comentarista dos canais ESPN, Paula conversou com o LANCE! sobre sua expectativa para a Olimpíada Rio-2016. E em sua análise, mostrou-se preocupada com o cenário pós-olímpico para o esporte no Brasil.

– Acho que vai ser uma ressaca brava. Vai coincidir com o término de um evento sobre o qual se tinha uma expectativa enorme e a situação econômica complicada do nosso país. Porém, creio que poucos se deram conta – disse.

Confira a primeira das duas partes da entrevista com Magic Paula.

Qual é a sua expectativa em relação à Olimpíada Rio-2016, de modo geral?
Eu sempre brinco dizendo que quem faz Carnaval não vai ter problema para fazer Olimpíada. Não tenho dúvida que a parte de infraestrutura ficará pronta. Acho que conseguiremos fazer uma cerimônia de abertura extremamente profissional, temos pessoas supercapacitadas para fazer este tipo de evento. Mas para mim fica uma incógnita, que é a participação dos nossos atletas. Ainda não tenho muita confiança de que forma eles vão reagir a esse grande evento que será disputado em casa. Por ter sido atleta e participado de duas Olimpíadas, não sei se teremos estrutura mental e psicológica, de não criar uma pressão muito grande para eles.

Então a parte emocional pode ter um peso decisivo?
Sim, eu acho que pode, é um ponto que devem estar dando uma atenção especial, mas me preocupo um pouco. Você pode estar ali, no divã do psicólogo, conversando sobre o processo, mas a situação vivida é diferente da situação conversada. Às vezes não somos melhores em performance em grandes eventos por não ter essa capacidade de sustentar o emocional. Vamos enfrentar atletas que fizeram duas ou três universidades, que são mais estrategistas, com maior equilíbrio emocional do que a gente. Posso me equivocar também, pois o fato de jogar em casa poderá ser uma motivação, algo que te fortaleça e não que te pressione.

O COB, depois das Olimpíadas de Londres, estabeleceu a meta para o Brasil terminar no top 10 do quadro de medalhas, usando o critério de total de pódios obtidos. Você acha que o Brasil é capaz de atingir esta meta?
Acho que quando você coloca uma meta, você tem que planejar para chegar a esta meta. Não são em quatro anos que você vai conseguir estar entre os dez, pegar uma varinha de condão e alcançar esta colocação. Eu acho que um país que vai sediar uma Olimpíada precisa estar com isso no radar há pelo menos três ciclos olímpicos. E não depois, faltando quatro anos, sair correndo para definir uma meta. Para mim é muito claro ainda que chegar entre os dez primeiros não define que a gente está fazendo a coisa direito.

O Brasil soube aproveitar este período de preparação para os Jogos do Rio, desde que foi escolhido como sede, para de fato tornar-se um país olímpico?
Acho que não. Iremos viver uma Olimpíada de uma cidade, de um legado para uma cidade, e não conseguimos atrelar a esta organização esse plano de trabalho, para ter esta estrutura, atrelado nestes sete anos em que o Brasil conquistou a chance de sediar as Olimpíadas, de algo que estivesse sendo construído paralelamente, para deixar uma cultura esportiva. A gente não criou um modelo, não fizemos como a Austrália, como a China. A gente foi fazendo de um jeito que é assim: "Quem é bom, vem aqui que a gente vai te ajudar para continuar sendo bom". Acho que poderíamos ter feito algo melhor. E aí eu entendo que não é papel do COB, e sim do poder público, que está colocando muito dinheiro para a performance dos atletas de alto nível e a parte da base da pirâmide, que deveria ser de responsabilidade governamental, não está acontecendo.

O governo aplicou R$ 1 bilhão na preparação do Brasil para a Olimpíada, não apenas no investimento direto nos atletas, mas também em equipamentos, instalações, etc. Você acha que foi um investimento válido ou foi uma tentativa de consertar um caminho que estava errado?
O que aparece mais: o cara ganhando medalha, ou a molecada brincando de esporte lá na periferia? Quem vai tirar foto com a presidenta? São os atletas que ganham medalha. Houve uma inversão dos papéis visando mostrar como o governo apoiou o esporte. Só que o esporte tem vários segmentos e eu não sei se este seria o papel [do governo]...Hoje, 80% dos recursos investidos no esporte são do governo federal. É algo para mim bastante assustador.

"O que aparece mais: o cara ganhando medalha, ou a molecada brincando de esporte lá na periferia? Quem vai tirar foto com a presidenta? São os atletas que ganham medalha. Houve uma inversão dos papéis visando mostrar como o governo apoiou o esporte"

A gente vive em um país que tem a monocultura esportiva do futebol. Você acha que isso pode diminuir de alguma forma com a realização dos Jogos Olímpicos?
Eu acho que não, porque isso é construído ao longo do tempo. Não é um evento que vai mudar a cultura das pessoas. Isso é uma coisa que tem que se construir no dia a dia. E onde isso começa? É com a criança. E onde as crianças estão? Na escola. Eu acho que essa monocultura existe porque a TV vende demais esse produto futebol. Vende demais a imagem de quem joga futebol é rico, é milionário. Essa cultura esportiva tem que ser construída com um sistema diferente para que daqui a dez anos possamos falar que tem um sistema de esporte no Brasil no qual conseguimos deixar uma semente, um legado, para que as crianças possam descobrir que outras modalidades também são legais.

Como você compara o esporte brasileiro do ponto de vista esportivo e administrativo, da época em que você era atleta, com o tempo atual?
Acho que não mudou muita coisa. Temos algumas exceções que seguiram um caminho da profissionalização, enxergando como algo que dá retorno e que custa dinheiro. Mas são poucos que ainda vivenciam isso, se contam nos dedos as entidades que partiram para este processo. Ainda continua lá no tempo que eu jogava, com pouco apoio. Quando eu falo que ainda vivemos no amadorismo, vou tirar algumas poucas exceções, que sabem de quem eu estou falando, mas o dirigente brasileiro de modo geral é bizarro. Uma coisa que me incomoda muito é que o COB repassa recursos para estas confederações, mas falta ensinar o que fazer com esta verba, e se não fizer daquela forma, não receberá. Só que este dinheiro continua saindo. Você não força muito para que as pessoas se tornem profissionais.

"E tem gente que acha que depois que ganhar medalha, vai estar por cima. Pergunte aos poucos medalhistas do Brasil se alguma coisa mudou depois de uma Olimpíada"

Você imagina como será o cenário esportivo do Brasil depois da Rio-2016?
É algo que pouca gente está pensando. Não digo nem pós-2016, já depois de agosto, setembro, é uma interrogação imensa para mim. Porque quando você está desenvolvendo um trabalho, tem que pensar num plano B. Não dá para sair de um cenário onde tem tudo e depois não ter nada. Os atletas precisam estar conscientes de que não adianta querer ganhar tudo agora e depois não ter nada. E tem gente que acha que depois que ganhar medalha, vai estar por cima. Pergunte aos poucos medalhistas do Brasil se alguma coisa mudou depois de uma Olimpíada. Falta também essa conscientização para os atletas que um dia eles vão parar e precisarão fazer com que seu dinheiro seja melhor aplicado para sobreviver lá na frente.

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