Qualquer torcedor se assusta quando lê a notícia de que um jogador do seu time rompeu o Ligamento Cruzado Anterior (LCA). Essa lesão causa temor em atletas do mundo inteiro por envolver longo tempo de afastamento, recuperação delicada e risco de reincidência. Em conversa com diferentes médicos especializados na modalidade, o Lance! buscou entender os principais desafios dessa “maldição” do futebol.

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O LCA é um dos chamados contentores primários do joelho, um ligamento que impede o deslocamento da tíbia para a frente. A ruptura é a descontinuidade total ou parcial de suas fibras e ocorre, geralmente, por trauma de torção, como uma mudança brusca de direção, desaceleração abrupta, aterrissagem incorreta após um salto, ou contato direto. A lesão gera instabilidade no joelho e, se não for tratada rapidamente e de forma adequada, pode acarretar outras contusões estruturais ainda mais graves.

O tratamento padrão é a reconstrução cirúrgica, através do enxerto de tecido retirado de outra região do corpo do atleta, como tendão patelar, que varia de acordo com a técnica empregada pelo cirurgião. O tempo de recuperação é longo: em média, 9 a 12 meses para retorno ao esporte de alto rendimento. A cirurgia é sucedida por fisioterapia, com foco em controle de dor, e, por fim, a volta gradual à prática do futebol.

De acordo com Gustavo Caldeira, chefe do Departamento de Saúde e Performance (DESP) do Vasco, cerca de 15% dos atletas não voltam a jogar após a ruptura do LCA. No clube, foram oito lesões do tipo nas últimas cinco temporadas - a mais recente foi do volante Jair, que já havia rompido o ligamento do outro joelho no ano passado. O impacto para os jogadores não é apenas físico, mas também mental.

- Os atletas ficam arrasados, é sem dúvida a lesão mais temida por eles. Mas, para minimizar esse impacto negativo já no momento inicial pós-lesão, contamos com o apoio do núcleo de saúde mental, inclusive com presença de psiquiatra. Apesar de sabermos que estatisticamente nem todos os atletas voltarão ao seu nível pré-lesão, todos os atletas do Vasco retornaram bem clinicamente, isso é motivo de orgulho - diz o profissional cruz-maltino.

Jair deixa jogo contra o Sport com joelho machucado (Foto: Marlon Costa/AGIF)

José Luiz Runco, que teve duas passagens como chefe do Departamento Médico do Flamengo, compartilha a mesma visão:

- Numa estrutura de departamento médico, o suporte da psicologia é fundamental, porque uma pessoa que rompe ligamento cruzado sabe o tempo que vai ficar afastada, sabe que vai chegar sozinha aos treinamentos e não terá a companhia dos colegas.

A mais recente vítima da ruptura de LCA na elite do futebol brasileiro foi o zagueiro Kaio Pantaleão, do Botafogo, que se machucou após contato direto com o goleiro Ronaldo, do Bahia. O jogador vinha em grande fase e não atuará mais nesta temporada. Apesar do choque, o médico do clube alvinegro Gustavo Dutra se mantém otimista e destaca a experiência com a recuperação de outros atletas de alto nível:

- Este ano nós não tivemos nenhuma lesão do cruzado anterior, exceto a do Kaio, quer dizer, a primeira conosco aqui no Botafogo. Todo jogador costuma receber com tristeza as notícias ruins, mas eles têm uma capacidade muito grande de absorver esse tipo de informação, de tentar entender um pouco mais o que causou, como vai ser a cirurgia, o pós-operatório e o tempo de retorno ao jogo.

Em clubes com alta estrutura e tecnologia, existem muitos exemplos de recuperações bem-sucedidas. É o caso de Pedro, atacante do Flamengo, que retornou aos gramados apenas sete meses após a ruptura. Mas os cuidados individualizados continuam, não só para evitar novas lesões, mas também para que o atleta readquira a confiança na capacidade do próprio corpo.

- Operar é fácil, ficar bom que é difícil. Hoje a técnica cirúrgica é muito simples, qualquer cirurgião faz, mas o tratamento de uma lesão grave dessa não é simplesmente você ter uma alta médica ou clínica, passa pela autoconfiança do jogador, cria-se um trauma, ele voltar a fazer esses movimentos que fazia antes - avalia Márcio Tannure, chefe do Departamento Médico do Flamengo entre 2015 e 2024.

Pedro se machucou em treino pela Seleção Brasileira (Foto: Divulgação / CBF)

Surto de LCA: o número de casos aumentou?

A ruptura de LCA já aflige o mundo do esporte há muito tempo, mas o número de casos aumentou. Em parte, isso se justifica pela evolução da capacidade médica, que facilita o diagnóstico e trata essa lesão com a devida seriedade. No entanto, o número excessivo de jogos e a intensidade com o qual são praticados também contribui para que ela aconteça com mais frequência, no Brasil e no mundo.

- Dois fatores são fundamentais para esse aumento. O primeiro fator é a fadiga neuromuscular. Jogamos mais partidas que no passado, percorremos mais em distância total e distância percorrida em alta velocidade e também expressamos mais em força. E o segundo fator é que aumentamos o contato entre os atletas por praticarmos um jogo mais compacto, em espaço menor no campo - explica Gustavo Caldeira.

De acordo com Márcio Tannure, estudos indicam que jogar duas vezes na semana, em vez de apenas uma, pode aumentar em cinco vezes o risco da ruptura de LCA.

- Hoje o futebol é muito mais intenso, né? Consequentemente, você nas desacelerações tem mais lesões. Mas o fator principal é o nosso calendário de jogos. Porque você tem um jogo, não consegue recuperar e já atua ainda com a musculatura fadigada - afirma.

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Grama natural ou artificial: alguma oferece mais risco?

É consenso entre os médicos entrevistados que a qualidade do gramado é importante para evitar o risco de lesões de LCA. No entanto, nenhum estudo comprova que a grama artificial possa oferecer mais perigo que a natural e vice-versa.

- Eu sou partidário de que, evidentemente, um gramado bom com grama natural ou um gramado bom com grama híbrida não são fatores determinantes para a lesão. Se você tiver um gramado com grama natural ruim ou um gramado sintético com aquela grama de outrora, que hoje não se permite pela Fifa, aí você tem mais chance de lesar o ligamento - opina Runco.

O Botafogo é um dos três clubes da Série A do Brasileirão que utilizam o gramado artificial. Gustavo Dutra foi contundente ao afirmar que não há relação entre esse tipo de grama e as lesões de LCA. No entanto, se mostrou favorável à continuidade de estudos sobre o impacto de cada campo.

- Olha, não tem nenhum estudo cientificamente robusto que comprove que o gramado artificial gere mais lesões ligamentares. O que a gente pode discutir é o nível de intensidade, o nível de força, o nível de aceleração e desaceleração que se faz jogando ou treinando em um gramado artificial, e se isso vai ou não desgastar mais, mas até agora também não tem nada que comprove - explica.

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Prevenir é melhor do que remediar (mas nem sempre é possível)

A prevenção para as lesões de LCA pode começar ainda nas categorias de base. Renato Valença, fisioterapeuta especialista em joelho com passagens pela Seleção Brasileira de base, explica como é feito o mapeamento de risco. A equipe médica busca observar fatores como padrões de movimento incorretos em aterrissagens ou mudanças de direção, déficits de força, desequilíbrios musculares e frouxidão ligamentar excessiva. A partir de então, é conduzido o trabalho preventivo, com diferentes exercícios específicos

No futebol profissional, a prevenção também é fundamental. O trabalho começa com uma pré-temporada bem feita e passa pelo alinhamento de diferentes áreas: preparação física, fisioterapia, nutrição, psicologia.

- Há algum tempo, o foco dos departamentos médicos no futebol é a prevenção e, dessa forma, todos os dias os atletas realizam atividades preventivas para inúmeras lesões e, para LCA, não é diferente. No Vasco realizamos bastante trabalho de força, divididos em cinco tipos diferentes: mobilidade articular, força muscular dentro de um limite tolerável de assimetrias e muito trabalho em sistemas complexos - conta Caldeira.

A melhor prevenção possível, porém, também esbarra nos problemas de calendário.

- E a prevenção, na verdade, é você primeiro fazer um controle de carga, para evitar que o jogador jogue com essa fadiga extrema, com esse desgaste, com esse aumento de propensão na incidência da lesão. Hoje em dia, nós temos exercícios específicos para isso, para evitar o que a gente chama de valgismo dinâmico, quando o joelho vai para dentro, quando você salta, aterriza em mudança de direção, então existem alguns exercícios específicos. Mas quanto menos tempo você tem para treinar, menos tempo você tem para fazer esses trabalhos preventivos. Acaba que a comissão opta por um ou outro, então isso dificulta - opina Tannure.

Mesmo com todos os esforços de prevenção, o atleta ainda pode estar suscetível à ruptura de LCA, seja por condições genéticas ou pelo risco “aleatório” inerente a uma partida de futebol. Os desafios dessa lesão tão assustadora, inclusive, levam os clubes a cooperar, especialmente a partir de mobilização da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), que organiza congressos para discussão do tema.

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