Sábado, 8 de julho de 2023 foi a última vez que a torcedora do Palmeiras, Gabriela Anelli, saiu de casa para ver seu time jogar. Ela não voltou. Aos 23 anos, Gabriela tornou-se mais um nome na lista das 384 mortes relacionadas à violência no futebol registradas entre 1988 e 2023, segundo levantamento do jornalista e pesquisador Rodrigo Vessoni.
O caso dela, porém, não é um ponto fora da curva: é o retrato de um problema público que se agrava de forma silenciosa. Dados do Observatório da Violência no Futebol mostram que, apenas em 2023, foram 158 episódios registrados pela imprensa — quase todos envolvendo confrontos físicos — que ocorreram não apenas nos estádios, mas também em terminais de transporte, ruas e bairros inteiros, antes e após o apito inicial.
O futebol, patrimônio cultural e afetivo do país, tem se transformado em palco de medo e agressões, dentro e fora dos campos. Um evento de celebração e lazer passa a conviver com a sombra da violência, que afasta famílias, fragiliza clubes e ameaça a própria essência do esporte.
Recorrência de casos de violência
Ainda que pareça uma realidade distante para muitos, casos de violência em estádios e arenas esportivas, ou nos arredores, continuam acontecendo com frequência pelo Brasil afora, vitimando envolvidos e inocentes. Neste ano, um dos casos de maior repercussão no país aconteceu em Recife/PE, no clássico entre Sport e Santa Cruz, em fevereiro. O episódio aterrorizou moradores da capital pernambucana, os quais presenciaram cenas lamentáveis de hostilidade, que terminaram em 12 feridos e 14 presos. Mas não foi a primeira vez que a capital pernambucana foi arena de confrontos entre torcidas organizadas — o caso mais emblemático, há 11 anos, vitimou Paulo Ricardo Gomes da Silva, torcedor do Sport atingido por um vaso sanitário arremessado do estádio.
E a violência não se limita às arquibancadas. Em outubro deste ano, jogadores e comissões técnicas de Vasco e Fortaleza protagonizaram cenas igualmente vergonhosas ao fim da partida. Com raras exceções — como os casos de Gabriela e Paulo, que mobilizaram repercussão nacional e internacional — prevalecem a impunidade e a incapacidade do Estado de conter o caos. E nesse jogo não há vencedores, apenas o esporte e a sociedade sendo derrotados repetidas vezes.
Em 2016, após mais um episódio de violência entre torcedores, o estado de São Paulo adotou a política de torcida única. Quase dez anos depois, o balanço é ambíguo: houve redução significativa de brigas dentro dos estádios e aumento da presença de mulheres e crianças nas arquibancadas, mas a medida está longe de ser a solução. Além de não impedir confrontos nos arredores das arenas, a regra pune CNPJs — e torcedores que nada têm a ver com as ocorrências — enquanto deixa a responsabilização de pessoas físicas em segundo plano.
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Inciativas pouco efetivas
No ano de 2023, o Projeto Estádio Seguro foi lançado por meio de um acordo de cooperação entre os Ministérios do Esporte e da Justiça e Segurança Pública, em parceria com a CBF, para identificar torcedores envolvidos em violência e punir os responsáveis. No ano seguinte, o Ministério do Esporte lançou a campanha Cadeiras Vazias, em memória às vítimas, e seus familiares, da violência no futebol.
Mas, ainda que iniciativas como essas entrem em campo, a efetividade permanece no banco de reservas. Proposta na Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/23), a Autoridade Nacional para Prevenção e Combate à Violência e à Discriminação no Esporte (Anesporte) seria responsável por unificar diretrizes, integrar bancos de dados, classificar eventos de risco e coordenar ações entre União, estados e entidades esportivas. Trata-se de um modelo semelhante ao adotado em países que reduziram drasticamente a violência nos estádios. Mas, a iniciativa foi vetada em 2023 e, dois anos depois, ainda não foi analisada pelo Congresso. Os vetos a esse dispositivo deixaram o Brasil sem uma instância nacional capaz de liderar políticas permanentes de segurança no esporte.
Outra iniciativa proposta pela Lei Geral do Esporte, mas que passou a vigorar somente este ano, é a obrigatoriedade de tecnologia de reconhecimento facial para estádios com capacidade mínima de 20 mil lugares — um avanço, mas insuficiente diante do ritmo e da sofisticação da violência no entorno das partidas.
Enquanto isso, Câmara e Senado acumulam dezenas de projetos de lei, que tiveram pouco ou nenhum avanço nos últimos anos, voltados à segurança no esporte, especialmente no futebol. Como exemplos, podemos citar:
- PL 4437/23 (Aumenta penas de crimes cometidos em eventos esportivos): Está na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara desde 2023;
- PL 6090/23 (Institui a Lista Unificada de Torcedores Banidos de Frequentar Estádios e Arenas Esportivas): Está na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara desde 2024;
- PL 4338/24 (Responsabiliza clubes por danos causados por torcidas organizadas): Está na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara desde outubro deste ano; e
- PL 2689/25 (Suspensão do CNPJ da torcida organizada que for impedida de assistir a jogos como punição por atos violento): Está na Comissão de Constituição e Justiça do Senado desde junho deste ano;
A soma de projetos, campanhas e protocolos ainda esbarra no maior obstáculo estrutural do esporte brasileiro: a impunidade. Diferentes estudos acadêmicos no âmbito do direito esportivo e da segurança pública apontam que as punições aplicadas no Brasil tendem a ser menos rigorosas do que as previstas em lei, especialmente quando envolvem torcedores identificados em confrontos. Em diversos estados, decisões judiciais permitem o retorno rápido desses indivíduos aos estádios, mesmo após episódios de agressão ou depredação. Essa combinação, de baixa responsabilização individual e forte burocracia para sanções coletivas, alimenta a sensação de impunidade que atravessa todo o sistema esportivo.
Cobrança em cima da aplicação
Esse cenário contrasta diretamente com experiências internacionais bem-sucedidas, sendo o Reino Unido o caso mais emblemático. Nos anos 70 e 80, o país viveu o auge do chamado hooliganismo, com episódios tão ou mais graves de violência e vandalismo por parte das torcidas quanto os que hoje ainda vemos por aqui. A virada começou quando o Estado britânico adotou uma política de tolerância zero, amparada por legislação robusta. O Football Spectators Act (1989), o Football (Offences) Act (1991) e outras normas complementares criaram um modelo que mudou definitivamente a cultura dos estádios, com punições individuais rígidas, proibição de acesso a arenas por anos, fiscalização integrada, identificação plena e responsabilização direta dos torcedores violentos.
A política foi dura, contínua e, sobretudo, focada na pessoa física — não em clubes, federações ou torcidas — e em pouco mais de uma década, o ambiente que era sinônimo de violência se tornou referência para diversos países.
O Brasil precisa exigir de seus responsáveis que a legislação seja aplicada. Países que enfrentaram ondas de violência ainda mais graves demonstram que políticas de segurança para o esporte exigem três pilares: responsabilização individual efetiva, coordenação nacional e continuidade institucional. Sem isso, campanhas e projetos isolados seguirão incapazes de transformar o ambiente dos estádios. O torcedor brasileiro paga o preço da inação. Proteger o espetáculo é uma política pública essencial para que o futebol continue sendo espaço de convivência, pertencimento e celebração. O país sabe o que precisa fazer. É chegada a hora!
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Marcus Deois é publicitário, especialista em relações institucionais e governamentais, marketing e comunicação institucional. É sócio-diretor da ÉTICA Inteligência Política e atua no mercado político há mais de 15 anos.
Gabrielle de Castro é jornalista, com experiência em comunicação no setor de relações institucionais e governamentais. Atualmente, é assessora de comunicação na ÉTICA Inteligência Política.
Os autores apresentam e defendem suas ideias e opiniões, esse texto não reflete necessariamente a opinião do Lance!.