E lá vai o ser humano, em suas frustradas tentativas de alcançar a eternidade, segue buscando e tentando quebrar seus limites físicos, já que a conquista da eternidade, bem, essa é para poucos! De todos os esportes, o bom e velho atletismo, é o que reúne mais possibilidades de quebras de recordes e de mitos! Como assim, mitos?
Vamos lá, desde que o mundo é mundo, e que os mestrandos da USP não se julgavam seres iluminados, ainda, atletas tentam, muitas vezes em vão, quebrar seus recordes esportivos, de preferência em uma das muitas provas do atletismo, atingindo as melhores marcas já alcançadas, guardando consigo o menor tempo nas corridas, as maiores distâncias e alturas, os melhores lançamentos e arremessos. Assim é o atletismo, dá números e métricas, na medição do impossível, que ao ser alcançado, possível se torna!
E deste eterna dança de quebras de marcas e feitos inesquecíveis, a história do esporte vai sendo escrita. Mas, existem algumas quebras, alguns resultados que chamam mais atenção. Estes são os intangíveis, ao serem tangidos, tocados. E não são poucos.
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Uma das mais emblemáticas marcas, a quebra dos 10 segundos para os 100 metros rasos, traz, além de um atrativo numérico (100 metros em 10 segundos, ou seja, mais rápido do que 10 metros/segundo), que foi quebrada nos Jogos Olímpicos do México em 1968. E foi no imponente Estádio Olímpico que, com cronometragem eletrônica (mais rigorosa e precisa) um ser humano, Jim Hines, enfim consegue quebrar a marca redonda dos 10 segundos, num voo de 9 segundos e 95 centésimos, entrando para a história, ele, egresso do futebol americano, que já havia quebrado a marca dos 10 segundos naquele mesmo 1968, mas com cronometragem manual, com 9 segundos e 9 décimos. Dias depois, novo ouro, fechando os 4x100 para o vitorioso time americano.
Sim, o homem podia correr mais rápido do que os 10 metros por segundo! Velocidade impossível, como sugeriam fisiologistas das décadas de 20 e 30, do século 20. Hoje já beirando os 9.50, temos a estupenda marca de Usain Bolt, o Deus da velocidade, com 9,56, conquistados numa noite inesquecível de meio de verão, em Berlim, exatamente no dia 16 de agosto de 2009, depois de ouvir um "Parabéns pra Você" (era aniversário de Bolt) cantado por mais de 70 mil vozes, ele, o extraterrestre que veio de longe, pede silêncio antes da largada, é obedecido cegamente, e …lá vai Bolt virar lenda! Ouro nos 100 metros, também nos 200, e, de quebra, no revezamento 4x100. O resto? Ah, o resto é história do esporte sendo escrita, diante de nós, dos meus olhinhos míopes e, naquele momento, embaçados. Bolt virou lenda, mas Hines, este moço quebrou mitos!
E o mito das 4 voltas na pista, abaixo de 1 minuto por volta, vulgo, o tabu do sub 4 minutos na milha (1,609 metros)? Esta era uma missão tida como impossível pelos experts da época, atletas e treinadores nórdicos, nos idos e vividos anos 30! Mas não para um esguio e esquálido estudante de Medicina (um grande neurologista), chamado Roger Bennister, que com a ajuda de mais 3 colegas de universidade, Oxford (aliás, foi na pista principal da Universidade de Oxford, que foi quebrada a marca mundial de milha, 3 minutos 59 segundos e 4 décimos.
Era uma tarde fria e ventosa num fim de inverno de 1954, onde os 4 meio-fundistas de Oxford, comandados por Bennister, começaram seu ritual de aquecimento. Durante o trote, a conversa era se deveriam tentar com clima tão adverso, ou adiar, por alguns dias. O adiamento seria muito ruim, pois coincidiriam com as datas das provas das principais cadeiras. Com o passar do tempo, outro movimento surpreendente os encantou: uma multidão de estudantes de Oxford, ao saberem da tentativa de quebra de recorde mundial da milha, desejada por Bennister, resolveram dar uma forcinha! Todo o entorno da pista estava cercado, onde se acotovelavam milhares de colegas, que prometiam acompanhar, com palmas, a passagem dos 4 cavaleiros, volta após volta, até a fita de chegada! A coisa ficou séria, eles se esmeravam no aquecimento final e nas táticas de correr em pelotão, pois o vento, na reta oposta, além de gelado, os abraçava de frente, e só os largava, quando o quarteto ganhava a reta de chegada.
E chega o momento de baterem à porta da eternidade, eram quase 17 horas, o público tiritava de frio e reagia com barulho, tão, ou mais, ansiosos do que os jovens universitários, que sugeriram o deslocamento dos veículos na entrada principal da pista, para o entorno da mesma, para evitar tombos e para que o público melhor acompanhasse o feito que estava para acontecer.
E lá foi o quarteto, a regra era simples: cada volta abaixo de 60 segundos, e na metade da volta final, um voo solo do mais veloz, Bennister, agonizante, rumo a linha de chegada. Primeira passagem correta, e o público responde com gritos e calma. A segunda também, mas muito em cima da marca, pois o vento havia apertado na reta oposta! Um dos "coelhos" pede pra sair, aos vômitos (depois souberam que além do dia puxado, ele havia brindado, com bom scotch, com uma amiga, o provável sucesso do dia seguinte. Quase desandou o Trem de Oxford. Na terceira volta, o vento que já era forte, assobia fino e forte, deixando uma dívida quase impagável de 1,8 segundos, para Bennister, que ainda teria que podar mais quase 2 segundos, nos últimos 200 metros, lembram-se?
É aberta a última volta! Bennister sabe que o desafio se tornou quase inglório, era tempo demais a ser tirado em tão pouca distância a ser percorrida. Às favas com a dúvida, Sir Roger Bennister correu como nunca, pois queria retribuir ao barulho ensurdecedor que lhe proporcionou a multidão de estudantes. Neste momento no campus de Oxford, as salas estavam vazias, nos corredores apenas os fantasmas seculares, o povo de Oxford neste momento estava ocupado em "empurrar" aquele magro alto pra frente, pra cima do recorde mundial, para a eternidade do tempo.
E Bennister cruza a linha de chegada, desfigurado, semi desacordado, mas alguém notou e anotou, com um raro sorriso no rosto, pois já sabia que o tempo havia parado abaixo dos 4 minutos! Naquele começo de noite, no campus de uma das melhores universidades do mundo, um quarteto exausto teve que faltar ao jantar, num refeitório estranhamente vazio, pois o pub mais próximo, de um ex-aluno de Oxford, estava estranhamente aberto, no duro ofício de matar a sede de milhares de gargantas que trabalharam duro, minutos atrás! E, em cima de duas mesas juntas, repletas de canecas e garrafas vazias, 4 garotos, não os de Liverpool, estes se tornariam lenda uma década depois, pensavam enquanto se abraçavam, esta noite não terá fim!
E não teve! Até hoje, o primeiro sub 4 da milha é tido como um dos maiores feitos da humanidade, segundo a imprensa mundial, meio século depois! A eternidade lhe caiu muito bem, Sir Bannister, que faleceu em 2018, aos 88 anos, um neurologista que se dedicou, de corpo e alma, na batalha contra o Mal de Parkinson (foi diagnosticado em 2011), criando protocolos de padrões de desenvolvimento da doença, com pesquisas importantíssimas sobre as respostas do sistema nervoso afetado pela doença e o desenvolvimento de terapias que diminuíssem a velocidade (logo Sir Bennister!!) do Mal de Parkinson.
Ele vive em cada tiro de partida numa pista qualquer do mundo! O neurologista veloz das 4 voltas sub 60 segundos.
Recorde de Guerrouj dura mais de 25 anos
Hoje, o recorde mundial da milha é de 3 minutos, 43 segundos e 13 centésimos, do grande marroquino Hicham El Guerrouj, alcançado em Roma, em 1999. Um recorde incrível de Guerrouj, que já dura mais de 25 anos. Mas, não era um mito a ser quebrado. Este, foi escrito numa pista de terra, dentro de uma universidade, por um estudante de medicina e seus 3 colegas, numa noite fria de um fim de inverno qualquer de 1954!
**Tentarei, sempre que possível, contar histórias de gente como estes dois que abrem, em alto nível, esta nova séria série! Os grandes protagonistas do impensável, do extraordinário, do outrora impossível!
Lauter Nogueira
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