A crescente exposição nas redes sociais transformou a rotina do mundo do futebol na última década. Críticas constantes, cobranças públicas e ataques virtuais se somam ao ambiente já competitivo do esporte profissional, ampliando a pressão emocional e o risco de abalos à saúde mental. No fim de setembro, o técnico Renato Gaúcho chamou atenção para o tema ao anunciar o pedido de demissão do Fluminense, rebatendo aqueles que classificou como "gênios da internet".
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Em entrevista ao portal "Ge" publicada no último domingo (9), o volante Casemiro também apontou a influência das redes no futebol atual. Aos 34 anos, o capitão da Seleção Brasileira aconselhou os companheiros a não utilizarem as mídias durante a próxima Copa do Mundo.
— Se você me perguntar se eu posso dar uma dica para o jogador do Brasil na Copa do Mundo, eu diria que se ele puder não tocar na rede social durante a Copa do Mundo seria muito importante. É uma coisa que eu acho quase impossível — declarou Casemiro.
— Na rede social, se eu fiz o gol e joguei bem, sou o melhor. Se perde, vai ser crucificado até a próxima Copa do Mundo. As pessoas são maldosas, tanto as que te elogiam quanto as que falam mal de ti vão ao extremo — completou.
Entre a busca por desempenho e a necessidade de lidar com a opinião de milhões de torcedores online, profissionais do futebol relatam um novo tipo de desgaste psicológico, impulsionado pela velocidade e pelo alcance das redes sociais. O Lance! conversou com atletas, treinadores, clubes e influenciadores digitais para entender o impacto das novas mídias no dia a dia deles.
Jogadores e técnicos relatam a influência das redes
Os grandes alvos de críticas vindas da internet são, sem dúvidas, jogadores e técnicos. Os principais personagens do futebol são também aqueles que lidam com a maior pressão e comentários de torcedores, sejam positivos ou negativos.
Em entrevista, o ex-jogador Rodrigo Pimpão, com passagens por Botafogo e Vasco, relatou que fazia trabalho com um "coach" de alta performance para lidar com as críticas. Ele diz, ainda, que isso foi de extrema importância para a carreira.
— Quando eu estava no Botafogo, eu fiz um acompanhamento com um coach de alta performance, o Paulo Serrano, que fazia parte da comissão técnica do René Simões. Isso me ajudava muito com relação às críticas externas, era um trabalho de extrema importância e que me ajudou muito na minha carreira. Eu nunca tomei uma decisão dentro de campo influenciada por rede social. Sempre me baseei no que o treinador pedia, junto com o trabalho que eu fazia com o meu coach — disse.
Em contato com o Lance!, um jogador em atividade — que pediu anonimato — com passagem por um grande clube da Série A do Brasileirão relatou o caso de quando não foi promovido ao time titular por pressão das redes sociais. O motivo foi diretamente exposto pelo próprio treinador da equipe. E o caso dele não é único.
Quem compartilhou situação similar foi o ex-técnico René Simões. Em outro caso no qual as cobranças online influenciaram na escalação de uma equipe, ele conta que precisou contornar insegurança de um atleta que, com medo de ofensas vindas da internet, pediu para não viajar com o grupo para uma partida.
— Já tive jogador que me pediu para não jogar determinado jogo. A família havia sido ofendida, e ele não quis viajar, com medo. Mas, logo depois, contornamos e tudo ficou bem — contou o ex-treinador.
Atualmente, René Simões trabalha como "coach mental" de jovens técnicos — como Filipe Luís, comandante do Flamengo. Aos 72 anos, o professor também viveu uma outra época do futebol, quando as críticas vinham, na maioria das vezes, da imprensa e das arquibancadas. Ele analisou a mudança de panorama e como a chegada da internet aumentou a pressão nos profissionais do esporte.
— Antigamente, nos domingos antes dos jogos, eu descia ao hall do hotel e fazia resenha, e às vezes até ao vivo, com as rádios, TVs e jornais. Naquela época, eram uns dez no máximo, e todos tinham e deviam obrigação às suas diretorias e editores. Hoje, teríamos centenas, e a maioria dono do seu próprio nariz. A briga por likes é muito grande. Tínhamos a maioria jornalistas, com comprometimento com ética e valores. Hoje, o compromisso é com meu seguidor e o que ele quer que eu diga. Ficou mais desafiador, mas não impossível — compartilhou René.
Os comentários negativos vindos das redes sociais atingem também (e principalmente) os grandes astros internacionais. Eles, no entanto, não estão sozinhos neste processo. É o caso de Rodrygo, atacante do Real Madrid e da Seleção Brasileira. Ao Lance!, o jornalista Fernando Torres, gestor de reputação e imagem do craque, detalhou como o staff filtra — mas não blinda — o atleta das críticas online.
— Não chamo esse trabalho de blindagem, porque passa uma impressão de que o jogador é inatingível pelo que é dito nas redes sociais. Acredito em um filtro: o processo de separar o que que é relevante, o que merece ser respondido e considerado, e o que é simplesmente lixo, feito para machucar, sem fundamento nenhum na realidade. Esse filtro é o mais importante, separar o que é relevante daquilo que deve simplesmente ser excluído.
Fernando diz, ainda, que Rodrygo não tem o costume de procurar publicações e comentários sobre ele, mas esses acabam chegando por meio de amigos e conhecidos.
— Na rotina de um jogador de alto nível, como o Rodrygo, um tempo muito grande é dedicado à profissão. Mas o jogador é um ser humano e tem contato com amigos, conhecidos, outros relacionamentos profissionais, outros jogadores, etc. Então, obviamente, comentários de redes sociais podem chegar por qualquer uma dessas fontes. Ele não tem costume de ir atrás, de querer saber. O foco está no desempenho dentro de campo, fazer de tudo para que o campo seja o discurso soberano. Não existe uma rotina de querer ir atrás (de comentários), porque existe uma equipe que procura fazer esse filtro. Mas chegam coisas que machucam, podem gerar chateação e um estresse momentâneo. É um ser humano que pode ser atingido por esse tipo de conteúdo como qualquer outro.
O gestor de imagem do atacante do Real Madrid compartilha, ainda, o que considera o pior caso da carreira do atleta envolvendo redes sociais. Rodrygo foi alvo de injúrias raciais por torcedores da Argentina em 2023, após atuar em clássico pela Seleção Brasileira. Fernando conta como a situação afetou o jogador.
— O episódio mais lamentável até o momento foi um crime. Aconteceu depois da partida entre Brasil e Argentina, em 2023, no Maracanã. Centenas de argentinos invadiram as redes sociais dele com ofensas racistas, com uma série de xingamentos e absurdos ditos contra ele e a família. Foi a pior de todas, porque acerta a pessoa de uma maneira muito grave, muito covarde. Fizemos um relatório indicando quais eram esses perfis, porque, por trás das ofensas racistas, havia pessoas reais. Identificamos e fizemos um relatório de mais de 100 páginas, encaminhamos ao Ministério Público. O caso está sendo investigado até hoje, com todo o apoio da esfera judicial para que essas pessoas de alguma forma sejam punidas pelo que fizeram e isso não venha a se repetir.
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A psicóloga esportiva Priscila Mendes, do Inter de Minas, clube parceiro do Flamengo na formação e captação de atletas, analisa como as redes podem impactar negativamente na saúde mental de um jogador de futebol. Segundo ela, a busca por validação pode comprometer o bem-estar e a confiança, desencadeando doenças psicossociais.
— As redes sociais podem exercer uma influência significativa, muitas vezes negativa, sobre a saúde mental de um jogador. Eles estão constantemente expostos ao julgamento público, o que os torna alvos fáceis de críticas, ataques pessoais, cobranças excessivas e até discursos de ódio. Essa pressão virtual intensifica a já alta carga emocional da profissão, podendo desencadear ansiedade, estresse, depressão, queda de autoestima e até sintomas de burnout — disse a especialista.
— A constante comparação com outros atletas, a busca por validação em curtidas e comentários, e o medo de errar e ser "cancelado" publicamente podem comprometer o bem-estar psicológico do jogador. Além disso, muitos atletas, especialmente os mais jovens, não estão emocionalmente preparados para lidar com essa exposição digital, o que torna a presença nas redes uma fonte de angústia, em vez de uma ferramenta positiva. A linha entre o profissional e o pessoal é facilmente ultrapassada nesses ambientes, afetando não apenas o rendimento em campo, mas também as relações sociais e a vida fora do futebol — completou.
O papel dos clubes
Com a grande exposição de jogadores e técnicos, os times são essenciais no cuidado à saúde mental desses profissionais. O Lance! procurou o Núcleo de Saúde Mental (NSM) do Vasco para entender o trabalho feito com os atletas e a comissão técnica. O Cruz-Maltino é o clube brasileiro com a maior equipe destinada ao tratamento psicológico e psiquiátrico, com dez funcionários que atendem desde a base até o profissional, tanto do masculino quanto do feminino.
A atuação ocorre presencialmente e online como rotina do clube. Os jogadores são avaliados e monitorados continuamente, mesmo que as demandas não envolvam diretamente problemáticas extremas em saúde mental. Ou seja, o clube faz um trabalho preventivo visando tanto performance como melhor qualidade de vida.
Dentro das ações diárias, são aplicados questionários pós-jogos (monitorização do estresse) e mensais (acerca de questões como sono, alimentação, humor, consumo de álcool etc). Além das intervenções individuais, podem ser feitas atividades coletivas quando há pertinência detectada.
Sobre a influência das redes sociais na saúde mental dos atletas e treinadores, o Vasco informou que há a preocupação e orientação sobre o uso das plataformas.
— Sobre as redes sociais, há sim uma preocupação de como o atleta lida com elas. Não há nenhum tipo de restrição ou proibição do uso, mas uma orientação constante sobre como gerenciá-las da forma mais assertiva possível. Isso inclui uma boa gestão do tempo destinado às redes, formas de interação com o público, respeito para com o clube e com suas famílias, etc. Principalmente, buscando trazer uma melhor percepção sobre aspectos que estão sob controle próprio e aquilo que não pode ser gerenciado, como comentários e notícias em redes sociais — destacou o clube.
— Isso vale tanto para os atletas como comissão técnica e staff. Não é possível blindar quanto às emoções emergentes em virtude das críticas, mas sim desenvolver inteligência emocional e autocontrole, como os impulsos, para manejar o estresse que é inerente para aqueles que trabalham com futebol profissional — completou.
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Nas categorias de base, os atletas também são expostos aos malefícios do uso das redes, seja pela exposição recebida ou pelo excessivo tempo de tela usual dos jovens. Psicóloga das categorias de base do Fortaleza, Sheyla Gomes explicou como o clube trabalha com os jogadores em formação e citou a importância do contato com os pais.
— Temos palestras psicoeducativas com os atletas e um dos assuntos está voltado para exposição em mídias sociais e como esse hábito pode prejudicá-los dentro e fora do campo, se não tiver um controle. Com as categorias de iniciação esportiva orientamos os pais sobre a exposição excessiva dos filhos nas mídias sociais, e o tempo de tela que os mesmos ficam expostos. Com os técnicos, temos um programa de desenvolvimento profissional, a Academia de Talentos do Laion, com vários temas que abordam a desenvolvimento de líderes que trabalham com atletas em formação — explicou a profissional.
O outro lado das telas: a responsabilidade de influenciadores digitais
A chuva de críticas vindas das redes sociais tem, muitas vezes, origem naqueles com maior destaque nessas plataformas: os influenciadores digitais. Os grandes perfis acabam sendo formadores de opinião para outros torcedores, podendo aumentar ou aliviar a pressão nos profissionais do futebol.
Para entender melhor o lado de quem produz as críticas, o Lance! entrevistou o jornalista e influenciador Paparazo Rubro-Negro. Com mais de 1,4 milhão de seguidores no Instagram e outros 1,5 milhão de inscritos em seu canal no Youtube, Gabriel Reis é uma das principais vozes da torcida do Flamengo.
Ele defendeu a liberdade para criticar os profissionais do futebol, que, segundo ele, muitas vezes faltam com o respeito diante da mídia. Além disso, ele cita "preconceito" com os influenciadores digitais por parte de jornalistas.
— Você tem que ter liberdade total para criticar, falando de forma construtiva e educada. Em alguns momentos, quando um treinador falta com respeito com o jornalista, o influenciador, seja quem for, ele pode responder. Há um preconceito com os influenciadores por parte de alguns jornalistas. Eu percebo um destempero muito maior por parte dos apresentadores e jornalistas da mídia tradicional, com relação a jogadores, dirigentes e treinadores, do que da mídia alternativa. Eu acho que há um limite, sim, para críticas a jogadores e técnicos, mas quando estes faltam com respeito também nas coletivas, como é o caso do Abel Ferreira e do Diniz, eu acho que o jornalista tem o direito de rebater — declarou.
Fato é que as opiniões de Paparazzo podem impactar a vida e carreira de atletas e treinadores. Questionado sobre como lidar com o peso dessa responsabilidade, o criador de conteúdo disse ter aprendido com o tempo os limites do que pode ser falado e evita abordar certos assuntos. Contudo, destaca que ele também é atacado nas redes sociais.
— Eu fui percebendo a minha influência. Eu sei que posso impactar muito e, conforme fui crescendo meu engajamento, fui percebendo a importância também de, por exemplo, evitar certos assuntos. Eu não falo muito de vida pessoal, fofoca, nem toco nesse assunto para evitar que esse tipo de questão afete o dia a dia do atleta. Com o passar dos anos, eu fui medindo um pouco mais as palavras, evitando carregar muito na mão na hora de uma crítica. Então, eu acho que grandes jornalistas e influenciadores têm que ter noção do que falam. Por exemplo, na questão da Libra: eu sou um jornalista que fala de Flamengo, e estava sendo atacado pra caramba pelos rivais, porque eu estava defendendo que o Flamengo está certo. A mesma coisa que acontece com jogador, com treinador, mas ninguém vê esse lado, a gente é atacado o tempo todo também.
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Gabriel diz, ainda, que é procurado constantemente por pessoas do meio do futebol por conta de suas publicações. Ele relata o caso de um jogador ex-Flamengo que, ao receber muitas críticas baseadas em uma declaração do influenciador, pediu para que ele apagasse a postagem.
— O tempo todo (jogadores e técnicos o procuram), não só por críticas. Jogadores, treinadores, dirigentes, personalidades do esporte, todos eles falam com a gente. É muito comum, toda hora aparece alguma coisa. Já teve caso de jogador que saiu do Flamengo e foi para outro time, e a torcida começou a pegar no pé dele. Eu acabei dando uma criticada nele, porque não achei bacana a postura, e ele começou a ser muito atacado. Eu nem tinha percebido que a minha declaração tinha feito muita gente ir falar com ele. Ele me procurou, e eu apaguei o post. Ele concordou que tinha errado, mas pediu que eu apagasse. Como ser humano que sou, não vou querer que a pessoa seja atacada. É importante esse diálogo, a gente não pode ser ferro e fogo o tempo todo.
O avanço das redes sociais transformou definitivamente a forma como o futebol é vivido e debatido. Entre a cobrança dos torcedores, a influência dos criadores de conteúdo e a necessidade de preservar a saúde mental, jogadores, técnicos e clubes buscam se adaptar a uma nova dinâmica em que o campo e as telas se confundem. Em meio a elogios, críticas e ataques virtuais, o desafio do futebol moderno vai além do desempenho esportivo: passa também por aprender a lidar com a exposição constante e preservar o equilíbrio emocional dentro e fora das quatro linhas.
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