Antes da ladainha chorosa sobre o calendário do futebol brasileiro, eu gostaria de contar o que pude presenciar, numa estada forçada (ninguém, em sã consciência, vai para Las Vegas passear), na terra do neon e de Elvis, durante uma aclimatação ao inferno, acompanhando atletas que iriam competir numa ultra-maratona pelo Vale da Morte, pertinho de Vegas, e provavelmente também, do inferno. Ficamos hospedados no mesmo hotel, onde o espetacular Cirque du Soleil, vivia quando não estava em turnê mundial. E naquele momento, estavam em PRÉ- TEMPORADA. Sim, um enorme training camp de 4 a 5 semanas, onde os ARTISTAS faziam uma imersão em atividades físicas, que melhoravam suas valências físicas e os tornavam aptos à grandes apresentações durante TODO o decorrer do ano.

Sim, senhores! Os grandes nomes do entretenimento, não se davam ao luxo de descartar a preparação física em pré-temporada. Como dizia um trapezista francês, ex-atleta olímpico de ginástica artística, não há arte que encante, se não houver suor e dor!

Futebol brasileiro deixou de ser competitivo

Hoje, nossas Seleções de base (categorias de jovens, em formação) e profissional são um claro exemplo do nível que se encontra o nosso futebol. A dificuldade que encontramos nas eliminatórias para a Copa de 2026, e a pífia apresentação de nossa Seleção sub-20, no Campeonato Mundial desta categoria, são provas cabais de que nosso futebol de hoje, perdeu a capacidade de ser competitivo e de encantar o mundo, com a arte da bola. Enfim, somos fracos, fisicamente, e nossa técnica apurada, hoje, prefere os gramados mais bem tratados da Europa.

Seleção sub-20 teve atuação pífia no Mundial da categoria (Foto: Raul Bravo / AFP)

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Durante décadas, alertamos, o calendário do futebol brasileiro não dedicava espaço para preparação física, e muito menos para o aprimoramento técnico. Enfim, não havia espaço para uma pré-temporada, após merecidas férias. Nossos “atletas” voltavam das férias, quase obesos sedentários, e encaravam um verão escaldante, com importantes testes fisiológicos e mais alguns poucos dias com verdadeiras tentativas de milagres, por conta dos fisiologistas e preparadores físicos, tentando entregar aos treinadores, algo parecido com atletas de futebol aptos a iniciarem a sequência insana de competições em torneios regionais (longos e deficitários) punitivos, nacionais (Brasileirão e Copa do Brasil), internacionais (Sul-Americana, Libertadores e, talvez, Mundiais de Clubes. Isso tudo espremido em menos de 50 semanas!! Quando chegávamos em fins de abril, começava o festival de horrores, com departamentos médicos lotados, cirurgiões em polvorosa e revezamentos de times A, B ou C, dependendo de exames laboratoriais que detectam fadiga orgânica e estresse neuromuscular.

Era um fim lógico, este caos fisiológico! Não dá pra começar a construir um alto e belo prédio pela cobertura! Se não fizer uma estabilização do solo, e resistentes fundações, a obra não passa do segundo andar!

Em nome do espetáculo, se negligenciava leis severas da fisiologia e treinamento desportivo. E desta forma, até o tal de “espetáculo” se tornava algo bem questionável. Então, o time que tivesse maior elenco, chegava mais longe. Mas, quando chegavam as competições globais, de “tiro mais curto”, encontrando adversários que vinham de pré-temporada plena e temporada um pouco mais enxuta, passavam um caminhão sobre nossos corpos cansados e doloridos. E assim foram passando os anos, as décadas. Até que um certo dia, semanas atrás, uma bombástica notícia, contrariando o famoso ditado do nobre Barão do Itararé, de onde menos se esperava, veio a bombástica notícia: faremos severas mudanças nos calendários do futebol brasileiro!!

Encurtaremos os torneios regionais, mas aumentaremos o número de regiões, com chance de regionalização dos telespectadores, ou consumidores locais. Tudo bem, sigamos lendo as novas leis do novo calendário! E é logo ali que começa a bater o descrédito. Estica-se, de janeiro a dezembro, o Brasileirão!!! Fecho o laptop, respiro com calma, reabro o laptop, releio torcendo por algum erro de interpretação de minha parte. Nada! Eles conseguiram se superar. A pré-temporada que era algo incipiente, ocupando 10 ou 12 dias do ano, agora deve cair num fim de semana, entre o Natal e o Reveillon!!!

Peraí! Este calendário foi elaborado pelas melhores cabeças pensantes do marketing tupiniquim! Foi negociado, provavelmente, a peso de ouro, com zelosos dirigentes esportivos e redes de comunicação! Alguém chegou a ouvir preparadores físicos e fisiologistas?

Pelamordedeus! Chamem o trapezista francês do Cirque du Soleil, ele sabe das coisas! Chamem Tom Jobim (…o Brazil tá matando o Brasil…), chamem o síndico, Tim Maia!!!

Sinto saudades de Tom, de Tim, e da Seleção Brasileira de FUTEBOL. O futebol deve ser visto como arte, mas o futebolista, antes de ser artista, é atleta, e como tal, precisa tirar férias, precisa treinar fisicamente. Afinal, o futebol atual, jogado, por exemplo, na Europa, é feito de suor, demanda ocupação de espaço, chegar primeiro, saltar mais alto, se movimentar por mais de 90 minutos em alta intensidade. Precisa ter lastro orgânico, afinal, a lucidez é requisito fundamental neste esporte. E a agilidade de raciocínio, os reflexos ágeis e apurados, também têm que estar presentes, do início ao fim de cada jogo. Não é com 80 jogos em 42 semanas que teremos atletas respondendo fisicamente como o futebol atual demanda. Precisa de tempo, para a preparação física inicial (pré-temporada), e a preparação física de manutenção de forma, durante toda a temporada.

Fala-se muito dos “artistas da bola” de 1970. Mas não podemos esquecer do longo tempo de preparação até chegarem, voando, à grande final na Cidade do México. Esquecem dos atletas que eram Brito, Zé Maria, Marco Antônio, Clodoaldo Jairzinho, Pelé e companhia! De que adianta um calendário lindo, impecável, se não se consegue transformar jogadores em atletas, dentro de uma longa temporada? Estamos falando de esporte competitivo, de alta (cada vez mais alta) intensidade e demanda! Um esporte que, quando jogado com atletas no auge de suas formas, acaba, aí sim, se tornando entretenimento, arte, espetáculo de altíssima qualidade.

Voltando ao exemplo do Cirque du Soleil, temos a certeza de que seus espetáculos não seriam tão espetaculares se não se dedicassem a um árduo treinamento físico. De uma forma mais direta, pois não estamos falando de espetáculos circenses, mas de performance esportiva, a preparação física se torna mais prioritária ainda, para que, um dia, possam voltar as tardes de espetáculo e grandes vitórias.

Enquanto isso, na temporada de 2026, do combalido futebol brasileiro, as vacas seguem, parrudas e bem nutridas, para o melancólico brejo. Estádios cheios para ver o acróbata pedir, envergonhado, desculpas, e mais uma vez, cair! Como bem disse, lá em cima, o ex ginasta francês:

“…não há arte que encante, se não houver suor e dor!”

Até a coluna de sexta-feira, com o resultado da escolha entre Rio/Niterói e Assunção, para sediar o Pan de 2031! Fiquem ligados! E com dedos cruzados!

Lauter Nogueira

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