Fiquei internada com urgência, operação no coração que quase parou. Passei por uma luta, emagreci, fiquei fraca. Os médicos disseram que eu não sairia tão cedo. Mas eles queriam que eu operasse e fizesse implantes. Eu me recusei, e falei: "Eu vou sair daqui, eu vou para o jogo".
Rosecleide Aquino
Poucas pessoas são capazes de repetir a frase acima por causa de um clube de futebol. Mas, para Rosecleide Aquino, a paixão pelo Esporte Clube Vitória, que completa 126 anos nesta terça-feira (13), não tem limites. Ela já fugiu de casa, largou a família e correu até risco de vida para acompanhar o clube Bahia afora. Não à toa, Rosecleide, aos 66 anos, é um dos maiores símbolos dessa instituição centenária.
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Quando reportagem do Lance! chegou à casa dela, que, por coincidência, fica no bairro de Nazaré, ao lado da Arena Fonte Nova, Rosecleide já estava quase pronta para ir ao Barradão acompanhar Vitória e Cerro Largo pela Sul-Americana, mas antes era preciso segurar a ansiedade para uma longa entrevista. Só faltava um detalhe, tomar os remédios que viraram rotina depois que ela sofreu um infarto durante viagem para acompanhar a equipe na Série C do Campeonato Brasileiro, em 2022.
Com orgulho, a torcedora dizia que, mesmo contra a recomendação dos médicos, frequentava o Barradão em todos os jogos do Vitória, ao mesmo tempo que mostrava marcas roxas espalhadas pelo corpo, consequência, segundo ela, das fortes emoções com o time.
- Chego no aeroporto e passo mal. Comecei a não poder respirar. Estava com dificuldade. O pessoal viu e chamou ajuda. Os passageiros que estavam ao meu lado perceberam. O avião ainda não tinha descido. Eu estava no aeroporto em Salvador. Aí a aeromoça disse: "A gente vai levar você para sua casa". Mas eu respondi: "Eu não vou não, eu vou ver o jogo do Vitória". Ela insistiu: "A senhora não tem condições, está pálida". Eu estava com muita dor - relembrou Rosecleide.
Rosecleide ficou 33 dias internada em Brasília, onde mora uma das suas filhas, passou por três cirurgias, mas conseguiu vencer mais essa batalha, claro, com o Vitória sempre ao seu lado, costume que ela leva desde a adolescência.
O começo da paixão pelo Vitória
Hoje, dona Rosecleide é reconhecida por quase todos os torcedores do Rubro-Negro e homenageada por onde passa. A casa dela é vermelha e preta, das grades na parte externa aos copos, quadros, almofadas e até mesmo o ventilador e a geladeira. Mas para chegar a esse ponto, foi preciso sacrificar muita coisa pelo clube. A história de amor entre Rosecleide e Vitória começou quando ela tinha apenas 12 anos, em um dos momentos difíceis da história do time, que via o rival Bahia tomar a hegemonia do futebol estadual.
- Eu tinha 12 anos quando comecei a ver o sofrimento daquela torcida e o outro lado se achando. Eu pensei: "Eu vou torcer para esse time". Falei para o pessoal que estava na Fonte Nova, que hoje é a Arena Fonte Nova. Quando perguntaram: "Por que você escolheu um time que não ganha nada?", eu respondi: "Mas ele vai ser muito grande". Na época, o Vitória era grande para mim, mas sofria contra o rival. Isso foi antes de 1972.
- Em 1972, veio aquele time bom, e eu já torcia nas arquibancadas, escondida da minha família. Eu fingia que ia ao banheiro e demorava, porque estava na torcida do Vitória. Ali, fui me apaixonando cada vez mais. Era um amor secreto, e, como você sabe, amor secreto é mais gostoso. Minha família toda era Bahia, então eu torcia escondido. Em casa, eles queriam que eu torcesse para o Bahia, me davam roupas, mas eu não usava. Eu queria vestir vermelho e preto - revela.
Uma menina de 12 anos em um estádio de futebol, ainda por cima escondida, não era tão comum naquela época, em um ambiente machista e hostil para as mulheres. Rosecleide, no entanto, não se importava muito e seguia acompanhando o time. Mas quando a família descobriu, vieram as consequências, que foram muito cruéis para a jovem torcedora do Vitória.
- Eu pegava o trem escondida para seguir o Vitória. Fazia tudo o que você possa imaginar. Quando minha família descobriu, me bateram, me espancaram. Eu ainda era adolescente. Foi aí que eu disse: "Eu vou me revelar e vou ganhar o mundo". Saí de casa e começou minha luta. Fui livre como um pássaro. Depois que me revelei como torcedora do Vitória, sofri muito. Não quero relatar tudo o que passei, mas foi muito sofrimento.
As pessoas me chamavam de louca. "Ela está louca", diziam. E eu respondia: "Estou louca, mas de amor pelo meu clube".
Rosecleide
Símbolo de resistência
Rosecleide recebeu a reportagem com o rosto completamente coberto pelas cores vermelha e preta, que juntas traçavam o escudo do Esporte Clube Vitória. Ela fez parte da geração conhecida como "Caras Pintadas" no Barradão, por conta da sua ousadia e modos diferentes de expressar seu amor pelo time.
Mas o que pouca gente sabe é que esse costume de pintar o rosto surgiu como um símbolo de resistência ao preconceito no futebol e à repressão que existia dentro da própria casa da torcedora do Vitória.
- Quando conheci meu marido, ele não aceitava que eu fosse ao estádio. Naquela época, diziam que mulher tinha que ficar em casa. Mas eu me rebelava, comecei a pintar o rosto em 1985 e saía assim, sem ninguém saber quem eu era.
A pintura virou meu símbolo, minha forma de resistência. As pessoas tinham medo de mim. Eu era uma mulher em um espaço dominado por homens. Meu marido nem imaginava que aquela torcedora era eu. No trabalho, os colegas contavam para ele sobre "a mulher misteriosa" no estádio, mas ele não acreditava que era eu".
Rosecleide
Rosecleide nunca aceitou esse lugar que era socialmente destinado à ela e, com sua alma rebelde e o amor pelo Vitória correndo nas veias, rodou o Brasil atrás da sua maior paixão, com o rosto pintado e a esperança de ver o clube em dias melhores.
- Mesmo com meu marido incomodado, eu seguia firme. Ele dizia que eu era maluca, que meu lugar era em casa, mas eu não aceitava. O Vitória era minha paixão e meu símbolo de liberdade.
- Eu deixava tudo em ordem em casa e seguia o Vitória, mesmo sem dinheiro. Passei dificuldades, fome, mas nunca abandonei o clube. Em muitos lugares, eu conseguia comer por causa da minha história. Quando o Vitória subia, eu voltava e pagava tudo. Mesmo com dificuldades, segui o clube em todo o Brasil. Dormi em estações, enfrentei desafios. Minha família não entendia meu amor, meus filhos sofriam preconceito na escola, mas eu não desistia - completou a torcedora do Vitória, com orgulho.
Nunca desistir
Depois da entrevista, era hora de fazer o caminho que Rosecleide mais gostava. Pegar seu leão de brinquedo e a luva de boxe, que também representa a luta de uma vida inteira em prol do Vitória, e ir ao Barradão. Um dos seus amigos de longa data que o Vitória proporcionou leva a torcedora de carro para a maioria dos jogos, e o Lance! aproveitou para acompanhá-los no trajeto.
A partida entre Vitória e Cerro Largo estava marcada para as 21h30 (de Brasília), mas chegamos com antecedência ao Barradão. Rosecleide, inclusive, entra por um portão diferente, o mesmo que dá acesso ao ônibus com os jogadores, o que facilita a chegada dela. Era por volta das 20h, e o movimento ainda estava fraco, mas as poucas pessoas que lá estavam reconheciam Rosecleide, que era cumprimentada por vendedoras de acarajé, seguranças e torcedores de todas as gerações. É um reconhecimento merecido para quem dedicou a vida ao clube.
Foi de um pequeno mirante no setor das cadeiras, que fica na parte central do Barradão, que Rosecleide viu o time perder para o Cerro Largo por 1 a 0, resultado péssimo para as ambições da equipe na Sul-Americana.
Mas ela sabe que nada é fácil. Para quem desafiou a família, o marido e toda uma sociedade que não entendia o sentimento dela, os fracassos esportivos são o de menos. Isso Rosecleide consegue superar e voltar ainda mais forte.
- Hoje, vejo o Vitória novamente em reconstrução. Acompanhei o clube cair para a Série C e depois voltar para a Série A, jogando a Sul-Americana. Mesmo em momentos difíceis, meu amor nunca mudou. A paixão que me fez lutar no passado segue viva. O Vitória é minha história.
- Recentemente, o Vitória estava mal na Série C, e eu estava internada. Mas mesmo no hospital, meu coração estava com o clube. Quando o Vitória voltou à Série A, eu senti que meu amor foi recompensado. E agora, vejo o Vitória em reconstrução novamente. Um clube que, mesmo entre altos e baixos, continua sendo meu grande amor. Porque amar o Vitória é isso: é resistir, é sonhar e nunca desistir - declarou-se.
Após o apito final, lá estava ela, voltando para o carro a passos lentos, por conta da sua dificuldade de locomoção, e abatida pelo resultado, mas com a garra de quem vai acompanhar o Vitória até o último dia da vida, independente do que acontecer. É como uma mãe que coloca o filho para dormir e espera ansiosamente para vê-lo novamente, vibrante, alegre e pulsante. Esse "filho" chama-se Esporte Clube Vitória.
O Vitória para mim é uma criança pequena que está indefesa, que precisa de ajuda e de amor. Precisa mais do que nunca do apoio do torcedor.
Rosecleide Aquino