Seu nome era Adalberto Cardoso, tinha 27 anos, era da marinha brasileira, fazia parte da delegação brasileira que participou dos Jogos Olímpicos de 1932, em Los Angeles, e tinha uma árdua missão a cumprir!
Ok, voltemos no tempo (costumo fazer isto algumas vezes por semana, é seguro, vem comigo), mais precisamente exatos 93 anos, na mesma data corrente, mesmo mês, mesmíssimo dia, 8 de agosto de 1932. O local: cidade de São Francisco, que dista exatos 600 quilômetros de Los Angeles, onde acontece a 10ª Olimpíada da Era Moderna. No Porto de São Francisco está atracado um navio misto (transporta carga e passageiros) brasileiro, carregado de sacas de café, algumas dezenas de atletas e centenas de dirigentes esportivos (dirigentes, políticos e familiares dos mesmos).
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Café como sustento da viagem
Situando os fatos: meses antes, o Brasil preparava um grupo de atletas para representar o país nos Jogos Olímpicos de Los Angeles. Como de hábito, não havia dinheiro sequer para enviá-los ao evento, mas a delegação de 84 atletas recebeu um enorme presente: um navio gigante de uso misto (carga e passageiros) chamado Itaquicê, com seus depósitos cheios de café (50 mil sacas), que deveria ser comercializado durante a longa viagem para virar dinheiro a ser usado para todos os gastos!
E assim partiu nossa delegação rumo aos Jogos, com 375 tripulantes compostos da seguinte forma: 84 atletas, alguns dirigentes e treinadores e uma multidão de quase 300 cartolas, familiares de cartolas e amigos, afinal, a entidade que organizava a caravana, a Confederação Brasileira de Desportos (na época não havia ainda um Comitê Olímpico nacional), era pródiga em cruzeiros!
Cada vez que atracava, lá iam atletas e dirigentes tentar vender café. Mas o mundo no começo dos anos 30 ainda vivia uma grande recessão, e praticamente nada era vendido.
Uma parada mais longa para atravessar o Canal do Panamá foi providencial para o único treino que teriam até os Jogos semanas adiante. Organizou-se, às pressas, um torneio de atletismo entre os brasileiros e panamenhos, que também participariam no atletismo e natação, dos Jogos. E nossos heróis foram até bem, mas, ao cruzarem o Canal do Panamá, ainda tinham uma longa jornada de confinamento até L.A.
O 'nascimento' de uma lenda
Ao aportarem, enfim, em Los Angeles, faltava dinheiro para que todos os 84 atletas desembarcassem, pois havia uma pesada taxa aduaneira, e o que restava de dinheiro das poucas vendas de café só seria suficiente para cobrir o desembarque de 46 atletas! E assim foi: fizeram uma lista às pressas dos atletas que teriam melhores chances de, talvez, chegarem à finais. Os 46 felizardos desceram no porto, enquanto uma legião de 38 renegados seguiu viagem até São Francisco, onde o navio e sua triste tripulação aguardaria o fim dos Jogos para recolher nossos atletas e retornar ao Brasil. Aos 46 que desceram em Los Angeles, juntaram-se 13 atletas que viajaram por conta própria, formando um time de 59 atletas.
Durante a curta viagem de L.A. à Baía de São Francisco, um tripulante começou a frequentar o enorme convés do Itaquicê duas vezes ao dia para correr! Será que não o avisaram que ele não competiria?
Adalberto continuou seu ritual diário até o dia 7 de agosto de 1932, quando em vez de seu treino matinal no convés, ele desce e solicita que o deixassem correr dentro do porto, numa reta de concreto quase sem fim. No dia 8, às 8 horas de uma manhã quase fria - e sob forte neblina (ah, São Francisco, sua cumplicidade me emociona!) - Adalberto, pergunta a um pequeno grupo de jornalistas que aguardavam impacientes o desembarque de um chinês, que seria o único atleta a representar seu país - que já beirava mais de 500 milhões de habitantes - qual o melhor caminho para Los Angeles.
"Como é?" Devem ter pensado os repórteres do San Francisco Chronicle, de olhos e bocas escancarados. Um, mais afoito, pergunta: "Você sabe que são quase 400 milhas?", exagerando um pouco! Adalberto, por meio de gestos e algumas palavras aprendidas nas aulas no Colégio Militar, agradece e diz que tem que ir logo, cumprir sua missão, as 25 voltas da prova de 10 mil metros, que acontece amanhã, em Los Angeles. Cumprimenta um a um, ajeita uma pequena mochila de algodão grosso, dá uma bicada num velho cantil da marinha, e inicia a jornada rumo ao mundo olímpico. Os repórteres, já ignorando o desembarque do chinês retardatário, imergem na história épica que começam a vislumbrar: O Fidípides brasileiro atravessa a pé o velho oeste, rumo ao Olimpo!
O mais afoito - sempre ele - liga para um amigo, em San José, cidade que fica no caminho entre S.F. e L.A, conta rapidamente o que presenciou e exige que o amigo o avise se um andarilho rumo a Los Angeles passar por ali. O amigo, frentista do único posto 24 horas de San Jose, que fica à beira da estrada que vai a L.A, a Interstate 5, pensando nos malefícios do alcoolismo entre os jornalistas da Califórnia, se vira para a janela, e dá de cara com um sujeitinho magro com uma mochila surrada às costas, rumo a….. Los Angeles. Grita para Adalberto, junta um monte de notas de dólar do caixa, pega uma Coca e atravessa a estradas às gargalhadas. Abraça forte o Fidípides dos trópicos e empurra o assustado fundista pra dentro de um caminhão que ruma à King City, já bem depois de Monterey!
E, lá vai Adalberto, à cada passo mais próximo do impossível!
E o repórter afoito continua à toda! Ao saber que Adalberto ia firme na missão, já contacta os amigos do Los Angeles Times, o maior jornal de LA.
O Ironman brasileiro
Amanhece o dia 9 em Los Angeles. À tarde, 16 horas, será a largada dos 10 mil. E enquanto 17 atletas acordam de uma bela noite de sono e se deleitam com um parrudo café da manhã, nosso futuro Homem de Ferro, na caçamba de um furgão velho, aponta seu olhar para Santa Clarita, nas montanhas, e se dá conta que há algo muito grande lá adiante, a Cidade dos Anjos. É pra lá que deve ir!
Passa Glendale, ponto final da atual carona. Chega ao Elysian Park. Ouve buzinas, será que surtou?
Enquanto ele trota rumo ao Coliseu para cumprir sua missão, um carro emparelha e seus dois ocupantes gritam palavras, para ele, desconexas. Ele para, precisa se hidratar novamente, enquanto descem esbaforidos dois repórteres do LA Times, Querem levá-lo direto ao estádio.
No estádio, a inusitada história é repetida quase à exaustão. A expectativa da chegada de Adalberto começa a crescer! Eles enfim chegam ao portão da imprensa do estádio. Faltam 10 minutos para a largada da prova! Os 17 atletas que lutarão por 25 voltas pelas medalhas já estão acabando o aquecimento para ganharem a pista. A batalha de Adalberto continua. Deixam-no entrar, ouvem os repórteres e os atletas brasileiros, checam a lista de pré-inscritos, e está lá seu nome. O tempo para a largada da prova já passou. Os árbitros pedem que os atletas na pista mantenham-se aquecidos, pois atrasarão a largada em 10 minutos. Mas falta algo importante: as sapatilhas e meias. “Vou descalço”, sentencia Adalberto, já caminhando em direção à pista.
Ao ser anunciado para que se junte aos 17 outros atletas, é aplaudido pelos que acompanham seu “caso”. Alinham-se, agora, os 18 fundistas, e largam! Depois das 25 voltas cumpridas (e compridas), vence o polonês Kusocinski, seguido de perto por dois finlandeses. Duas voltas atrás, Adalberto segue sua sina. As pernas pesam demais, os olhos insones cobram caro a ousadia. Mas ele segue. O público entende o seu esforço e devolve em aplausos. Adalberto engole em seco, sabe que é apenas mais uma volta. Depois voltar pra casa, no Rio, para rever os amigos e tentar entender a confusão política que vive seu país, tão distante. Quase tanto quanto esta última volta. Mas já passou. Agradece esboçando um sorriso. Impossível. A dor e as lágrimas não deixam.
Cruza a linha final o, agora, HOMEM DE FERRO DO BRASIL!
Assim foi o título da história, que deu até no New York Times (obrigado Henfil), vivida por Adalberto Cardoso, num dia 9 de agosto de 1932. Uma jornada olímpica esquecida em seu país, exceto por jornalistas esportivos apaixonados pelo que fazem. Obrigado, Maurício Cardoso, obrigado Jorge Luiz Rodrigues, obrigado Lédio Carmona, obrigado Tiago Petrik e obrigado Ernesto Rodrigues. Agradeço também à agilidade de dois arquivistas do LA Times, que, literalmente, me soterraram de informações sobre nosso IRONMAN, que teve uma vida digna de grandes biógrafos.
Além desta batalha hercúlea, Adalberto combateu na 2ª Guerra Mundial, servindo em dois navios de guerra defendendo a costa brasileira dos submarinos alemães.
Adalberto ainda competiu até os 44 anos, em provas regionais. Afinal, correr foi sua paixão eterna.
Faleceu no dia 11 de janeiro de 1972, aos 66 anos.
Só lembrando, os próximos Jogos Olímpicos, em 2028, acontecerão em Los Angeles!
Lauter Nogueira
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