O sentinela trouxe o FAL para junto do corpo e botou o dedo no gatilho. Parecia a iminente invasão de uma tropa inimiga crescendo naquela direção, quebrando o silêncio do fim da quarta-feira, 11 de dezembro de 1985.
Passado o calafrio inicial, restabelecida alguma lucidez, o soldado reconheceu a origem daquela onda sonora que sacudia sua guarita: era a torcida do Flamengo, que a quase 3 quilômetros dali, urrava seu mais tradicional grito de “Mengo” há 45 minutos sem parar.
Parece lenda urbana, ficção, dê o nome que achar melhor. Mas é a mais pura verdade. O relato do sentinela está registrado.
Além dos já citados 3 km, o quartel da Barão de Mesquita ainda tem uns 20 minutos de caminhada a separar do então “maior do mundo”. E várias camadas de paredão de concreto entre eles.
Mas, na noite daquele Fla x Flu, jogo do triangular final do Campeonato Carioca daquele ano, parecia pouco para calar a massa.
O segundo tempo inteiro com toda arquibancada do lado do Flamengo de pé, gritando sem parar, em busca do empate para seguir.
Até que, aos 43 minutos, Leandro, lugar cativo na galeria dos heróis rubro-negros, acerta uma bomba de fora da área e vence Paulo Victor. E o estádio explode de vez.
Foi um jogo especial da torcida do Flamengo. Mas todo jogo era especial. Fazia valer a máxima de “nação”, o temor que impunha ao visitante, a torcida capaz de tudo, até de levar os times mais medíocres para a glória.
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Elitização do Maracanã: um projeto pensado e planejado
Acabou. Essas reminiscências todas que chegam a 1985 é por essa constatação. Da tragédia que resultou a elitização do Maracanã para o Flamengo.
A bem da verdade, para todos os times. Nenhuma torcida é mais sequer a sombra do que eram naqueles tempos. Todas vítimas da mesma elitização.
Mas no caso do Flamengo foi tudo muito mais cruel. Não poderia ser diferente. Torcida com maior penetração nas camadas populares, pagou um preço muito maior pelo projeto que excluiu o pobre dos estádios.
Um projeto, e que ninguém tenha dúvida, pensado e planejado.
Quando os vendilhões do templo botaram a mão no estádio, estava lá no chamado projeto de viabilidade econômica: “mudança de perfil do torcedor”.
E assim foi. A torcida que honrava o título de “nação”, capaz de virar qualquer placar adverso, ficou para trás.
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Pedidos sem resposta: silêncio total
Uma imagem recente dá conta de explicar tudo: aos 25 minutos do segundo tempo de Flamengo x Cruzeiro, Jorginho se mata em uma disputa com adversário. Em seguida, olha para a torcida e pede apoio. Sem resposta alguma. Silêncio total. A expressão que se segue é de alguém incrédulo com o que vê.
Em outra imagem, agora viralizada, um senhor com camisa do Flamengo pede aos torcedores em volta para que gritem. O pedido parece encontrar um monte de seres de outro mundo, que sequer têm ideia do que seria isso. Para aumentar a tragédia, a patética playlist de músicas entoadas pelas organizadas, música argentina, Mamonas Assassinas e o que mais for de grotesco a não empolgar ninguém.
Junte-se a tudo, cartolas que não têm a menor ideia do que é o torcedor do time que comandam. Excelentes de planilha, com méritos em gestão, mas sem a menor ideia do que é gente. E gente rubro-negra.
Para o jogo contra o Racing pela Libertadores, já jogaram o preço lá para cima. Sequer são capazes de sentir e entender que o grito daqueles que foram excluídos das arquibancadas tem potencial de virar receita. Dinheiro em caixa. Afinal, nunca passaram por uma arquibancada e não têm a menor ideia de quantos jogos já foram ganhos ali.
José Murilo de Carvalho, em “Os Bestializados - O Rio de Janeiro e a República que não foi", nos dá conta de como o povo conseguiu, apesar de todos os pesares, se reinventar e reinventar a vida com todo seu encanto, partindo da escassez e da impossibilidade. Nem isso parece possível mais no quadro atual da torcida do Flamengo nos jogos do Maracanã.
Os excluídos da festa fazem falta a cada lance, na crônica de uma tragédia anunciada e que só tem única solução possível: derrubar aquilo ali que botaram no lugar do Maracanã.
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Lúcio de Castro escreve sua coluna no Lance! todas as sextas-feiras. Veja outras colunas:
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