Entre o campo e a gestão, os técnicos-gestores consolidam um espaço que desafia estruturas, redefine funções e expõe a urgência da pacificação de termos e descrição de funções.

A ascensão dos técnicos-gestores

O futebol brasileiro vive uma transformação silenciosa e profunda. As comissões técnicas crescem, os organogramas se multiplicam e as fronteiras entre campo e gestão se confundem. O resultado é um ambiente em que os títulos mudam, mas a falta de clareza sobre papéis e responsabilidades permanece.

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Em uma coletiva, na semana passada, Abel Ferreira expôs uma ferida antiga. Disse não ter esquecido os xingamentos recebidos da própria torcida em um momento de instabilidade. O episódio revela o vínculo emocional que o futebol brasileiro constrói entre treinador e arquibancada, mas também a dimensão de poder que esses profissionais passaram a ocupar. Abel é mais do que um técnico. É gestor, estrategista, comunicador e, muitas vezes, a principal figura política de um clube que aprendeu a vencer com ele.

Novas funções, velhos dilemas para o técnico

Esse movimento tem levado à criação de novas figuras nas estruturas de futebol. O coordenador técnico, geralmente um ex-jogador ou ex-treinador, surge como ponte entre a comissão, o vestiário e a diretoria.

O diretor-executivo, por sua vez, começa a retomar uma função mais tática e operacional, consequência direta da expansão dos departamentos de scout e análise de desempenho, que passaram a ganhar protagonismo com a ascensão dos chamados Chief Scouts, a nova “bola da vez” no mercado. Essa especialização trouxe mais dados, tecnologia e racionalidade para o processo de decisão, mas também deslocou parte do poder que antes estava concentrado nas mãos dos treinadores e executivos tradicionais.

Enquanto isso, o CEO assume uma camada estratégica voltada aos negócios e à governança, mas frequentemente é tentado pelo glamour e pela exposição que o futebol proporciona. Muitos acabam se deixando levar pelo palco midiático e, em alguns casos, buscam participar das decisões que deveriam ser exclusivas dos profissionais do departamento de futebol.

Em alguns clubes, surge ainda o CSO (Chief Sports Officer), responsável por conectar o futebol às demais áreas corporativas e traduzir a linguagem entre o campo e a empresa. Apesar da multiplicação de cargos, ainda falta pacificação nos conceitos. Afinal, o que define exatamente um CEO, um executivo, um coordenador ou um CSO dentro de um clube? A percepção da torcida, da imprensa e até dos conselhos deliberativos segue baseada em personagens e não em estruturas. A personalização segue vencendo a
profissionalização.

De Luxemburgo a Diniz: o perfil se repete

Antes mesmo de Abel, o Brasil já teve outros exemplos marcantes de técnicos que pensaram o futebol além das quatro linhas. Vanderlei Luxemburgo talvez tenha sido o primeiro a compreender o jogo também como negócio, antecipando uma visão moderna de gestão em um tempo ainda dominado por improviso e intuição. Mais recentemente, Tite e Fernando Diniz representam duas faces distintas de um mesmo fenômeno. O primeiro, com o rigor metodológico e a liderança institucional que o levaram ao topo da seleção. O segundo, com a coragem intelectual de propor ideias novas e sustentar um estilo autoral, mesmo sob o peso das derrotas. Ambos, de alguma forma, simbolizam o técnico-gestor que entende que comandar uma equipe vai muito além de escalar jogadores.

Fernando Diniz tem coragem de sustentar estilo de jogo autoral (Foto: Thiago Ribeiro/AGIF)

Quando a conta não fechar

Enquanto as estruturas crescem, as comissões técnicas se expandem de forma desordenada. Analistas, fisiologistas, observadores, assistentes e especialistas de todas as áreas se acumulam. Em algum momento, a conta não vai fechar. E quando isso acontecer, o mercado voltará a valorizar o profissional completo, multifuncional, capaz de transitar entre o campo e a gestão.

Como já escrevi em outra coluna, as carreiras multitarefas, ou slash careers, serão cada vez mais valorizadas. O futebol precisará de profissionais que saibam interpretar o jogo e o negócio, unir o humano e o técnico, o tático e o estratégico. Porque o futuro do futebol, talvez, pertença menos aos especialistas e mais aos integradores.

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Felipe Ximenes escreve sua coluna no Lance! todas as quartas-feiras. Confira outras postagens do colunista:

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