Autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, esse texto não reflete necessariamente a opinião do Lance!
Dia 19/09/2025
10:19
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Néstor Lorenzo, Gustavo Alfaro, Sebastián Beccacece, Marcelo Bielsa, Lionel Scaloni, Carlo Ancelotti.  Os comandantes de Colômbia, Paraguai, Equador, Uruguai, Argentina e...Brasil. Cinco argentinos e um italiano. 

Nenhum brasileiro liderando as seis equipes do continente já classificadas para a Copa do Mundo do próximo ano. Nem a do  Brasil.  

Difícil refutar o fato: sim, Houston, nós temos um problema. Muito mais. Um colapso.

Que não se construiu da noite para o dia. Nem ao acaso.

O quadro acima é fruto de um meticuloso projeto de país.

Um pouquinho de Brasil. Do Brasil de alguns.

Um fato de tamanho tal que deveria estar na pauta nossa da cada dia todo dia.

Em debate, em confronto, em pensar sobre. Não está.

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Guardiola mudou o jogo nos anos 2000 (Foto: JAVIER SORIANO / AFP)

O fator Guardiola

Guardiola é a linha de corte desse debate. O homem que subverteu o jogo. Lá pelos meados dos anos dois mil e pouco, quando  inventou algo que espantou o mundo e deixou bancos de reservas adversários atônitos. Sem saber como se defender daquilo, obrigados a inventar o antídoto.

O risco no chão que obrigou novos pensamentos e ideias. Acima de tudo, capacidade de formular sobre futebol.

Foi ali que ficamos para trás. Algo se perdeu. Na incapacidade de nossos treinadores em entender o que acontecia. Estamos falando de anos dois mil... Demoramos mais de uma década até que um português com nome de Jesus desembarcasse por aqui, desse o choque e diminuísse um pouco o abismo.

Foi um longo projeto de país que gerou esse brutal fracasso.

Sim, ainda é e sempre será o jogo da arte e da magia. Do Mané, do Pelé e do Diego. Mas agora tem um pouco mais de coisas no  campo do jogo.

Porque quando o jogo mudou - e foi preciso que por aqui também se formulassem novas ideias -, esse projeto de país que excluía  milhões da educação explodiu nas nossas caras.

E gerou esse buraco incontornável na beira do campo.

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Guardiola e Ancelotti são dois dos treinadores mais vencedores do futebol mundial (Foto: JAVIER SORIANO / AFP)

Os estragos da ditadura

O projeto de exclusão da ditadura militar (1964-1985), materializado em campo e bola. Com estragos duradouros por gerações.  Foi assim:

No apagar das luzes de Castelo Branco, em seu último ano de governo, passando o bastão para Costa e Silva, o ditador da vez,  assinou a Constituição de 1967. Marcada pela lógica do autoritarismo, o abre-alas do AI-5.

E marcada por uma sutileza. Um golpe. Mais um. Sem grito, sem alarde, suprimia a obrigação de pelo menos 10% da receita  aplicada em educação. Com um breve jogo de palavras, saia de cena a vinculação constitucional do percentual mínimo do MEC, desobrigando o cumprimento do piso mínimo para o MEC.

O estrago estava feito. Em uma década, o projeto de trevas da ditadura militar se realizou também na educação. 1975 começou  com 4,3% para a educação, ao contrário dos 10,6% de antes da canetada do general.

No lugar da educação, esse dinheiro para o “milagre brasileiro” em mil Transamazônicas, Angras 1, 2 e por aí vamos, Itaipus  superfaturadas, pontes, Jaris, Carajás, quem sabe se acharia bauxita por lá...Milhões se esvaindo sem jamais serem investigados.

Na ausência de um projeto de inclusão popular de educação, o vácuo, a impossibilidade. Ausência de educação formal, ressalve-se  sempre e muito, jamais da imensa riqueza cultural de um povo e suas heranças.

O remendo só viria com o fim da ditadura. Com todos os limites, que ninguém distorça, com tantas imperfeições nos anos que se  seguiram e seguem, mas com a Constituição Cidadã de 1988 restabelecendo percentuais mínimos para a educação.

Ocorre que os que estão aí, à beira do campo, ainda são os filhos do projeto de educação dos generais. Dos cortes. Do projeto de  exclusão. De exclusão de um projeto de educação como transformação social e inclusão. E do desenvolvimento pleno de todos.  Salvo aqueles filhos do andar de cima, das escolas de elite e dos planos de saúde que te salvam de projetos de exclusão. Mas esse  geralmente não estão no futebol. Na conta rápida, quem nasceu depois do fim deste projeto da caserna está com 37 anos. Ainda  fora de campo.  

O acaso também não é bom conselheiro para explicar cinco argentinos entre os seis treinadores da América do Sul com  passaporte para a Copa carimbado. Melhor tentar nas razões históricas.  

Talvez seja possível explicar cinco em seis treinadores começando por Domingo Faustino Sarmiento. Cheio de pecados graves,  inomináveis, preconceitos e racismos não aceitáveis nem se pensados enquanto um homem do século XIX. Contra quem críticos  apontam, cheios de razão, para um projeto que apagou tantas vezes diversidades culturais de povos originários em nome de um  projeto eurocentrista.  

Mas ainda assim, com todas as mil ressalvas, sem jamais ignorar a gravidade imensa disso, é preciso reconhecer em Sarmiento o  projeto de nação fundado em educação pública, gratuita, laica e obrigatória como o antídoto contra o atraso.  

A multiplicação das escolas por todo o país, para todos e das bibliotecas populares por Sarmiento explicam muito mais os cinco  em seis treinadores argentinos do continente nesse futebol pós as brutais mudanças do jogo. E ainda tem um monte de técnico  argentino espalhado pelo futebol europeu. Explicam muito mais do que argumentos muletas que pairam por aí.  

Aos amorfos, isentos e água de bidê de sempre que a essa altura da coluna já apontam o dedo para “o horror de misturar política  e futebol”, o breve pedido: comece tudo de novo. Leia lá de cima até aqui. Concordar ou não é do jogo. Afinal, o que temos aqui  são hipóteses para nossos fracassos. As minhas hipóteses.  

Certeza mesmo só tenho uma: a coluna de hoje é cem por cento sobre futebol. Do começo ao fim.  

Afinal, como ensina Gerardo Caetano, ex-jogador e historiador uruguaio, “os que dizem que futebol e política não se misturam, ou  não sabem nada, ou sabem muito e não dizem”.  

Néstor Lorenzo, Gustavo Alfaro, Sebastián Beccacece, Marcelo Bielsa, Lionel Scaloni,Carlo Ancelotti. Cinco argentinos e um italiano  na Copa pelo nosso continente. Explique isso só pelo campo e bola se for capaz. 

Lúcio de Castro: veja mais colunas

Lúcio de Castro escreve sua coluna no Lance! todas as sextas-feiras.

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