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Thiago Braga
São Paulo (SP)
Dia 20/08/2025
04:00
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Estádio mais tradicional da cidade de São Paulo, o Pacaembu é celebrado como palco de lances geniais, títulos inesquecíveis e comemorações efusivas. Foi no Paulo Machado de Carvalho, em um São Paulo e Palmeiras, em 1942, que Leônidas da Silva, o “Diamante Negro”, eternizou sua marca registrada ao marcar um gol de bicicleta pelo Tricolor contra o rival. Foi também no Pacaembu que o Brasil viu um de seus capítulos mais trágicos no futebol. No dia 20 de agosto de 1995, o estádio receberia duas partidas: pela manhã, Palmeiras x São Paulo decidiriam a Supercopa de Juniores; à tarde, Corinthians e Bragantino jogariam pela primeira rodada do Campeonato Brasileiro daquele ano. Uma sequência de erros das autoridades transformaram um dia típico de inverno paulistano, com frio e céu nublado, em um domingo sangrento.

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A Supercopa de Juniores foi um torneio criado pela Federação Paulista de Futebol para ser como uma edição turbinada da Copinha, já que o torneio reunia os campeões e vices da Copa São Paulo de Futebol Júnior.

A final reuniu cerca de 7 mil torcedores. O público reduzido tinha explicação: o Pacaembu era um estádio parcialmente interditado. O tobogã, setor atrás de um dos gols, estava fechado para reformas.

O espaço, porém, encontrava-se cheio de entulho e com fácil acesso a partir das arquibancadas, já que as grades de contenção eram frágeis. A negligência estrutural se transformaria em um dos fatores determinantes para a tragédia que se seguiu.

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A partida reunia os dois principais times do país no momento e por isso era cercada de expectativas. O atacante Adaílton, do Palmeiras, era a revelação da competição. No São Paulo, que tinha como treinador o ídolo Darío Pereyra, estavam em campo Fábio Mello e Edmílson, que foram profissionais no Tricolor.

O jogo foi equilibrado e terminou sem gols. Na época, havia a regra da “morte súbita” na prorrogação. Quem marcasse o primeiro gol, ganhava. Logo aos cinco minutos do tempo extra, o palmeirense Rogério marcou o gol que decretou o título alviverde. Porém, a comemoração deu lugar a um dos confrontos mais violentos da história do futebol brasileiro, que deixou um saldo de 102 feridos, além da morte de um jovem torcedor são-paulino.

Assim que a bola balançou as redes, a torcida do Palmeiras explodiu em comemoração e parte dos palmeirenses invadiu o gramado. A festa, no entanto, rapidamente se transformou em provocação aos são-paulinos que ainda ocupavam o estádio. O gesto foi o estopim para uma reação violenta.

Do outro lado, torcedores tricolores derrubaram o alambrado, invadiram o setor do tobogã em obras e, munidos de paus, pedras e pedaços de madeira retirados do entulho, partiram em direção ao campo. O que se viu a seguir foi um cenário de guerra medieval.

— Você acaba vendo coisas assim que você nunca imagina na vida. Eu, na verdade, não consegui chegar no vestiário na hora da briga. Eu me abriguei no banco de reservas. Era o banco de reservas número 1, que ficava à direita da cabine de rádio e da cabine de televisão. E eu fiquei agachado embaixo ali no banco. E as pedras batendo. Mas pedras enormes, madeira. Tudo acabou sendo atirado. Me lembro que os jogadores do São Paulo precisaram ser socorridos por jogadores e membros da comissão técnica do Palmeiras naquela oportunidade, para poder chegar até o vestiário — relembra o jornalista Osvaldo Paschoal, em entrevista ao Lance!.

Em maior número, os são-paulinos passaram a agredir palmeirenses, que recuaram e depois contra-atacaram, transformando o gramado em palco de uma batalha campal.

A violência tomou proporções incontroláveis. Torcedores que caíam no chão eram espancados sem piedade. O gramado virou campo de batalha, com correria, pedras voando, barras de ferro e madeiras sendo usadas como armas improvisadas.

— Foi realmente uma cena de guerra, uma batalha campal. Porque, quando você conseguia levantar a cabeça para ver o que estava acontecendo, você via um torcedor agredindo o outro com madeira, atirando pedra. Ou o que tinha na mão, acabava atirando. Foi uma batalha campal. Uma das coisas mais impressionantes, mais horríveis que vi na minha vida. Foi terrível, horrível. E, ainda depois, teve a morte do torcedor com aquela paulada na cabeça. Um negócio impressionante. Uma lástima, lástima, lástima, lástima. E eu lastimo muito de ter visto tudo isso. E não consigo apagar da minha memória esse acontecimento, porque ele foi muito forte. Foi realmente um negócio de te abalar psicologicamente. Foi terrível — conta Paschoal, que no dia estava trabalhando como repórter da “Tv Bandeirantes”.

O efetivo policial presente era de apenas 65 homens, número considerado adequado para um jogo de juniores com expectativa de público de 10 mil pessoas. A quantidade reduzida de policiais se mostrou insuficiente para conter a fúria das torcidas. A corporação demorou a restabelecer a ordem, o que permitiu que o estádio fosse tomado por cenas de selvageria.

O saldo foi devastador: 80 torcedores e 22 policiais ficaram feridos. Os casos mais graves foram encaminhados para hospitais próximos, como o Hospital das Clínicas e a Santa Casa de Misericórdia. No entanto, a consequência mais trágica foi a morte do adolescente são-paulino Márcio Gasparin da Silva, de 16 anos. Agredido brutalmente com pauladas na cabeça, ele sofreu múltiplos traumatismos cranianos e faleceu oito dias depois do confronto.

Torcedor do Palmeiras sangra no gramado do Pacaembu após briga no gramado (Foto: Reprodução/Youtube)

Três anos mais tarde, em 1998, o palmeirense Adalberto Benedito dos Santos foi condenado a 12 anos de prisão pelo assassinato de Márcio. Cumpriu aproximadamente quatro anos em regime fechado e depois progrediu para o semiaberto. A família da vítima entrou na Justiça contra a Prefeitura de São Paulo, responsabilizando-a pela morte do adolescente, mas não obteve indenização. O Judiciário não considerou o município culpado pela tragédia.

O episódio também teve repercussões diretas no tratamento dado às torcidas organizadas em São Paulo. O Ministério Público, por meio do então promotor Fernando Capez, determinou a extinção da Mancha Verde e da Independente. Embora ambas tenham retornado sob outros nomes ou brechas jurídicas, a decisão abriu espaço para medidas restritivas mais duras, como a limitação da presença de apenas torcedores do time mandante em clássicos realizados na capital paulista.

— Optou-se pela torcida única. Diminuiu a violência, porque não tem mais duas massas de torcidas se deslocando pela cidade. É prejudicial ao espetáculo? É. Há um consenso de que não se deve voltar a ter duas torcidas porque é difícil controlar o que as torcidas vão fazer. É para evitar um mal maior — afirma Fernando Capez, em entrevista ao Lance!.

A final de 1995 é constantemente lembrada como símbolo da incapacidade de se transformar a cultura de arquibancada e de lidar de forma eficaz com o fenômeno das torcidas organizadas.

— Não deveria ter sido autorizada a realização da partida naquele estádio. Subestimaram o evento — lamenta Capez.

Apesar do caráter emblemático da tragédia, os efeitos práticos na contenção da violência nos estádios foram limitados. Desde então, episódios de brigas entre torcedores continuaram sendo registrados, muitas vezes fora das arenas, em emboscadas organizadas pela internet ou em rodovias.

— Há uma lição que ainda não foi aprendida. É preciso monitorar as redes sociais, a deep web, investigar com profundidade, para evitar que as torcidas marquem emboscadas. É preciso investir em tecnologia, colocar câmeras inteligentes para identificar indivíduos que tenham prisão preventiva expedida, para inibir que essas pessoas frequentem os estádios. Para evitar brigas em outros locais, é preciso reforçar o policiamento nos pontos de fluxo. É um problema de segurança pública. As autoridades têm o dever de proteger o cidadão. As penas por brigas são bastante leves, então tem de fazer o torcedor sentir no que ele mais gosta, obrigá-lo a comparecer a uma delegacia nos horários dos jogos do time dele, em casa e fora de casa. Essa é uma pena que ele vai sentir — explicou Capez.

Três décadas depois, o episódio do Pacaembu segue como lembrança dolorosa e ainda atual. A cada novo registro de briga entre torcedores, a memória daquele domingo sangrento retorna como símbolo do que o futebol brasileiro não conseguiu superar.

— O nosso problema é cultural. O nosso problema é a escolaridade. Educação. Se o povo que precisa de muitas leis, esse povo não tem capacidade de julgamento das próprias leis. Um povo que precisa de muitas leis não tem educação. Porque se a pessoa tiver educação, ela diminui enormemente o número de leis em qualquer país do mundo. É só aqui. E aqui é um país especial, em que leis ‘pegam’ e não ‘pegam’. Isso não existe. Nós não temos educação. A base do problema das torcidas organizadas é educação. É isso. Essas batalhas que a gente vê todos os dias, todas as semanas, passam por essa palavra. Educação. Nós não temos educação. Nada. Zero. Os nossos governantes não cuidam disso. Os governantes brasileiros pensam na próxima eleição, não no bem do povo, não na educação do povo — finalizou Osvaldo Paschoal.

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