Chega-se a Buenos Aires e ele ainda está ali.
Mais do que nunca. Onipresente.
Por onde se anda, ele está presente.
O olhar apressado do visitante sempre pode trair e ser inimigo de relatos mais fiéis.
Mas não parece o caso.
A tentação da comparação é inevitável, ainda que possa ser tola. Sim, a conquista de Messi levou o craque atual para o olimpo argento. Mas o espaço de Deus ali ainda tem dono: Diego Armando Maradona. Nem a proximidade de tempo em que o Lionel levantou a taça diminui essa distância para Diego no coração e no imaginário hermano.
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Além do esporte
Nos muros, nas "villas miserias", nas camisas, nas conversas, no pensamento "de la gente", essa expressão tão deles e tão exata para falar do povo em geral, da raia miúda.
Estar na Argentina (E nem estamos falando de Nápoles...) é a confirmação diária de que provavelmente nunca houve um mito no esporte como Diego. Com a devida vênia sempre a Muhammad Ali, que nunca estará abaixo de ninguém nesse panteão e no coração de diferentes povos, encarnação da luta contra o racismo. Esse, hors-concours, assim como, por tão distintas razões, Pelé.
A afirmação sobre a construção do mito ao redor da figura de Maradona se sustenta no pilar mais fundamental que esculpe um mito: a transcendência. E Diego foi muito além do esporte.
Saiu dos campos para se tornar uma figura central na cultura argentina. Muito mais do que isso: na identidade de um povo.
Preenchendo um outro requisito na construção dos mitos: se por definição mitos servem para "organizar a vida" das pessoas enquanto criadores de coesão social, de nos mostrar nosso lugar no mundo e de onde viemos, a criar uma identidade coletiva e fortalecer laços, então Diego gabaritou tudo isso para os argentinos.
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A construção do mito
Pablo Alabarces, sociólogo fundamental deste continente, enumera em seus textos algumas razões para que esse mito tenha se construído de maneira tão inquebrantável e única:
- A qualidade esportiva excepcional
- A condição heroica: a trajetória que seguiu o roteiro do herói clássico, superando ou enfrentando provas e provações, das lesões aos vícios, e o triunfo sobre inimigos poderosos, entre eles, a Inglaterra, redimindo um povo da humilhação de uma rendição no campo de batalha anos antes.
- O relato da origem: vindo de uma origem humilde, a Villa Fiorito, fator fundamental para a construção de um mito popular, identificado com "la gente".
- O contexto global de sua atuação: foi provavelmente o primeiro herói global do esporte, aproveitando a expansão da televisão por satélite, o que amplificou sua imagem de forma sem precedentes, um dos primeiros.
- A narrativa de ascensão e queda: uma vida com uma dramática ascensão ao "céu" e a descida ao "inferno" (drogas, escândalos). E com direito a "ressurreições", o que alimentou a mitologia.
- O contexto político e social do país: sua carreira coincidiu com os piores anos da Argentina recente (ditadura entre 1976 e 1983, Guerra das Malvinas, crises econômicas brutais. É nesse contexto que aparece como a fonte única de felicidade e identificação para um povo sofrido, como nos lembra Pablo Alabarces.
Foi a junção de tudo isso, entre outras tantas marcas, que ajudou a organizar a vida de tantos e ofereceu identidade para os mais humildes. A lente para entender o mundo e dar significado, a alimentar desejos e esperanças, e ter motivo para orgulho mesmo que tudo dissesse não.
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Reflexões sobre Diego Maradona
Nessa última semana, tive o privilégio de estar em uma mesa charmosamente nomeada como "Charla Maradoneando: estudios sociales del futbol en el Cone Sur". Na Universidad Nacional de San Martin, nos arredores de Buenos Aires, ao lado do próprio Pablo Alabarces, do jornalista Ezequiel Fernandes Moores, e das antropólogas Carmen Rial e Mariana Pisani.
A resenha, promovida pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT), trouxe, diante de um auditório lotado e atento, duas horas de imensas reflexões sobre esse Maradona, sobre futebol e política, futebol e o continente, jornalismo, e tudo o que cabe aí. Ou seja, tudo. Nem sempre é assim, mas uma resenha com gostinho de quero mais.
Por fim, se alguém ainda duvida ou não tem noção da dimensão de um mito gigante e fascinante, a Universidade de Buenos Aires está promovendo essa semana o "Congresso Internacional sobre Diego Armando Maradona". Começou ontem e vai até amanhã. É tudo inacreditável: os números impressionam, mas a diversidade de temas que Maradona permite pensar muito mais ainda:
São 145 convidados para apresentar suas conferências, debater ou apresentar pesquisas.
Quatro conferências, 20 mesas de debates e 15 sessões de pesquisa. Com os já citados 145 palestrantes, vindos de todos os cantos do mundo: Argentina, Brasil, Chile, Uruguai, Itália, Espanha, Estados Unidos, entre outros tantos.
Pensando e debatendo desde identidade nacional a política, passando por direitos humanos, questões de gênero, Malvinas, futebol e muito mais.
Números que confirmam a mais definitiva profecia de Diego: "la pelota no se mancha". Que parece ter ficado pequena para Diego. O tamanho do mito distribuído em qualquer tema que se queira pensar a partir dele parece indicar que, por fim, a vida também não se manchou.
CAFAJESTADA
Foi tema obrigatório em todas as resenhas, redes e o que se imaginar. As falas toscas, grosseiras e, sem medo de errar, grotescas de Leão e Osvaldo de Oliveira diante de Ancelotti. Uma cafajestada, com mil perdões ao leitor pela palavra horrível. Só encontro ela agora. E por isso, para fugir de algo tão patético, preferi ficar em Diego. De certa forma, ainda que eles não representem todos os técnicos do Brasil, falei bastante sobre nosso fracasso nessa área na coluna de 19 de setembro aqui nesse Lance!.
No título tinha isso: "Vexame, vergonha, fracasso, e, porque não dizer, um tanto de tragédia". Segue valendo.
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