A indignação do juiz foi com a imprensa.
Um prédio desabou em 22 de fevereiro de 1998, provocando a morte de 8 pessoas.
Vidas interrompidas, famílias destruídas para sempre.
Três anos depois, em 24 de maio de 2001, saiu a sentença na justiça. O meritíssimo estava revoltado com a exposição do culpado pela tragédia, um deputado poderoso e construtor milionário.
Em diferentes trechos da sentença, o magistrado apontou o dedo com veemência para o jornalismo.
Sergio Naya, o proprietário da empresa responsável pela construção Palace 2, foi tratado com reverência, e porque não dizer, piedade, por parte da excelência.
O titular da 33ª Vara Criminal usou boa parte de sua longa peça para culpar a imprensa. E outra para defender o político.
"Os meios de comunicação, cumprindo seu dever de informar, deram ao evento destaque e relevo. Os réus, principalmente Naya, foram expostos ao público e tiveram suas vidas investigadas e devassadas", disse o juiz, lamentando, acredite, a exposição do responsável pela construção do edifício que desabou.
Num tom crescente, a sentença mistura um quase deboche e indignação por um suposto calvário do responsável, e chega a gastar o latim para socorrer o deputado. "Delenda Naya", ou "aquele a ser destruído Naya", disse o juiz.
"Mas nem isso fez cessar o autêntico Delenda Naya que desde o desabamento era repetido quase que diariamente nos órgãos e pelos órgãos de comunicação".
Até chegar ao veredito de inocente para Naya, qualificou o Jornal Nacional como desleal. "O Jornal Nacional, principal informativo da televisão, noticiou de forma desleal" e depois falou em "justiçamento".
Ao fim, quase em tom heroico, justificou sua decisão como quem vai para o sacrifício. "Troco o sucesso das manchetes pela aprovação solitária e silenciosa de minha consciência".
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Um tanto de Brasil
A peça com o veredito do Palace 2 deveria estar pendurada em todos os tribunais do país. Mais do que isso, nas escolas, universidades e também nas redações.
Um pouquinho de Brasil, como diz a música. Muito mais do que um pouquinho. Um tanto de Brasil resumido em palavras e na batida de um martelo.
Séculos de história apertados em síntese. Nas raízes profundas da formação de um país que estabeleceu e perpetuou sua estrutura social e seu sistema jurídico com os dois pés na casa-grande, a serviço dos poderosos mandatários, em detrimento da senzala. A qual coube a chibata.
Impossível resumir os tantos "Palace 2" Brasil afora ao longo dos anos e suas impunidades. Melhor ficar com a ideia de permanência que explica todos esses episódios. E lembrar de Joaquim Nabuco para entender o histórico de impunidade do andar de cima. A "obra da escravidão", sentenciada pelo abolicionista, tão bem resumida aqui: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil".
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A impunidade no andar de cima
Duas décadas depois, mais exatamente 24 anos, uma outra tragédia foi julgada.
A semana que se encerra inocentou, em primeira instância, os sete acusados pela tragédia que matou 10 jovens no Ninho do Urubu, o centro de treinamento do Flamengo, em 8 de fevereiro de 2019. Na ocasião, 26 atletas da base do clube dormiam em contêineres quando um incêndio tomou conta das instalações. Outros acusados, no caso, os que tinham cargos de mandantes no Flamengo, já tinham deixado a lista dos réus anteriormente.
O alvará do CT não era adequado, os jovem empilhados em contêineres improvisados nas dependências de uma instituição milionária, todas as condições de insegurança reunidas desde as grades nas janelas que dificultavam saída emergencial. Há algo fundamental e que grita diante de qualquer sentença de impunidade: reportagens na ocasião mostraram que os órgãos públicos já haviam condenado diversas estruturas do centro de treinamento. O Flamengo já tinha recebido vários avisos. De auditoria interna, do Ministério Público, da Prefeitura do Rio e do Corpo de Bombeiros. Estava tudo ali e alguém teria que responder por isso, parece tão evidente...
Aqui não está se comparando as duas sentenças e seus termos.
O fio que une as duas é o da impunidade no andar de cima.
Dez meninos mortos, interrompendo o sonho, a perspectiva de ascensão social no fim do túnel longo de vidas humildes e com poucas chances...
Mais do mesmo. A tragédia continuada. Nenhuma condenação, nenhum acordo, nenhum reparo traria vidas de voltas, preenche qualquer lacuna. Mas a impunidade é cadáver insepulto que fustiga para sempre quem ficou.
O que se seguiu é de triste memória também.
Uma diretoria, empossada depois do incêndio, e um debate por acordo que se arrastou e deixou ao público o sentimento de insensibilidade. Arrastando o que era pra ser imediato. Em nome da honra de uma instituição, que, obviamente não responde pela insensibilidade dos homens de ocasião. (nesse sentido, a notícia que invadiu a semana e é um soco no estomago no momento em que a tragédia volta ao noticiário, com o relato da jornalista Renata Mendonça, do "Dibradoras" e comentarista do Sportv, que mostrou em suas redes sociais as graves falhas na estrutura disponível para os treinamentos do futebol feminino. Depois de tudo o que aconteceu, o Flamengo não pode falhar cometendo o mesmo tipo de erro).
O tempo vai tirando o tema do noticiário, salvo as mui honrosas exceções, que teimam em deixar o assunto vivo. Nas teimosas reportagens de Gabriela Moreira. Nas semanais cobranças de Mauro Cezar Pereira, que transformou o tema em pauta permanente a fustigar quem queria varrer o assunto para baixo do tapete e deixar cair na vala do esquecimento. No excepcional documentário "O ninho: futebol e tragédia", de Pedro Asbeg, disponível na Netflix.
É preciso dizer também, e com a máxima reverência aqui: em tempos da abjeta prática cada dia mais comum do torcedor de cartola, é impossível não destacar o sentimento da maioria dos torcedores do Flamengo, facilmente verificável. Nas atitudes no estádio, na certeza da necessidade de que fazer memória é manter vivo e o único caminho para que coisas assim não se repitam. Nas redes sociais. Salvo eventual exceção abominável que sempre há de existir quando falamos em 40 milhões, o que se vê é uma torcida fechada com a causa pelo lado do único lado possível. Sem temor de tocar no tema. Sabendo separar o que é instituição e cartolagem.
Por outro lado, verifica-se a vileza e a desonra aqui e acolá de quem cita a tragédia para ter um ponto no debate clubístico. Difícil conceber como o ser humano pode ser capaz de algo tão monstruoso, ser tão pequeno. Quem assim age certamente nem de humano merece ser chamado.
O que resta de esperança
Em meio a dor permanente da tragédia, como em todo episódio doloroso, restam exemplos de dignidade e grandeza.
Como a história de Benedito Ferreira, o segurança que na noite fatídica enfrentou as chamas, e, ao retirar três paletas da grade da janela, conseguiu puxar literalmente quatro garotos do ninho: Cauan, Jonatha Ventura e Pablo Juan, além de um outro que ele não identificou.
Em entrevista posterior ao Fantástico, Benedito afirmou com a simplicidade e a aura que rodeia os heróis de verdade: "Eu não sou herói. Eu fiz o que estava lá para fazer".
Benedito cumpriu o calvário comum a testemunhas de tragédias, com graves problemas psicológicos desencadeados pelo trauma.
Em 2022, a gestão de Rodolfo Landim demitiu Benedito. A nota da diretoria do Flamengo na ocasião conseguiu ser tão ruim quanto o ato em si: "O Benedito não foi demitido por nada que tenha feito. Não existe um motivo especial. Apenas seus serviços não estavam mais sendo necessários às demandas internas do clube. Tecnicamente falando, trata-se de uma demissão sem justa causa, a mais comum que existe. Tendo, o mesmo, recebido todos os seus direitos trabalhistas".
Embrulhos no estômago à parte, é uma daquelas histórias que nos deixam alguma esperança no ser humano em meio ao descaso intolerável.
A história de Benedito nos remete a Guillaumet, o personagem de Saint Exupery em "Terra dos Homens", depois de sobreviver as provações mais impensáveis a um homem quando seu avião caiu e ele passou dias preso na nevasca.
Definição maior do que um homem é capaz em sua imensa dignidade, enquanto outros inversamente são capazes em sua pequenez, não há do que na explicação de Guillaumet: "O que fiz, lhe juro, nenhum animal teria feito".
Impossível encerrar sem mencionar Filipe Luís. Em caso raro, em que o pronunciamento e posição se chocam com a posição de seus empregadores, o agora treinador nunca se furtou a falar sobre os garotos do ninho. Não só em palavras, o que já seria grande. Em suas idas ao memorial para manter a chama viva, no contato com os pais das vítimas. "Enquanto estiver aqui, eles jamais serão esquecidos". Frase que, como Guillaumet, lhe juro, só um homem é capaz.
Sobra a ele a dignidade que tanto falta no que se vê tantas vezes na nossa imprensa. De adoradores de cartolas, apegados a poderes, postos e holofotes, que nunca foram capazes de qualquer insurreição contra o poder estabelecido por suas chefias e a cumplicidade contra as grandes entidades do nosso futebol e seus mandatários, mas se arvoram a apontar o dedo a outros e falar em cinismo.
Desde 2019, aos 10 minutos de jogo, a torcida do Flamengo canta pelos garotos do ninho. Um canto para que nunca mais. Um canto para enfrentar esse Brasil que se une nos anos que separam Sergio Naya e o Ninho do Urubu.
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Lúcio de Castro escreve sua coluna no Lance! todas as sextas-feiras. Veja outras colunas:
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