Dia 27/10/2015
23:10
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Todos os jogadores do elenco santista de 2002 são unânimes quando o assunto é o técnico Emerson Leão. Embora reconheçam a importância do treinador para o título do Brasileirão daquele ano e falem com carinho do "professor", eles lembram das broncas e manias do comandante. Chato, ranzinza, bravo são adjetivos comuns ao lembrar dele. Mas logo na sequência vêm os elogios: orientador, disciplinador e até amigo.

Leão concorda que pegava no pé dos Meninos da Vila, mas justifica que era preciso ser linha-dura. Em entrevista ao LANCE!Net, ele relembra o relacionamento com a garotada, a montagem do time que tirou o Peixe da fila e conta detalhes do título. Confira abaixo:

LANCE!Net: Por que aceitou dirigir o Santos em 2002, sendo que o clube vinha mal, não tinha dinheiro e te propôs um salário abaixo do que você pediu?
Emerson Leão: É simples. Eu aceitei a proposta, que não era nada excepcional... Vinha da Seleção e iria dirigir jogadores desconhecidos, o dinheiro era coisa rara, as faixas estavam de cabeça para baixo...tinha "any" motivos negativos. Mas o único motivo positivo era um que o ser humano gosta: desafio.

L!Net: Como foi logo que assumiu?
EL: Quando eu estava lá, percebi que tinha um aliado inesperado: o tempo. O Santos estava desclassificado de todos os torneios e iria sobrar tempo para treinar. Descobrimos que iríamos arriscar não contratar ninguém. Crianças, meninos, renegados e desacreditados que estavam lá eram bons para fazermos uma campanha.

L!Net: Você acreditava que brigaria pelo que?
EL: O Marcelo (Teixeira, presidente do Santos na época) achou que era um risco e achava que iríamos cair. Disse, então: "Vamos cair juntos". Vi progresso nos treinamentos e chegamos no detalhe final, para provar de tudo que eu falava era verdade...

L!Net: O que foi?
EL: Arrumei um amistoso. Não com um time da esquina, com um time difícil. Naquela época quem dirigia o Corinthians era meu amigo Parreira e convidei ele para um jogo. "Meu time é fraco, vamos fazer um amistoso para ver o que eu tenho? Você traz o árbitro que quiser, faz quando quiser... só tenho uma exigência: que seja na Vila. Para deixar meus meninos confiantes." O Marcelo concordou, mas se assustou. O Zito (membro da comissão na época) disse que eu era louco e que iríamos tomar uma goleada, o que era muito feio. Não pensava como ele, "vamos ver se eles repetem no campo o que fazem no treino", eu disse. Quando terminou o jogo (o Peixe venceu por 3 a 1), ele foi no vestiário e falou que eu era louco com sorte (risos). Fomos muito bem, vencemos, os meninos estouraram e deu no que deu, descobriram os moleques. Algumas fatalidades colaboraram para isso.

L!Net: Mas ali você já achava que poderia lutar pelo título brasileiro?
EL: Não esperávamos tanto sucesso em um curto espaço de tempo, mas ao longo dos treinamentos vimos que tínhamos coisas boas na mão. Fomos ajeitando, ajustando, entendemos a filosofia, a linguagem dos garotos. Nem entendíamos o que eles falavam às vezes, tinham muita gíria lá da Baixada Santista. Eles entenderam que precisavam melhorar profissionalmente, fisicamente, tecnicamente, taticamente, que estávamos começando juntos. Eu aprendi muito com eles, eles aprenderam muito comigo. Tive que me reciclar, pois cuidar de garotos é muito diferente, tem que pegar na mão e caminhar... e deu certo.

L!Net: Os jogadores daquele time sempre falam da sua rigidez...
EL: Se bobeasse, eles tomavam conta, porque eram jovens, crianças. Tive que me adaptar, algumas horas apertava, outras relaxava mais. Você via o treino e não sabia se era um bando de moleques ou um bando de profissionais. Começamos a dividir hora para tudo, para brincar, para se responsabilizarem. Tanto que na final um garoto recebe o pênalti, põe no chão e bate, sinal de que tinha confiança. Não tinha ciúmes, era todo mundo correndo atrás de uma coisa.

L!Net: O ex-presidente Marcelo Teixeira diz que você pedia reforços, como Romário, Ramon...
EL: Nós, da comissão, já tínhamos decidido que não precisava contratar. A não ser que aparecesse um ou outro, caso do Alberto, que não tínhamos centroavante. A convicção era total, ajudou demais a convencermos a torcida, a imprensa local e o Zito.

L!Net: Você conhecia o elenco antes de assumir?
EL: Sabíamos o que iríamos pegar, mas não sabíamos o que iríamos achar. Alguns jogadores eram reserva de treino do time juvenil, outros estavam sendo mandados embora...

Em 2002, Leão assumiu o Santos no lugar de Celso Roth (Foto: Reginaldo Castro)

L!Net: Quem?
EL: O Alex, por exemplo. Eu estava vendo o treino e ele passou por mim. Um puta de um negão fortão e eu perguntei: "Quem é aquele cara ali?". O cara falou: "É o Alex, está sendo dispensado agora." Pedi para chamá-lo. "Vamos fazer o seguinte? Amanhã, 9h, para treinar entre os profissionais". Quem é que não iria se esforçar? Ele não acreditou, mas se encheu de sorriso. Resolveu meu problema.

L!Net: E os outros?
EL: O Robinho era reserva de treino, diz que não foi muito aproveitado porque driblava muito. Ótimo, vai driblar muito no lugar certo e na hora certa. Elano e Renato estavam em uma lista de dispensa. Psicóloga achou que tinha que dispensar porque não dariam grandes jogadores, por personalidade. Eu disse: "No time dela, não. Mas, no meu vai!"

L!Net: Ter mais de três meses para treinar foi determinante?
EL: Em um país que não tem tempo para nada no futebol, três meses livres, só treinando, é mais do que determinante. É tudo que um treinador quer no mundo. Você consegue mudar o time, muda filosofia, resolve situações delicadas, se recicla, refaz muita coisa, tem tempo de corrigir e tempo de aprender.

L!Net: O que teve que mudar nos atletas?
EL: Por exemplo, com o Robinho. Ele gostava de driblar, mas fazia poucos gols. Vamos agregar, ele vai aprender a fazer gol. Insistia a toda hora, vai pra cima, vai aprender... Diego: pegava a bola e só queria para ele. Tinha que presentear. "Leva lá para sua casa essa daqui, deixa outra para a gente jogar". Dentro de uma brincadeira sutil, mudamos a cabeça do jogador. Eu sabia de tudo, mas para chegar neles tinha maneiras e maneiras. Às vezes jogador fazia algo, eu via e não falava nada. Na semana seguinte chegava nele e falava. "O senhor viu?". E eu respondia: "Vi, mas ali não era hora de falar". Acho que o sucesso estava na responsabilidade de quem dirigia. Marcelo apostou em mim, eu apostei nos jogadores e eles deram conta do recado.

L!Net: Os meninos te conquistaram e mudaram seu jeito, não é?
EL: Um dia vi eles apostando McDonald's. "Eu vou passar a bola debaixo da perna daquele zagueiro. Se eu passar, você me paga um lanche." Alguns deles chegavam para treinar de bicicleta. Entre eles, a estrela, o Robinho. Dez anos depois estamos falando e quase todos eles estão jogando, inclusive com uma performance boa. 

L!Net: Por que escolheu o Paulo Almeida como capitão?
EL: Achava que naquela hora tinha que ser ele, senão não seria respeitado como foi. Precisava dar uma responsabilidade para ele, muitas coisas ele não entendia. Ele soube ser um bom capitão, soube usar a tarja como deve. O mérito foi dele, eu apenas fui corajoso. Era tão bom, que até os mais velhos entendiam isso.

L!Net: Mas e o Léo, Fábio Costa...?
EL: O Léo gostava de um afago. Tinha dia que ele chegava para treinar, diziam que ele estava resfriado, não iria para o campo. E eu dizia: "Quer apostar quanto que ele vai treinar?" Eu falava: "Léo você é o experiente do time, precisa treinar...". Então psicologicamente eu agia sobre eles. Na mesma proporção que eu ajudava eles, teve a retribuição. O Fábio era o coordenador. Era um agressivo, que precisou acalmar. Ele entendeu e prosperou junto. Quando precisou, estava lá.

L!Net: Não contestaram a escolha do capitão?
EL: Não sei, não perguntei...

L!Net: Nem foram te falar?
EL: Não, com certeza, não (risos).

L!Net: Você estava mais motivado após o fracasso na Seleção?
EL: Eu vinha da Seleção, só lidando com problemas, com mentiras de dirigentes, de presidente... Aí falei: "Vou me refugiar no Santos, para mostrar o que deveria ter feito na Seleção". O Santos foi um caminho maravilhoso. A reciclagem é a seguinte: se eu pego todo mundo com 25 para cima, dou a determinação e cumpra-se. Se pego todo mundo com 25 para baixo, dou a determinação e sai junto com eles. Vamos passear naquela estrada, vou andar com vocês. A gente deu essa retaguarda a eles muito bem, a mesma que recebi da diretoria.

L!Net: Foi seu melhor trabalho?
EL: Não digo que foi o melhor trabalho da minha carreira, foi o mais diferente. O desconhecido é o mais difícil e o mais gostoso, você vai se descobrindo.

L!Net: Quando passou a acreditar no título?
EL: Muitas coisas aconteceram e fomos passando por cima. Mas, quando classificamos, falei: "Agora vai dar. Não convidaram para a festa? Agora vamos dançar. Eles vão sofrer". Sabia da qualidade dos moleques e eles queriam aparecer.

L!Net: Justamente no último jogo você foi expulso...
EL: Na final o juiz quis aparecer mais que os jogadores. Sabe qual foi o prêmio por ter me expulsado? Ter apitado a Copa do Mundo. Ele foi horrível, tirou a pessoa responsável. No primeiro momento teve uma queda, o time se sentiu órfão, mas depois se recuperou.

L!Net: O time sentiu.
EL: Sim, mas, recuperou, fui falando com o Barbosa (preparador físico), "fala isso para fulano, diz para o Léo ficar mais, vamos jogar no contra-ataque, não precisamos de exibição, mas, sim, do título"...E aí, dois contra-ataques, dois gols.

L!Net: Quase todos os santistas dizem que pensaram na eliminação para o mesmo Corinthians na semifinal do Paulista do ano anterior...
EL: Não tive tempo para pensar nisso, minha preocupação não era com o passado, era com o presente. Minha preocupação era em acalmá-los. Sempre jogávamos para frente, mas tínhamos de mudar a tática, jogar no contra-ataque.

L!Net: Quais as maiores dificuldades que enfrentou?
EL: As dificuldades eram tão poucas, que não lembro muito. Nossa dificuldade era financeira, mas, como ganhamos tanto, os caras começaram a querer patrocinar... começou a chover. E a horta que choveu, cresceu. E está aí até hoje.

L!Net: Tem noção do que representou aquele título, inclusive para você?
EL: Foi a reconquista do Santos, o achado do Santos. Achou o título, a torcida, o dinheiro e os jogadores. E até hoje perdura esse oba-oba. Ajudou todo mundo, até a mim.

L!Net: E o legado deixado ao clube?
EL: O maior legado foram os torcedores, que aumentaram, como está aumentando com o Neymar. Só que hoje o Santos é de um ídolo. Naquele tempo, era de todo mundo. Não tinha só um, tinha um monte de bons de bola. A molecada vinha no campo, ia no treino, todo mundo comprou camisa do Robinho, do Diego...Era assim.

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