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Lance!
São Paulo (SP)
Dia 08/06/2019
16:17
Atualizado em 09/06/2019
07:25
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Quando o técnico Vadão anunciou a convocação da seleção feminina para a Copa do Mundo da França, não foram indicadas ou a discussão de ordem técnica que dominaram o noticiário da imprensa. Foi a gafe cometida pelo veterano técnico que colocou a Jamaica, nosso adversário de hoje na estreia, do outro lado do Atlântico, no continente africano. Os mais compreensivos entenderam que o que foi dito foi uma comparação de estilos de jogo. Os mais incisivos viram apenas e tão somente um erro grotesco, daqueles de desapontar um professor mediano de geografia.

Não foi por acaso, contudo, que a geopolítica jamaicana – e não a seleção brasileira – virou o foco dos holofotes. A mídia, ou a maior parte da mídia, pouca coisa tinha a perguntar. O futebol feminino na terra de Marta, a recordista absoluta em premiações de melhor do mundo da Fifa, recebe quase a mesma atenção do golfe ou do hipismo. Ou seja, é um daqueles esportes que só entram em pauta nas TVs, nos sites e nos jornais quando há uma medalha olímpica em jogo, um título mundial ou quando surge um ídolo capaz de despertar a sempre latente brasilidade.

A história de Valentina, uma menina carioca que desde muito pequena se interessou em jogar futebol é ilustrativa de como o esporte é tratado por aqui. A paixão pela bola começou na escola, nas aulas de educação física. Um dia, disse para a mãe que queria levar aquilo mais a sério, queria treinar de verdade. Flamenguista, foi à Gávea, animada para inscrever-se na escolinha do clube. Um sonho que por pouco não caiu por terra ao descobrir que simplesmente não havia ali a escolinha feminina. Lhe ofereceram jogar futsal, o que ela não quis. Pensou em desistir quando, por obra do acaso, cruzou com alguém que se interessou por sua história. E a convidou para fazer um teste na escolinha dos meninos.

Valentina passou pela peneira. Ficou isolada nos primeiros treinos, ninguém lhe passava a bola. A mãe achou que era discriminação. A menina apostou que era apenas questão de tempo. E disse que ninguém ligava para ela por que sua chuteira era horrível e ela mal conseguia jogar. Ganhou um novo par e foi a campo. A estreia foi num jogo do Flamengo contra um time da comunidade da Rocinha. Uma chuva de gols, típico dos jogos de garotos. Sete a seis para o rubro-negro. E foi de Valentina o gol da vitória. Nada é fácil, vocação não é tudo. Hoje ela briga para conciliar horário de escola e vaga para treinar.

Certamente, há muito mais moleques do que molecas boleiras Brasil afora. Mas é certo, também, que há outras tantas valentinas por aí, tolhidas no desejo de ocupar os gramados e impedidas de desenvolver o potencial que têm de seguir uma carreira. A Valentina do Flamengo contou com a persistência da mãe e a sorte que cruzou a sua frente no momento em que estava prestes a desistir. Mas a maioria, pelo preconceito, a falta de apoio e de oportunidade, sequer consegue encontrar o caminho para começar.

Por incrível que pareça a coisa já foi pior. Em 1941, um decreto do governo Vargas, proibiu as mulheres de praticar “esportes incompatíveis com a natureza feminina", o futebol à frente da lista, determinação só revogada em 1979. Nos últimos tempos, alguns clubes como o Santos, o Corinthians ou o São José já desenvolvem um trabalho consistente no futebol feminino. Outros como Foz Cataratas, Iranduba, Kindermann e Vitória das Tabocas, sem tradição entre os barbados, seguem a mesma linha. São pioneiros em participarem do Campeonato Brasileiro que começou em 2013, com 20 equipes e, desde 2017, está dividido em séries A1 e A2 reunindo no total 32 clubes de todo o país. Das 10 Libertadores promovidas pela Conmebol, desde 2009, sete foram ganhas por clubes brasileiros. E pouca gente sabe disso tudo.

A partir desse ano, a CBF passou a exigir que todos os clubes que disputam a Série A do Brasileirão tenham times femininos adultos e de base. A medida é elogiada pelos que veem um impulso à modalidade e criticada pelos que a consideram pura demagogia que não leva em conta um investimento que nem todos estão aptos a fazer. Contradições à parte, a certeza é que a profissionalização ainda está longe – R$ 4 mil mensais já podem ser considerados um salário de ponta entre as mulheres. Não é atoa que das 23 convocadas por Vadão, só seis jogam em clubes brasileiros.

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