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Roberto Jardim
Porto Alegre (RS)
Dia 05/05/2025
10:00
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Há um ano o Rio Grande do Sul vivia sua maior tragédia. A enchente de 2024 foi superlativa. Em 15 dias, 478 dos 487 municípios gaúchos foram afetados, com 184 mortos e 25 desaparecidos. Trezentos e 65 dias depois, muitos dos desabrigados e desalojados ainda nem voltaram para casa. Perto desse cenário, o que o Internacional viveu parece pouco. Mas não foi. Para lembrar como a calamidade climática afetou o clube que tem seu estádio à beira do Guaíba e os dias que o Beira-Rio ficou embaixo d'água, o Lance! ouviu um dirigente, um funcionário e um jogador.

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O Beira-Rio cercado pelas águas em meio à enchente e 2024 (Foto: Maxi Franzoi/AGIF)

A enchente chegou a Porto Alegre no dia 1º de maio, quarta-feira, quando as águas do Guaíba começaram subir rapidamente no Cais do Porto. A cerca de 15km dali os funcionários do CT Parque Gigante já se preocupavam.

– A gente já tinha sido acometido em outras oportunidades. Sempre no CT Parque Gigante. Naquele momento, achamos que só repetiria o que já tinha acontecido – recorda o vice-presidente de Patrimônio, Gabriel Nunes.

O encarregado de manutenção do Beira-Rio, Rodrigo Riegel, acrescenta:

– Acompanhávamos a chegada da água pela TV. Começamos a nos preparar para o impacto no CT, que inevitavelmente seria atingido. Mas foi tudo inócuo, porque a água subiu de uma maneira absurda. Muito rápida.

“Aquela visão me deixou arrasado”

A água começando a tomar o CT Parque Gigante (Foto: Divulgação/Sport Club Internacional)

No dia 3, sexta, a água já tomava o Centro da cidade, chegando a pontos como o Mercado Público e a Praça da Alfândega, onde acontece a tradicional Feira do Livro. O mesmo acontecia nos gramados do CT, que ficam literalmente à beira do Guaíba.

– Enquanto trabalhávamos no CT, me chamaram no Beira-Rio, para a ver o impacto no estádio. Fiquei monitorando. No sábado, já dava para ver que ia chegar. Comecei a perceber pelas tampas dos esgotos pluviais do pátio, onde já dava para ver a água – relata Riegel, para acrescentar:

– Nesse meio tempo, fui olhar no fosso, embaixo da arquibancada. A água estava a meio metro de sair. O fosso tem uns 2m50cm de profundidade.

O estádio Beira-Rio e seu entorno no dia 5 de maio (Foto: Divulgação/SC Internacional)

No domingo, 5, quando o encarregado voltou ao Beira-Rio, o pátio, à via na sua frente e o interior do estádio já estavam tomados pela água do Guaíba que retornava via canalização dos esgotos pluviais. Atrás, entre a cancha e o CT, a avenida Beira-Rio estava ilesa por ficar em cima de um dos diques de proteção que a cidade tem desde os anos 1970.  

– Entrei pelo edifício-garagem, cheguei na arquibancada, e vi o gramado completamente submerso, as coisas boiando. Aquela visão me deixou arrasado – conta Riegel.

Prêmio Fair Play para Thiago Maia

Segundo Nunes, a água atingiu cerca de 2m20cm no CT e 1m na área térrea externa e no gramado do estádio. Na zona mista, nos vestiários e no túnel de acesso, que ficam um pouco mais abaixo, bateu em 1m80cm. Enquanto isso, parte dos 400 funcionários do clube também era afetada pela cheia, tendo suas casas invadidas pelos rios e arroios. Alguns perderam tudo o que tinham.

Thiago Maia recolhe doações (Foto: Reprodução/Redes sociais)

Mesmo sem ter como trabalhar, Riegel e alguns colaboradores iam todo dia ao Beira-Rio, monitorar a situação. Ao mesmo tempo, o clube ajudava a organizar coletas de doações que foram distribuídas nos inúmeros abrigos. Os empregados que podiam, ajudavam a atividade. Assim como os jogadores. Outros, como Thiago Maia atuavam de outro jeito.

– Me juntei com o pessoal da igreja. Ficamos ali uns seis ou sete dias... Acordando seis da manhã e chegando em casa quase 11 da noite. O dia todo nos resgates. A gente se alimentava por lá mesmo, com o que dava. Na minha casa, não tinha água nem luz – contou por telefone.

No dia 9, seis dias depois de a cidade ser tomada pelas águas, o volante ajudava nos resgates no bairro Humaitá, quando socorreu dona Evair Gomes Carneiro, 71 anos. A aposentada não havia abandonado seu apartamento, no décimo andar, quando a inundação começou a subir.

O volante e dona Evair saindo do condomínio no bairro Humaitá (Foto: Reprodução)

O grupo com que o 29 do Internacional chegou ao local e a convenceu a sair. Como não dava pé para a idosa, Thiago a colocou nas costas e a levou até a embarcação. Sua atitude lhe rendeu o prêmio Fair Play da FIFA. Além de uma amiga e uma torcedora:

– Até hoje mantenho contato com alguns, como a dona Evair. Até nos encontramos novamente. Trocamos mensagens. Ela já foi ao estádio, eu voltei na casa dela recentemente.

Documentário conta a recuperação

Interior do Beira-Rio após as águas baixarem (Foto: Divulgação/SC Internacional)

Ao mesmo tempo, no estádio, Riegel e seus comandados continuavam com as visitas diárias. Ele lembra o que mais o impressionou:

– O bairro virou um bairro fantasma. Na segunda, me chamou atenção. Fui até o lado que dá para a Padre Cacique e abri uma janela. Era um silêncio absoluto. Não tinha barulho de nada. Nem parecia que a gente estava na cidade.

Ao todo, como contabiliza Nunes, a casa colorada ficou 11 dias debaixo d’água, outros 36 sem abastecimento de água nem luz. Depois que a água escoou, foram necessários 52 dias para voltar a receber um jogo.  

– Quando a água baixou, começamos a entrar em área por área, para tentar ver o que dava para ser consertado. Nada dava para ser consertado. O cenário era devastador, muito triste - relembra Riegel.

Aí foi iniciada a mobilização. O clube montou uma força-tarefa com os funcionários disponíveis e com terceirizados contratados, conta Nunes. Cerca de 600 pessoas começaram a trabalhar diariamente no Beira-Rio e no CT. Como nos primeiros dias não havia energia elétrica, chegavam com o raiar o sol e saiam quando começava a escurecer. Sete dias por semana.

Rodrigo Riegel, encarregado de manutenção do estádio do Internacional (Foto: Roberto Jardim/Lance!)

Riegel conta, entre emocionado e orgulhoso do trabalho feito:

– Em 35 dias deixamos o estádio operando, com todas as partes vitais em funcionamento.

A recuperação é descrita no documentário Gigantes, dirigido pelo fotógrafo Daniel Marenco, à época funcionário colorado. O média-metragem, fará parte da edição de Lisboa do festival Cinefoot, pode ser assistido abaixo.

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