Em setembro de 2005, o futebol brasileiro foi abalado pelo maior escândalo de sua história: a revelação de que árbitros manipulavam resultados de partidas do Campeonato Brasileiro, da Libertadores e do Paulista para favorecer apostadores expôs fragilidades do esporte no país. Era a Máfia do Apito que começava a ruir.
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No dia 23 de setembro de 2005, uma reportagem da revista Veja revelou que árbitros estavam envolvidos em fraudes de resultados. O nome central era Edílson Pereira de Carvalho, então juiz do quadro da Fifa, acusado de receber propina para alterar resultados em partidas de futebol. Ao lado dele, atuava também o árbitro Paulo José Danelon. Ambos mantinham ligação com um grupo de empresários ligados a casas de bingo em São Paulo e Piracicaba.
A investigação começou seis meses antes e no início não envolvia as autoridades.
— Na sexta-feira, quando ela me segurou na redação, eu fiquei bravo, porque eu estava querendo ir embora, né? E quando ela falou pra que que estava me segurando, eu falei, ‘pô, Thaís, isso aí não existe, né, cara? Isso aí é coisa do filme ‘Boleiros’. Isso só no cinema, não é assim. Eu fui bem arrogante — recorda ao Lance!, André Rizek, autor da reportagem da revista “Veja”.
— Mas eu fui. Eu fui meio dormindo, assim, sabe? Tanta coisa pra fazer, pra apurar, pra buscar as coisas que eu tava tocando na época, e eu tô aqui, encontrando um ‘biruta’. Mas logo nos primeiros minutos da conversa com a fonte, ele me apresentou o material que ele tinha, eu já entendi que o negócio era muito grande mesmo — completou o jornalista.
O material em questão era uma gravação telefônica em que Danelon admitia que havia tentado fraudar os resultados de Santos x Guarani, pelo Paulista daquele ano. Foram seis meses de desenvolvimento, de coleta de provas, até o caso ir para o Ministério Público, e depois para a Polícia Federal. Assim, a Justiça autorizou a interceptação telefônica dos envolvidos.
— Já no primeiro dia de investigação, eles já pegam o Edilson falando daquele Vasco e Figueirense em que ele opera o Figueirense. No primeiro dia já tinha ali uma prova no inquérito — relembra Rizek.
O mentor do esquema era apontado como o empresário Nagib Fayad, conhecido como “Gibão”. Ele e seus parceiros definiam previamente os resultados que interessavam às apostas ilegais feitas em sites de jogatina online. Em troca, os árbitros recebiam cerca de R$ 10 mil por partida manipulada.
A investigação foi conduzida pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial e Repressão ao Crime Organizado) do Ministério Público de São Paulo, com apoio da Polícia Federal. No dia seguinte à publicação, Edílson foi preso em sua casa, em Jacareí, e Fayad foi detido em uma boate em São Paulo.
O escândalo explodiu em meio à disputa do Brasileirão. O Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) e a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) decidiram anular 11 partidas apitadas por Edílson Pereira de Carvalho e remarcar os jogos. A decisão mudou diretamente a tabela.
— Ele era considerado um ótimo árbitro. Eu gostava das suas atuações. Ele errava como todos. Ele tinha uma postura, ele comandava o jogo, ele não permitia que o jogo descambasse. Jamais pensei que ele pudesse fazer esse ato desprezível, corrupto — falou ao Lance! Fernando Carvalho, presidente do Internacional em 2005.
O Corinthians, que havia perdido para Santos e São Paulo com Edílson no apito, enfrentou novamente os dois rivais. No reencontro, venceu o Peixe e empatou com o Tricolor, somando quatro pontos a mais. No fim do campeonato, o clube paulista conquistou o título, três pontos à frente do Internacional. Se os resultados originais tivessem sido mantidos, o time gaúcho teria terminado como campeão.
— Eu acho que todos os jogos que o Edílson apitou deveriam ter sido submetidos a uma análise, uma avaliação. Como diz a lei, interferência indevida gera anulação. Mas tem de haver prova cabal. Deveria ter sido criado um organismo de avaliação. O que não poderia acontecer é uma anulação indeterminada de todos os jogos sem nenhuma avaliação. E foi exatamente o que aconteceu. Deveria ter criado uma comissão para analisar todas as partidas que esse árbitro apitou. No jogo entre Internacional e Coritiba, não houve interferência, o próprio Edílson disse. E o Internacional teve de jogar duas vezes para ganhar três pontos. E o Corinthians jogou de novo e ganhou quatro pontos. Isso foi o diferencial do campeonato. O Internacional seria campeão se não houvesse a repetição desses jogos — analisou Fernando Carvalho.
Depois disso, antes ainda da decisão do torneio, o destino reservou um Corinthians x Internacional faltando três rodadas para o fim do Brasileirão daquele ano. O destino, porém, reservou mais uma surpresa para aquela competição: o árbitro Márcio Rezende de Freitas errou a favor do Corinthians ao não marcar pênalti do goleiro Fábio Costa no volante Tinga, do Internacional. Além disso, expulsou Tinga por simulação.
— O erro do Márcio foi um erro de arbitragem, que acontece, jamais acusei o Márcio de fazer parte desse organismo. Mas é um erro crasso né. Eu tinha o Márcio em alta conta. Quando aconteceu aquele jogo, eu não o levei para o lado da desonestidade, não levei e até hoje eu não o levo para esse lado — resumiu Fernando Carvalho.
Banimento dos árbitros e processo na Justiça
Edílson Pereira de Carvalho e Paulo José Danelon foram banidos do futebol. Eles, junto com Fayad e outros envolvidos, responderam a processos criminais por estelionato, formação de quadrilha e falsidade ideológica.
No entanto, à época não havia no Código Penal brasileiro uma tipificação específica para fraudes esportivas. Em 2010, cinco anos depois, o Estatuto do Torcedor foi alterado para incluir artigos que previam penas de dois a seis anos de prisão e multa para quem manipulasse resultados. A falta de legislação específica em 2005 fez com que os processos fossem suspensos. Com o passar do tempo, as acusações prescreveram.
O caso deixou como legado a criminalização das fraudes esportivas e reforçou a necessidade de monitoramento mais rigoroso da arbitragem.
— É por isso que é tão importante você ter um jornalista profissional, uma empresa que investe nisso. Porque jornalismo custa dinheiro, né? Então a empresa tem que estar disposta a deixar um, dois, três, quatro jornalistas às vezes meses, num caso que pode ser que não saia. Pode ser que não saia. Nesse caso saiu, ainda bem. Foi isso — opina André Rizek.
Após a Máfia do Apito, a CBF criou a Corregedoria de Arbitragem, órgão interno responsável por acompanhar a conduta dos árbitros do quadro nacional. Desde então, juízes precisam apresentar documentos de idoneidade, como certidões negativas de antecedentes criminais e dívidas financeiras.
Em 2023, o Ministério Público de Goiás revelou um novo esquema de apostas que envolvia atletas das Séries A e B. Jogadores recebiam dinheiro para cometer atos específicos em campo, como cometer pênaltis ou tomar cartões. Dessa vez, com a lei em vigor, investigações levaram a punições e até prisões.
A comparação entre os dois momentos mostra como a ausência de legislação em 2005 impediu punições mais severas e como o caso da Máfia do Apito serviu de referência para mudanças posteriores.
A criminalização das fraudes esportivas ocorreu em 2010, com a inclusão dos artigos 198, 199 e 200 no Estatuto do Torcedor, hoje parte da Lei Geral do Esporte. O texto prevê penas de dois a seis anos de reclusão e multa para atletas, árbitros, dirigentes ou apostadores que manipularem resultados.
Em 2015, houve atualização que ampliou a abrangência da lei, incluindo eventos associados às competições. Mais recentemente, em 2023, a Câmara dos Deputados aprovou projeto que aumenta a pena em caso de envolvimento de profissionais do esporte.
— Graças a esse fato, o Brasil mudou. Um dos motivos que não levaram à cadeia o Edilson na época que não era crime, não era tipificado na legislação penal brasileira, a manipulação esportiva. Isso mudou. Hoje, pessoas pegas nesse crime são tipificadas, são presas. Ela abriu também os olhos sobre como as apostas tinham que ter mecanismos de que os próprios sites pudessem avisar as autoridades quando tivesse algum volume incomum de dinheiro apostado. Um dos sites da época percebeu. Só que o site era ilegal. Então, um site ilegal jamais avisaria a autoridade porque os sites são lesados — pontua André Rizek.
O Lance! procurou o ex-árbitro Edílson Pereira de Carvalho, mas ele preferiu não responder aos questionamentos da reportagem.