O dia 31 de outubro marca o Halloween, celebração anual difundida em diversos países e reconhecida pelas suas histórias sombrias. No universo do futebol, a data pode ser associada às chamadas "maldições" que, segundo crenças populares, perseguem personagens e clubes, atribuídas à influência de forças sobrenaturais para justificar fracassos.
Entre essas narrativas, destaca-se uma das mais conhecidas do futebol internacional. A maldição que, segundo a tradição, recaiu sobre o Benfica na década de 1960, após uma promessa de que o clube português permaneceria cem anos sem conquistar títulos europeus — episódio que ainda hoje alimenta o folclore esportivo.
Para compreender a origem dessa história, é preciso conhecer o feiticeiro: Béla Guttmann, técnico das Águias entre 1959 e 1962. O Lance! aproveitou o Halloween para relembrar a trajetória do húngaro e investigar como Portugal encara esse episódio após tantas décadas, sob as perspectivas da imprensa local, de quem vestiu a camisa encarnada e da torcida.
Quem é Béla Guttmann? 🔎
A biografia de Guttmann pode ser dividida em fases distintas, cada uma marcada por desafios e transformações que revelam a intensidade de um homem apaixonado pelo futebol. Vítima da crise financeira provocada pela queda da Bolsa de 1929 e sobrevivente das perseguições da Segunda Guerra Mundial por sua origem judaica, ele construiu uma vida repleta de reviravoltas, sempre guiado por um temperamento forte e uma personalidade explosiva.
O livro "A Pirâmide Invertida", escrito por Jonathan Wilson, aborda a história tática do futebol e dedica um capítulo ao futebol húngaro, com ênfase em Béla. O autor descreve o treinador com características fundamentais para compreender o estereótipo a ele associado, que está ligado à famosa maldição.
Guttamnn era um individualista impaciente, um homem consumido pelas circustâncias e, por consequências, desconfiado da autoridade.
Jonathan Wilson, jornalista do "The Guardian", sobre Béla Guttmann
Sua carreira como jogador, que se estendeu de 1919 a 1933, teve momentos de destaque, como a convocação para representar a Hungria nos Jogos Olímpicos de Paris, em 1924. Na ocasião, ficou indignado com a falta de preparo da delegação, em virtude da federação ter priorizado o conforto dos dirigentes em detrimento das necessidades dos atletas. A partir desse episódio, nunca mais defendeu a seleção. Elegante e técnico, ainda atuaria como meio-campista na Áustria e nos Estados Unidos, mas sua verdadeira vocação no esporte ainda estava apenas no início.
Hungria, Itália e São Paulo ✈️
Desde os tempos de jogador, Béla demonstrava inquietação e raramente permanecia por longos períodos em um mesmo clube. Como treinador, seguiu como um nômade do futebol. Iniciou sua carreira técnica na Áustria antes de retornar à Hungria para comandar o Újpest, onde conquistou títulos e reconhecimento.
Seu período no clube, porém, foi breve: refugiou-se na Suíça durante a Segunda Guerra, regressando ao Újpest apenas em 1947, quando obteve mais um campeonato nacional. Nessa fase, já delineava um sistema tático inovador para a época, uma adaptação do modelo WM que mais tarde se transformaria no célebre 4-2-4, base estratégica que marcaria seus trabalhos.
Após dirigir diversos clubes italianos e reorganizar o Milan da época, Guttmann assumiu, em 1956, o comando do Honvéd — equipe que concentrava a base da lendária Hungria daquele período. No ano seguinte, realizou uma excursão com o clube pelo Brasil e encantou o País do Futebol. Impressionado com seu trabalho, Vicente Feola, então técnico do São Paulo e campeão mundial em 1958 pela Seleção, articulou sua contratação.
Guttmann assumiu o Tricolor em 1957, conquistou o Campeonato Paulista daquele ano — o último título estadual do clube até 1970 — e introduziu um estilo de jogo ofensivo e vertical, pautado em métodos de treino e fundamentos inovadores no Brasil. Deixou o time após uma única e intensa temporada, motivado por questões financeiras, sem controvérsias.
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Bicampeão em Portugal e na Europa 🏆
Foi justamente após sua passagem pelo São Paulo que Béla alcançou notoriedade no futebol português. No Porto, comandou a equipe em uma notável virada na temporada 1958/59, quando eliminou uma diferença de cinco pontos e ultrapassou o Benfica na luta pelo título nacional. O feito atraiu a atenção do clube lisboeta, que o contratou em seguida, dando início ao capítulo mais marcante de sua jornada.
No Benfica, Guttmann consolidou seu legado. Além de reconduzir o clube ao domínio nacional, encerrou a hegemonia do Real Madrid na Europa ao vencer a Taça dos Campeões Europeus — atual Champions League — nas temporadas 1960/61 e 1961/62, sempre sustentado em seu consagrado 4-2-4. Além disso, foi o principal responsável pela chegada de Eusébio, maior artilheiro da história dos Encarnados, autor de incríveis 473 gols em 440 partidas.
O protagonismo do Benfica manteve-se com o Pantera Negra no clube até 1975, enquanto Béla deixaria a equipe ainda em 1962. O treinador pediu aumento salarial à diretoria, que recusou o pedido, mesmo diante dos sucessos obtidos sob seu comando. A partir desse episódio, surgiu a teoria da "maldição de Guttmann", segundo a qual o técnico teria amaldiçoado as Águias com a seguinte sentença: a entidade ficaria cem anos sem conquistar qualquer título europeu, especialmente sem sua presença à frente do time.
Eterno Halloween? 👻
Foi nesse momento que se iniciou a sina do Benfica em competições continentais. Na própria década de 1960, o clube chegou outras três vezes à final do principal torneio europeu — em 1963, 1965 e 1968 —, todas as campanhas com o vice-campeonato, após derrotas para Milan, Inter de Milão e Manchester United, respectivamente.
Posteriormente, em um hiato mais longo, o Benfica voltou a uma decisão internacional e perdeu a Copa da Uefa — atual Europa League — para o Anderlecht, em 1983, após empate e derrota nos dois jogos da final. Retornou à disputa do maior palco do futebol europeu e foi novamente superado em duas ocasiões: em 1988, pelo PSV, nos pênaltis, e em 1990, outra vez pelo Milan.
As tentativas mais recentes ocorreram em finais consecutivas da Europa League, em 2013 e 2014, quando o time foi derrotado por Chelsea e Sevilla, respectivamente, a última novamente nos pênaltis. Com isso, já são oito finais continentais consecutivas sem conquistar um título desde o maldição. Cabe lembrar que, ainda sob o comando do húngaro, o Benfica também perdeu duas decisões da Copa Intercontinental: em 1961 para o Peñarol e, em 1962, para o Santos.
Ao longo de sua história, o Benfica disputou 12 finais internacionais, das quais conquistou apenas duas, e perdeu todas as demais após a saída turbulenta do bravo comandante. Abaixo, confira as finais disputadas pelo clube:
Memória coletiva 💭
Afinal, a maldição seria apenas mais uma coincidência em um esporte marcado por repetições de resultados ou representaria um elemento intrínseco à cultura interna do Benfica? Para compreender melhor, é necessário identificar quem contribuiu para difundir a lenda entre o público português e mundial: a imprensa lusitana.
Segundo o jornalista Rui Viegas, da "Rádio Renascença" e do "DAZN Portugal", a comunicação portuguesa aproveitou os resultados negativos consecutivos da equipe ainda nos anos 1960 para consolidar a narrativa. Isso transformou a história em um mito que ultrapassou os limites do clube e se inseriu no imaginário popular.
— A imprensa portuguesa, não digo que tenham sido feitos muitos trabalhos, mas sempre que se falava de Béla Guttmann, falava-se de maldição. O Benfica, naturalmente, não entra por esse caminho, não faz essa referência, mas muita gente ligada ao Benfica já comentou o tema — iniciou o jornalista, em entrevista exclusiva ao Lance!.
— O que é certo é que Béla Guttmann teria dito que o Benfica não voltaria a ser campeão da Europa durante 100 anos. A lenda ganhou destaque, e penso que esse é um ponto muito importante, quando o Benfica perdeu várias finais europeias nas temporadas seguintes — seguiu.
— O certo é que, até hoje, falar de Béla Guttmann é falar dessa maldição. Em Portugal, ele não é visto como um herói injustiçado nem como um traidor lendário, mas como o homem que deu dois títulos europeus ao Benfica — e é sobretudo isso que se guarda dele. Há uma estátua no interior do Estádio da Luz, bem como duas réplicas da Taça dos Campeões Europeus no Museu do Benfica — finalizou.
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No entanto, a questão não pode ser considerada consenso entre os profissionais da mídia. Em contraponto, o jornalista Bruno Fernandes, jornalista do portal "O Gol", questiona a veracidade do conto e afirma que a imprensa portuguesa não deu destaque à história devido a seu caráter mais analítico para fatos concretos em detrimento de teorias da conspiração. Além disso, o colaborador destaca que a imagem do treinador permanece positiva na história do clube até hoje, sem qualquer registro que manche seu currículo.
— Penso que tudo isto é um mito exagerado e que, às vezes, quando há uma derrota europeia, as pessoas se escudam nessa história. Já a imprensa portuguesa não: porque, em Portugal, o facto, a tática e a objetividade acabam sempre por prevalecer — disse Fernandes ao Lance!.
— Não há nenhuma evidência, nem qualquer meio que o possa provar de forma concreta, a não ser relatos da época, que são muito díspares. Por que é que a história começou a ganhar tanta força? Começou a ganhar força porque o Benfica foi, ao longo do tempo, perdendo algumas finais — completou.
— Quanto à forma como Guttmann é visto hoje, ele é considerado um herói — não um herói injustiçado, mas um treinador visionário. Ninguém guarda rancor. Guttmann é, ainda hoje, bastante respeitado como um dos maiores treinadores que passaram pelo futebol português, em uma época em que o desporto estava em transformação — concluiu.
Quem viveu, sabe 🔴⚪
Apesar de ser um tema amplamente comentado pela imprensa e, principalmente, por torcedores do Benfica e de clubes rivais, nada esclarece melhor do que o depoimento de alguém que viveu na prática a experiência de vestir a camisa do Benfica e conviver com Béla Guttmann como seu supervisor nos melhores momentos da história do clube. Por essa razão, o Lance! buscou a versão de António Simões, ex-ponta habilidoso e rápido, com mais de 600 partidas pelos Encarnados, que afirmou categoricamente que a maldição nunca existiu e não passa de um mito.
— Nunca aconteceu. Nunca o Béla Guttmann disse isso. O que se criou foi um estigma, um mito, que nunca aconteceu. O senhor Béla Guttmann saiu do Benfica chateado, aborrecido, até inconformado, porque o Benfica não o tratou como devia depois de ter ganho a segunda Taça dos Campeões Europeus. Foi um problema com o contrato. O Benfica não lhe quis dar o que ele pediu, visto que tinha conseguido duas Taças dos Campeões Europeus. E tinha legitimidade para isso, mas não aconteceu — disse o ídolo benfiquista.
Tudo isso são mitos, são aldrabices, que é o que revela este país: alguém diz uma coisa e depois os outros seguem por aí afora. É tudo mentira.
António Simões, sobre a memória coletiva de Portugal
A lenda se intensificou por diversos fatores: Guttmann era uma pessoa de personalidade forte, atuou em uma época em que predominava a cultura de culto à figura do treinador e enfrentava questões financeiras em suas passagens pelos clubes. Com mais de 25 equipes ao longo da carreira, nunca permaneceu muito tempo em nenhuma delas, em parte por não apreciar a estabilidade prolongada. Exceção feita ao seu estilo excêntrico e carismático, que combinava com a ideia de que teria proferido a famosa declaração, a imprensa contribuiu para reforçar o estigma em mito consolidado.
Ídolo da torcida? 🦅
Por fim, mas não menos importante, a opinião de quem realmente move um clube e justifica a razão de sua existência. O benfiquista Fábio Pontes assumiu a responsabilidade de representar o sentimento dos torcedores em relação ao húngaro. Para ele, a maldição nunca existiu e, na verdade, só serviu para pressionar os atletas ao longo do tempo. Sobre a passagem do técnico, reconhece seu prestígio e o considera um herói injustiçado.
— Acredito que, nas primeiras finais que o Benfica disputou após o surgimento da lenda, as derrotas foram muito mais por falta de sorte. Só que depois das primeiras, uma pressão foi criada em cima das derrotas, porque as pessoas começaram a ter a história como verdadeira. Eu, particularmente, não concordo. Na verdade, acho que nunca houve maldição — disse ao Lance!.
— A figura dele é de um herói injustiçado. Béla foi um dos melhores treinadores da história do Benfica, sem dúvidas. Mas ficou mal visto por conta dessa tal maldição — terminou.
