O resultado é gigante. O futebol apresentando em campo bem menos. Por futebol, entenda-se: tudo o que diz respeito ao jogo. Elevado à décima casa quando se fala em Libertadores. Pegue todos os lugares comuns. Eles estão valendo e dessa vez explicam sim muita coisa. O Flamengo que se classificou para a semifinal da América na noite de ontem quase paga muito caro pelo único pecado que não se pode cometer na maior taça do continente: falta de ímpeto. Falta de intensidade. Ficar devendo em coração.

Um elenco muito acima do outro. Um treinador que é, e aqui não cabe dúvida, a grande promessa que apareceu no devastado cenário nacional de técnicos. Um super elenco vendo sem grande reação uma partida escorrer para pênaltis, uma vaga voando. Não é razoável.

Um time sendo atacado pela mesma bola longa o jogo todo repetidas vezes. Perdendo divididas. Ironicamente, um time capaz de exibições com momentos de gala e de beleza. Mas que agora tem pouco tempo para entender que precisa da casca mais grossa para fazer história.

Mas começamos aqui falando que o resultado é gigante. Talvez seja muito maior do que tantos imaginam. Porque há muito tempo um jogo de futebol não se enquadrava tanto na frase de Gerardo Caetano que encerrou a coluna da última semana e repetimos agora:

“Os que dizem que futebol e política não se misturam, ou não sabem nada, ou sabem muito e não dizem”.

Estava tudo em campo na noite de ontem. Futebol e política na veia, misturados. E das duas, uma: quem não entendeu que estava tudo ali misturado, ou nada sabe…ou sabe muito e não diz.

Nenhum time do continente empunha uma bandeira política mais do que o Estudiantes de La Plata nos dias de hoje. Sim, essa também é a dimensão dessa classificação rubro-negra. O adversário de ontem do Flamengo tem uma torcida apaixonada, uma história vencedora e de muito coração. Fato. OK. Mas hoje é também a encarnação de um sistema poderoso. Com muita força política. Foi isso que o Flamengo venceu em La Plata.

Flamengo superou o Estudiantes nas quartas da Libertadores (Foto: Luis Robayo/AFP)

Nunca foram só 180 minutos. Em campo, era muito mais do que futebol… Toda a polarização do mundo atual, a bandeira ultraliberal, a ideia da privatização do futebol, a urgência de se exibir a supremacia de um modelo que alguns garantem ser o único futuro possível estava no gramado. O décimo segundo jogador. De vermelho e branco. A cor que veste “La libertad, carajo” nos campos de futebol da Argentina nos dias de hoje. Enquanto se equilibra entre áudios que mostram a primeira-irmã recebendo 3% sobre pagamento de remédios a deficientes, escândalos com criptomoedas, derrotas fragorosas nas eleições de meio de mandato e se esquiva de pedradas nas ruas, Milei encontra tempo para levantar a voz pelo time de La Plata. E vestir a camisa fervorosamente.

Sem pudor, como é de seu feitio, Milei botou o Estudiantes como protagonista em sua pauta.
Como rolo compressor, descarrega toda pressão do mundo nos bastidores pelo time presidido por Juan Sebastián Verón, “La brujita Verón”, aquele voluntarioso meio de campo de outros tempos, agora um cartola que tende a jogar mais avançado para o lado do poder.

Um amor pragmático, como pragmáticos são os amores costurados pelos interesses do poder, une Milei e “La brujita”.

Por trás desse coração libertário repentinamente de La Plata, pulsam milhões de dólares em jogo. É sobre isso que estamos falando. É sobre isso que Milei tem falado em suas tantas recentes declarações de amor pelo Estudiantes e por Verón, entre idas e vindas. Como essa:

“O Estudiantes está a caminho de se tornar uma SAD. Isso é para o benefício dos membros e torcedores do Estudiantes. Felizmente, o Estudiantes não só tem um presidente (Verón) que foi um jogador de futebol excepcional, um dos melhores que já vi, mas também é uma pessoa de grande inteligência. Claramente, Verón está vendo isso e está levando o clube na direção certa".

Num país como a Argentina em que os torcedores, como em poucos lugares do mundo entendem o futebol e o clube de sua paixão como lugares de afeto e pertencimento, onde as “Sociedade Anônima Desportiva”, as SADs, equivalente às nossas SAFs, perdem a batalha de corações, mentes e almas pela imensurável paixão de pertencer a algo, o presidente “libertário” vai tomando um baile e perdendo a disputa política. E sendo contido e contrariado no desejo obsessivo de fazer com que a lei do país permita que um clube de futebol tenha controle acionário externo.

Flamengo bateu também o jogo de bastidores

Junto com o Estudiantes, sem que se possa deixar de lado a imensa grandeza e tradição de uma hinchada apaixonada desde os tempos de “pincharratos”, entra em campo também o vale tudo de Milei para vencer a parada. Imobilizado internamente em vitórias e derrotas políticas na tentativa de fazer as SADs virarem lei, promessa ainda na campanha de 2023, o presidente enxergou no Estudiantes o laboratório possível de propaganda pela privatização do futebol. Seu campo de testes. Que assim precisa ir a campo e ganhar. Em nome de ‘la liberdad…”. Foi esse jogo que o Flamengo também bateu ontem. Um jogo muitas vezes jogado nos bastidores. De um Alejandro Dominguez, o manda-chuva da CONMEBOL, afinado com Milei.

No último 23 de janeiro, o Diário Oficial argentino publicou, ali, perdido entre outros recortes, a senha da grande guerra, do que está em disputa na verdade.

Era a constituição formalizada do “Grupo Gillet SAU”. Na presidência, o nome de um gringo: “Foster Gillet”. E como diretor suplente, um conhecido empresário do futebol argentino: “Guillermo Luis Tofoni”. Com US$ 1 milhão disponibilizado na constituição do “Grupo Gillet SAU”.

Guillermo Tofoni correu para dar a carteirada do poder logo de cara: "O projeto de Gillet é de longo prazo e conta com o apoio de Javier Milei". Não por acaso, Gillet foi recebido com pompa na Casa Rosada pelo presidente argentino.

Por trás daquele anúncio que oficializou a empresa no Diário Oficial do país, está a ponta de lança da galinha dos ovos de ouro que Milei cobiça.

Diante da impossibilidade ainda vigente de fazer uma xepa como tantos fizeram no Brasil com as SAFs e ter uma SAD para chamar de sua, Foster Gillet e seu cambono portenho Tofoni viram as portas do Estudiantes serem abertas por Veron. Em guerra com Chiqui Tapia, o cartola da AFA, contrário as SADs, Veron fechou com Milei.

Em um drible na lei que impede as SADs, e em busca de uma instituição para servir de garoto-propaganda, Gillet e Veron assinaram um “pré-acordo”. Com investimento inicial previsto de US$ 150 milhões, que resultaram em reforços que estavam em campo ontem.

Fora do campo, o jogo é pesado. Por isso vale repetir o que abriu essa coluna: “o resultado do Flamengo é gigante”.

Milei escalou o time de maior poder de fogo que tinha à mão em nome das SADs. Juliana Santillan, uma deputada barulhenta que, como tantos por aqui, mudam de lado ao sabor do poder e já transitou até pelo peronismo, agora é libertária. Até que a perda de poder os separem. É o braço político mais atuante pela legislação das empresas no futebol. Ministros, secretários, todo o primeiro escalão do poder argento está em campo vestindo a camisa das SAD. E, por consequência, do Estudiantes. Os pênaltis que pararam na mão de Rossi, o surrado personagem da vez que ontem foi de vilão a herói, tiraram um doce precioso da boca de Milei. Não é pouca coisa.

Uma Libertadores nesse momento no armário de Milei e de Gillet talvez tivesse o significado de um xeque-mate. A soma definitiva de preciosos pontos no lobby do americano. Que botou o pé primeiro em La Plata por ser onde dava para driblar a lei.

Existia muito mais em jogo na noite de ontem. Forças poderosíssimas. Quem conhece o registro do “Grupo Gillet SAU” no país vizinho sabe que, mais uma vez, o futebol é só a bucha de canhão de um jogo muito maior. Os objetos da nova empresa constituída para ser a abre-alas das SADs não deixam mentir. Muito além do futebol, estão interesses no ramo da energia.

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“Exploração e aproveitamento de jazidas de hidrocarbonetos líquidos e/ou gasosos e outros minerais , bem como à industrialização, ao transporte e à comercialização desses produtos e seus derivados diretos e indiretos, incluindo produtos petroquímicos, produtos químicos derivados ou não de hidrocarbonetos e combustíveis não fósseis, biocombustíveis e seus componentes, bem como à geração de energia elétrica a partir de hidrocarbonetos, podendo processá-los, utilizá-los, comprá-los, vendê-los, trocá-los, importá-los ou exportá-los”.

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Está tudo no mesmo pacote de interesses maiores em que o Estudiantes entrou. Estava tudo em campo ontem. Faltou e falta muita coisa a esse Flamengo que pode fazer história com um pouco mais de disposição para tal. Mas é difícil não reconhecer: passou por onze em campo, um alçapão que pulsa, Milei, sua trupe e os milhões no fim do túnel da CONMEBOL. E, num jogo tão pesado, impossível esquecer: passou pelo senhor Andres Jose Rojas Noguera. Aquele apitador do primeiro confronto.

Que ainda vai povoar o imaginário rubro-negro por muitos anos. Como aquele juiz de Argentina 6 x 0 Peru da Copa de 1978 segue assombrando as noites sem pecado debaixo do Equador.

E no fim dessa gira, tanto naquela Argentina do ditador Videla quanto na CONMEBOL de Alejandro Dominguez, sempre foi muito mais do que futebol.

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Lúcio de Castro escreve sua coluna no Lance! todas as sextas-feiras. Veja outras colunas:

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