Clausura light

A concentração segue como um dos símbolos mais resistentes no futebol brasileiro, mas já sem o mesmo radicalismo de eras mais antigas

Corinthians - Sócrates
O Corinthians de Sócrates aboliu a concentração (Foto: Domicio Pinheiro/AE/Arquivo Lance!)

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O genial “Boleiros”, de Ugo Giorgetti, é um verdadeiro ícone para qualquer fã de futebol. E entre tantas cenas inesquecíveis que retratavam o universo do esporte mais popular do Brasil, um dos mais marcantes era com Lima Duarte, no papel de um técnico à moda antiga, preocupado com a presença de uma insinuante Marisa Orth, hospedada no mesmo hotel em que sua equipe se concentrava. Ele temia, com razão, que ela seduzisse o craque do time. Até que veio a frase que ficou clássica:

- A senhora não sabe o que é um Palmeiras x Corinthians!

A concentração é uma marca registrada no futebol brasileiro e isso já vem de décadas. Em determinado momento da história, algum cartola ou treinador achou que a melhor maneira de preservar seus atletas às vésperas das partidas seria enclausura-los em hotéis ou algum outro local tranquilo, deixando os craques longe das tentações e dos excessos das festas. O assunto é tão sério que há quem atribua à troca do local da concentração às vésperas da final da Copa do Mundo de 1950 como uma das causas da derrota do Brasil para o Uruguai por 2 a 1.

Criticada por muitos jogadores, a concentração já há um bom tempo deixou para trás a rigidez da clausura do século passado. Com a mudança no próprio perfil dos atletas, além da ajuda da ciência no esporte, ainda não se pode dizer que a concentração está em extinção, mas a sua flexibilização tem sido uma arma a favor do próprio rendimento das equipes.

- Acho que a concentração, assim como outra atividade em esporte de alto nível, precisa ser pensada como uma estratégia que atenda um objetivo. Às vezes pode ser importante levar o grupo para um hotel às vésperas de um jogo decisivo para trabalhar questões específicas, analisando determinadas jogadas do adversário – analisa o psicólogo José Aníbal Azevedo Marques, que atua na área esportiva há mais de 20 anos e já trabalhou no Botafogo e no Palmeiras.

A mudança no formato adotado pelos clubes na hora de reunir o elenco antes das partidas vem se alterando muito também com a ajuda da ciência esportiva. Segundo Marques, uma análise completa de um grupo multidisciplinar, reunindo médicos, fisiologistas, nutricionistas e psicólogos, tem ajudado muito a modificar o formato da concentração.

- A ciência trabalha em prol do futebol e cada uma destas áreas pode ajudar na melhoria da performance. O importante é analisar o perfil do grupo. Se há muitos jogadores maduros, só preocupados com a disputa de um jogo decisivo, pode fazer bem se apresentar na manhã da partida. Já se existe um grupo com a maioria de solteiros, que podem se desgastar, a concentração pode ser interessante – explica Marques.

Preservar o atleta

Dentro dos clubes, a concentração não é mais vista como uma arma contra atletas boêmios, porém fundamental diante do pesado calendário do futebol brasileiro. O diretor de futebol do Corinthians, Flavio Adauto, não define o período de concentração como fundamental, porém defende a estratégia.

- Como o desgaste dos atletas é grande, em função deste calendário maluco, o Corinthians irá terminar o ano com 71 partidas. O tempo de recuperação é curto. Por isso, a concentração acaba servindo para recuperar o atleta, que vai se cuidar direto com o fisiologista, terá médico à disposição, alimentação balanceada etc – afirma Adauto.

Ele não vê na concentração como uma arma contra jogadores baladeiros.

- O jogador hoje está bem mais maduro. Eles estão adaptados a esta necessidade. Atualmente, se eles não forem profissionais, não conseguem jogar. São tantos testes físicos que a resistência de quem abusou na farra seria visível – analisa o diretor corintiano.

O próprio Corinthians, neste Campeonato Brasileiro, andou flexibilizando o esquema de concentração, muitas vezes apenas um dia antes das partidas. Somente na reta final, antes do clássico contra o Palmeiras, o período foi ampliado para dois dias, iniciando na sexta à noite.

Exemplos de relaxamento na concentração foram dados por outros clubes neste mesmo Brasileirão. Quando ainda era comandado pelo técnico Roger Machado, o Atlético-MG chegou a abolir as concentrações para os jogos em Belo Horizonte, com os atletas tendo que se apresentar para o almoço, nas partidas marcadas para o período da noite.

Mas não se trata de uma prática nova. No Botafogo, em 2013, a experiência foi adotada e os resultados foram considerados positivos na época.

- Tudo foi negociado com o grupo. Havia um horário para chegar ao hotel na véspera do jogo (22h), mas poderia também chegar para o almoço. Parte do grupo preferia se concentrar à noite, outros queriam ficar mais tempo com a família. Mas havia uma cobrança grande do próprio grupo para quem não respeitasse o acordo. Coincidência ou não, aquele grupo levou o Botafogo de volta à Libertadores após muitos anos, ao ficar em quarto lugar – lembra o psicólogo José Aníbal Azevedo Marques.

Saiba mais

Corinthians foi pioneiro em abolir as concentrações: Em 1982, o Corinthians provocou uma espécie de revolução no modelo tradicional do futebol brasileiro. Sob o comando de Sócrates e tendo apoio do então diretor de futebol Adilson Monteiro Alves, o Timão implantou o que ficou conhecido como “Democracia Corintiana”. Todas as decisões eram discutidas em grupo e o que a maioria decidisse, prevaleceria. Entre as medidas adotas, a mais polêmica foi a de abolir a concentração. Os atletas casados se apresentavam horas antes das partidas disputadas em São Paulo, mas os solteiros ainda tinham que se concentrar. Ainda assim, dentro de campo os resultados foram mais do que positivos, com o Corinthians faturando o bicampeonato paulista em 82 e 83.

- Aquele movimento foi altamente válido e serviu para mostrar que havia um elenco comprometido com resultados. Eles se cobravam muito e tentavam fazer o modelo vingar. Tanto deu certo que
concentrações longas quase não existem mais – diz o atual diretor Flavio Adauto.

Memória – Eles driblaram a concentração

• Famoso pelas entortadas que dava em seus marcadores, Mané Garrincha também ficou famoso por driblar a marcação cerrada dos treinadores nas concentrações. Não foram poucas as vezes em que ele deu suas escapadas para curtir a noite em busca de uma companhia mais agradável do que a de um colega de time. Em uma excursão do Botafogo à Suécia, em 1959, uma destas escapadas rendeu um filho que nunca chegou a conhecer pessoalmente, chamado Ulf.

• Outro craque da Seleção Brasileira que também adorava dar suas escapadas das concentrações era o atacante Romário. Na Copa dos Estados Unidos, em 1994, ele deixou o hotel escondido duas vezes, antes da estreia contra a Rússia e antes do último jogo da fase de grupos, contra a Suécia. Na Copa América de 1997, na Bolívia, ele levou outros jogadores para uma balada, entre eles Ronaldo Fenômeno.

• Uma escapada que terminou mal ocorreu antes do embarque da Seleção Brasileira para a Copa do México, em 1986. A equipe estava concentrada na Toca da Raposa, em Belo Horizonte, mas Renato Gaúcho e o lateral Leandro resolveram esticar a noite além do permitido e voltaram para a concentração depois das 4 da manhã. Renato acabou cortado por Telê Santana e Leandro, que havia sido perdoado pelo treinador, decidiu abandonar a Seleção em solidariedade ao companheiro.

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