‘É proibido vaiar’: LANCE! resgata memórias do 1° estádio de futebol do Brasil, demolido há 100 anos

No mesmo ano da abertura da Vila Belmiro, futebol brasileiro perdeu seu primeiro estádio, o Velódromo Paulista. Ele foi construído para o ciclismo e virou casa do futebol em 1900

L! obteve fotos especiais do Velódromo. Registro histórico mostra placa: "É expressamente proibido vaiar" 
(Foto: Arquivo/Club Athletico Paulistano)

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Estado de São Paulo, 1916. Enquanto a cidade de Santos e o Santos Futebol Clube festejavam a abertura do Estádio da Vila Belmiro, fato que completou 100 anos nesta quarta-feira, a cidade de São Paulo perdia, demolido, o primeiro estádio de futebol do Brasil, o Velódromo Paulista. Em um resgate histórico aproveitando como gancho o ano de 1916, a reportagem do LANCE! foi atrás de memórias sobre este local hoje pouco conhecido e obteve acesso a fotos especiais, além de descrições detalhadas sobre o "bisavô" das atuais arenas brasileiras. Curiosamente, lá era proibido vaiar.

O Velódromo tinha capacidade para até 8 mil pessoas e ficava no bairro da Consolação, ao lado de onde hoje é a Praça Roosevelt. Inaugurado em 1895, ele pertenceu a Antônio da Silva Prado, primeiro prefeito de São Paulo (1899 a 1911) e fã de ciclismo, e foi construído em um terreno da mãe dele, Veridiana da Silva Prado, uma nobre intelectual. Porém, o local logo viu o futebol, esporte que vinha crescendo na Europa, ganhar espaço. A primeira vez que um jogo de futebol ocorreu no Velódromo foi em 19 de agosto de 1900, em um duelo festivo com dois tempos de 30 minutos entre os sócios do Sport Club Internacional, time de futebol paulista fundado em 1899. O campo de jogo ocupou o local que era destinado a um rinque de patinação no centro da pista.

Em dezembro de 1900, com apoio da família Prado, surgiu o Club Athletico Paulistano, instituição que voltou o seu foco para o futebol e fez do Velódromo a sua sede. Em 1902, o estádio abrigou a maior parte do primeiro Campeonato Paulista, disputado por cinco clubes e vencido pelo São Paulo Athletic, de Charles Miller, pai do futebol no Brasil. O Paulistano, que foi vice, existe até hoje (porém sem atividades no futebol desde 1929). O L! procurou o Paulistano e recebeu do clube sete fotos do Velódromo que estavam em arquivos (veja em galeria no topo da matéria). Em uma delas, é possível ler a inscrição em uma placa na arquibancada: "É expressamente proibido vaiar". E qual era o motivo?

De acordo com o livro "A bola rolou", de Wilson Gambeta, as vaias não eram aceitas por conta de o Velódromo "ser um espaço para a transmissão de valores morais". Com origem nobre, o Paulistano zelava pelos bons costumes no ambiente. Também segundo o livro, "o juiz não podia ser alvo de vaias, pois mesmo se ele cometesse erros, ele era o único investido de poder interpretar as jogadas". O mesmo valia para os jogadores, que não podiam ser vaiados por "serem homens dignos que pertenciam às principais famílias". Naquele tempo, os times eram formados por homens da aristocracia. Quem vaiasse, poderia até ser retirado pela polícia. O jornalista Orlando Duarte, de 84 anos, enciclopédia sobre o futebol brasileiro e mundial, contou ao L! como era o comportamento da torcida quando alguém mais crítico decidia vaiar.

- A vaia era indelicada. Se uma pessoa vaiava, logo um torcedor do próprio time desaprovava e um torcedor do outro time também olhava estranho, com espanto. Os torcedores usavam as melhores roupas para ir ao estádio, o futebol era um entretenimento para o público, não local de aborrecimento. Por isso as vaias eram condenadas - disse Orlando Duarte.

Em 1910, com a morte de Veridiana Prado, seus herdeiros (sob forte pressão da especulação imobiliária) anunciaram a venda do Velódromo ao Banco Italiano, que manifestou a intenção de abrir uma rua no local e loteá-la. O estádio, porém, seguiu em uso até 1915. Naquele ano, o Paulistano recebeu uma ação de despejo para a abertura da Rua Nestor Pestana, que cortou o terreno do estádio. O último jogo ocorreu em dezembro de 1915 e a demolição foi feita na primeira metade de 1916. As arquibancadas de madeira do Velódromo, com capacidade para 4 mil espectadores, ainda foram enviadas para outro estádio, a Chácara da Floresta. E assim sumiu o lendário campo da Consolação.

- Quando o futebol ainda começava, o Velódromo teve muita importância para conquistar o público por estar bem localizado, atraindo torcedores por seu fácil acesso. Depois a cidade cresceu, outros estádios surgiram e os transportes melhoraram, mas o Velódromo teve a importância dele, foi útil e cumpriu bem o seu papel enquanto existiu - destacou Orlando Duarte.

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VELÓDROMO, PAI DA GERAL

O Velódromo também foi responsável pelo nascimento da geral, característica importada da Europa e que vingou no Brasil justamente pelas características do Velódromo. Explica-se: nos hipódromos da França, na segunda metade do século XIX, como as arquibancadas eram pequenas, milhares de fãs do turfe se aglomeravam nos limites da raia e em colinas para ver as provas. Era a "pelouse". No Velódromo Paulista, com o crescente interesse pelo futebol, as arquibancadas para 4 mil pessoas logo deixaram de ser suficientes e o comportamento visto nos hipódromos franceses foi "imitado". Como o futebol ocupou a parte interna da pista (que era de saibro e tinha uma leve inclinação - que acabou colaborando para melhor visualização do gramado), os torcedores ganharam para si um espaço enorme que era destinado às corridas de bicicleta. Eram 4 mil lugares a mais, em setor que logo ganhou o nome de geral.

Geral - Velódromo
Inclinação da pista era aliada dos fãs (Foto: Reprodução de internet)

Desde os hipódromos franceses, "gerais" era o termo que designava os torcedores não associados aos clubes. Segundo o livro "A bola rolou", o nome "gerais" foi usado no Velódromo Paulista "para identificar o conjunto de homens em pé, geralmente um público com menor escolaridade e poder aquisitivo". Rapidamente, "o lugar dos gerais" virou "geral". E, evidentemente, os torcedores mais nobres tinham seus lugares garantidos na arquibancada.

Também de acordo com o livro "A bola rolou", o preço dos ingressos na geral era acessível ao povo. Primeiramente, foi concedida meia-entrada aos estudantes. Depois, o desconto foi estendido para todos os ingressos do setor e virou padrão. Em alguns jogos, o preço para geral era de mil réis, um terço do valor pago nas arquibancadas. Para comparação: na época, o preço de um jornal era 100 réis e um par de sapatos comum custava 15 mil réis.

Posteriormente, as gerais apareceram em outros estádios brasileiros, também como um espaço mais popular. A geral mais famosa, do Maracanã, durou 55 anos (de 1950 a 2005) e chegou a acomodar cerca de 30 mil torcedores em jogos de maior público.

ESTÁDIO ENVOLVIDO EM RUPTURA HISTÓRICA

O Velódromo Paulista foi o primeiro estádio de futebol do Brasil, mas não o primeiro campo. Antes, Charles Miller tinha apresentado o esporte aos brasileiros na Várzea do Carmo, São Paulo, em 1894. Cinco anos depois, equipes formadas por ingleses, alemães e alguns brasileiros começaram a jogar na Chácara Dulley, também na cidade de São Paulo. Porém, nenhum destes lugares tinha arquibancada. O Velódromo, com melhores instalações, reinou como principal palco dos Campeonatos Paulistas entre 1902 e 1912. A Liga Paulista de Futebol (LPF) pagava aluguel ao Paulistano pelo estádio e assim foi por uma década. Porém, uma ruptura entre o Paulistano e a LPF mudou tudo.

Paulistano e LPF estavam com relações estremecidas por conta de ideologias. O Paulistano, fiel ao amadorismo (característica ligada ao futebol mais elitizado), estava insatisfeito com a profissionalização crescente no futebol de São Paulo. Para o Paulista de 1913, o Paulistano pediu um alto valor a LPF pelo aluguel do Velódromo e a Liga preferiu pagar quatro vezes menos para usar o Parque Antarctica (que em 1920 foi comprado pelo Palestra Itália, hoje Palmeiras).

No dia do primeiro jogo no Paulista de 1913, contra o Americano, o Paulistano apareceu - em represália - no Velódromo e o rival entrou em campo no Parque Antarctica. O Paulistano alegou que a mudança de estádio tinha sido mal comunicada e decidida às vésperas da partida, mas a LPF julgou o caso a favor do Americano. Foi o estopim para o Paulistano, que saiu da Liga e fundou uma organização paralela, a Associação Paulista de Sports Athleticos.

Dessa forma, de 1913 a 1916 foram disputados dois campeonatos paralelos em São Paulo, o da Liga e o da APSA (com clubes de origem aristocrata). Só em 1917, após várias tentativas de pacificação, a divisão terminou. Era o fim da primeira grande crise dentro do futebol paulista.

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