Falamos com Jorge Fossati

Técnico uruguaio faz campanha impecável no Qatar e está prestes a encerrar jejum histórico. Ele relembra saída surpreendente do Internacional e fala sobre imagem do Brasil no exterior após o 7 a 1<br>

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(Foto: Divulgação)

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No ano passado, o tradicional Al Rayyan estava na segunda divisão da Liga do Qatar. Hoje, possui o melhor aproveitamento de um clube em um campeonato nacional da primeira divisão, com 94,4% de aproveitamento e muito próximo de encerrar o jejum de 21 anos sem título. Boa parte desta transformação se deve ao técnico Jorge Fossati.

Aos 63 anos, o uruguaio, na quarta passagem pelo futebol catari, admite que os números são surpreendentes. A proximidade da conquista faz com que a reflexão sobre a campanha comece antes até da própria contratação.


- Ir para a segunda divisão foi um desses acidentes que existem no futebol... Imagina ir pra segunda com jogadores como Nilmar e Lucho Gonzalez? Mas o Rayyan é um dos maiores clubes do Qatar, especialmente em torcida. Está sendo uma campanha mais do que sonhada, porque ninguém conseguiria acreditar antes do início do torneio. O objetivo era ficar entre os quatro primeiros. Alguns jogadores são verdadeiros responsáveis, como o Tabata. O exemplo dele faz os outros jogadores seguirem - explica Fossati.

Na entrevista concedida antes de um treinamento do Rayyan, em Doha, na semana passada, ele abre o jogo sobre a polêmica saída do Internacional, em 2010, após a classificação para a semifinal da Libertadores, o momento do futebol brasileiro e os seguidos casos de corrupção no futebol sul-americano.

1) São 14 pontos de vantagem e sete jogos a fazer (neste sábado acontece o duelo com o Al Arabi, quarto colocado). É difícil fazer os jogadores manterem a concentração com o título tão perto?

Por enquanto, eles têm demonstrado que são inteligentes. Normalmente, times nessas condições tendem a relaxar. Mas por enquanto não me deram essa impressão. Volto aos exemplos. Se o Tabata não relaxa, se o Sergio Garcia (espanhol, ex-Barcelona, Betis e Espanyol) não relaxa, se o Cáceres (paraguaio ex-Flamengo) não relaxa... Se os estrangeiros puxam o time para frente, os cataris têm que ir atrás. Não dá pra um catari relaxar. Os verdadeiros responsáveis são os jogadores, principalmente os líderes.

2) É complicada a relação entre os jogadores estrangeiros, que ganham ótimos salários, e os cataris, que muitas vezes nem profissionais são?

Aqui no Qatar há muita diferença entre o estrangeiro e o catari. E eu acho que isso deve mudar. Um exemplo claro: primeiro dia que eu vim aqui em 2006, falando sobre o time, no Al Sadd, os dirigentes me falaram: "Temos quatro profissionais". Como que é? Falei: "Estamos fudidos, no mínimo preciso de 11". Para eles, falar de profissionais é falar dos estrangeiros. Desde esse primeiro dia eu falei "não, está errado". Falei para os jogadores: "Pra mim todos são profissionais, todos têm que ir atrás de um trabalho profissional, quem não está em condições de fazer isso larga o futebol". Para eles verem no futebol uma profissão.

3) E como vê a situação da seleção do Qatar, quase na totalidade formada por estrangeiros?

Acho que todos deveríamos colaborar para que o jogador catari pensasse no futebol como sua profissão para seu futuro e da família. No dia que o local, não tem que ser catari, pois veio com a família pequeno para cá. Há uma realidade que é inquestionável, talvez alguns tenham vergonha, mas se a gente não explicar bem para o mundo, ninguém vai entender. A seleção do Qatar tem jogador originário da Arábia, Egito, Yêmen... Tem quatro ou cinco originais daqui. Mas é simples entender. Quantos habitantes cataris tem aqui? 250 mil, no total, mulheres, crianças, idosos, gente que não gosta de futebol. Imagina: 200 milhões de brasileiros para escolher uma seleção é um pouco mais fácil do que entre 250 mil. São três milhões no Uruguai, somos um país pequeno, e considero um milagre de que possa competir internacionalmente. Imagina o Qatar?

4) Mas o Qatar não ficou marcado por tentar naturalizar jogadores que não tinham essa ligação?

Comigo como técnico da seleção, a gente nacionalizou o famoso caso do Emerson Sheik. Eu era o treinador, eu que falei com ele. Ele no final me falou que não sabia que aquele torneio sub-20 que jogou pelo Brasil era oficial. Foi a explicação dele. É um grande jogador e uma boa pessoa, mas infelizmente talvez ele ficou confuso. Naquela vez que a Fifa mudou de dois para cinco anos. Eram dois, só que não poderia ter jogado na sub-20. Agora, o Emerson poderia jogar. Teria que ter cinco anos aqui. Como o caso do Tabata. Ninguém foi comprar o Tabata. Ele gosta de morar aqui, de jogar no futebol catari, só vê-lo jogando no clube que ele deixa a vida no jogo. No final, o dinheiro, pelo menos comigo, não funciona como única motivação. Se é a única motivação, não vai aguentar muito. Comigo não dá. Com pessoas como Tabata e Soria, que tem onze anos aqui... Não é que eles vão por aí comprando jogadores pelo mundo.

5) Como vê a imagem do futebol brasileiro no exterior após a Copa de 2014?

Evidentemente que a Copa do Mundo no Brasil, essa semifinal, é bem difícil de dissimular. Sete gols é difícil explicar... Pelo menos para mim o Brasil tem que trabalhar para voltar à mesma imagem de antes. Tem que demonstrar que aquilo foi um acidente, o que eu considero que tenha sido. Vão jogar outras 50 vezes, mas não vai acontecer outra derrota de sete. A primeira coisa que deveria acontecer para demonstrar isso é fazer uma grande participação nas Eliminatórias. Não começou bem, mas aparentemente está melhorando. Tomara, porque foi, é e vai continuar sendo um dos grandes representantes do futebol sul-americano. Eu sou muito torcedor do futebol sul-americano. Acho que tem muita coisa na Europa que é só papo. No Barcelona, parece que todos são europeus... Mas nasceram todos lá embaixo.

6) E a imagem dos técnicos brasileiros no exterior? Poucos tiveram passagens recentes por grandes clubes europeus, por exemplo

Primeiro, pelo preconceito. Quantos sul-americanos quebraram isso? Uruguaios são muito poucos. Argentino, um de vez em quando. Bianchi foi lá, duas vezes... Cuper e cia. Mas primeira coisa é isso. Tira o futebol. Você vai numa clínica médica e olha as placas: Doutor João da Silva e John Carlison. Lê e bate na porta do John. Achamos que nome estrangeiro é melhor, isso acontece no Uruguai também. No futebol, insisto nisso.

7) E o tratamento de um estrangeiro no Brasil? Você foi demitido do Inter após se classificar para a semifinal da Libertadores.

O problema geral no Brasil é que eles (diretores) não são sérios. Eles ficam mais preocupados com o que a imprensa vai falar. Politicamente eles estão muito preocupados, a maioria deles. A minha pergunta é sempre a mesma: se você me contrata e me manda embora dois meses depois, você tem que ir embora comigo. Foi você que errou. Eu não vim bater na sua porta, você que foi me procurar. No meu caso, foram na minha casa, "por favor, a Libertadores", ajoelhados, só me falavam isso. A gente vai pra semifinal e diz que não está dando resultado, foi o que o Fernando Carvalho me falou.

8) É a maior frustração de sua carreira?

Frustração foi não ter classificado o Uruguai para a Copa de 2006, porque acho que a gente lutou sozinho contra uma maquinária que hoje está parecendo de que tinha muita coisa suja. Quando a gente falava lá em 2006, como que algumas coisas poderiam acontecer, parecia que a gente era maluco, choradeira. Agora entenderam que tinha corrupção mesmo. A corrupção, pra mim, tanto faz se os direitos foram para a Traffic, se alguém levou comissão... Tanto faz. Para mim não é nada tão feio. O problema é quando a corrupção vai para dentro do campo. Eu fico revoltado que sujem o futebol. No mundo dos negócios, faz o que quiser, mas não sujem o campo.

9) Voltaria para o Inter?

Claro, por isso que eu fui, aceitei, mas errei. Até agora não entendi a razão... Mas algum interesse de fora deve ter levado o diretor de futebol a tomar essa decisão.

10) Aconselharia algum sul-americano a trabalhar no Brasil?

Conhece o clube por dentro? Acredita no diretor? São as perguntas que eu faria para ele. Se é um projeto sério, vai lá, não tem nada mais bonito que trabalhar no futebol brasileiro.

11) Por que foi tão marcante sua passagem pelo Inter, mesmo sendo tão curta?

Vou simplificar com um caso. Em 2010, Brasil x Argentina, eu estava trabalhando no Al Sadd (Qatar) e fui convidado para o jogo. Me hospedaram no hotel Four Seasons, o mesmo que o Brasil estava. Eu não sabia como seria a reação, os jornalistas iam vir me perguntar, estava muito recente, tinha cinco meses do acontecido. Cheguei uma noite, estava o Mano, o Autuori, jogadores brasileiros, fui cumprimentá-los. Não vou falar de nomes. Tinha um famoso ex-jogador, treinador e jornalista do Rio Grande do Sul, não vou dizer quem é, um famoso jornalista de São Paulo, e todos eles: "Professor, fico até com vergonha de te cumprimentar pela merda que fizeram com você no Brasil". "É o cara que não deixaram ser campeão da América". Voltei com o Peñarol em 2014, parecia que tinha chegado o Falcão. Por que aconteceu? Tem quem me liga do Inter até hoje porque fiz amizade, entenderam que fui lá, fiz meu trabalho honestamente, e isso é valorizado em qualquer parte do mundo.

O repórter viajou a convite do Comitê Olímpico do Qatar

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