‘Nunca a lei de Gerson esteve tão presente na vida nacional’

Entre velas, flores, camisas brancas e hinos, a história trágica dos meninos de Chapecó foi apenas um dos elementos que moveram aquela multidão colombiana

Chapecoense
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Uma pergunta não se cala desde que o país e o mundo se surpreenderam e se emocionaram com a homenagem às vítimas da tragédia da Chapecoense por milhares de colombianos em Medellín: nós, brasileiros, seríamos capazes de fazer uma coisa daquelas se as nacionalidades fossem invertidas?

Ouso dizer que não.

As cerimônias de sábado em várias cidades, especialmente em Chapecó: o desembarque dos caixões carregados por militares; o cortejo pelas ruas da cidade e as dramáticas e comoventes manifestações de dor e homenagem no gramado e nas arquibancadas da Arena Condá foram igualmente emocionantes. Não resta dúvida.

Mas, contudo, há uma diferença fundamental entre os dois momentos: aqui, recebíamos e velávamos os nossos mortos. Era o desfecho da nossa tragédia. Enquanto os colombianos choravam por nós. E, mesmo assim, ainda tivemos de conviver com um presidente que ameaçou fugir do velório com medo de vaias e um debate recheado de, digamos, impropriedades como se de um lado tudo fosse certo e de outro errado.

O que aconteceu no Atanasio Girardot na quarta-feira, quase de improviso, reuniu num único sentimento e no mesmo propósito governantes e governados, governistas e opositores, torcedores do Nacional e de rivais. Foi muito além de uma manifestação de solidariedade. Foi uma expressão do bom senso, da civilidade, uma definição clara dos limites de até onde o confronto e a rivalidade podem chegar na vida de um povo e de um país.

E, perdoem-me a franqueza de um brasileiro, de tudo isso estamos em falta por aqui.

Nunca a lei de Gerson (os mais jovens podem acessar o vídeo abaixo para saber do que se trata) esteve tão presente na vida nacional. Aqui, deputados e senadores legislam em causa própria, procuradores querem se colocar acima da lei, como se os fins justificassem os meios. Aqui, juízes costumeiramente decidem ao arrepio da constituição, pautados por messianismo, interesses escusos ou devaneios pessoais.

Neste país onde o justo clamor das ruas em favor da decência por vezes é manipulado para servir a práticas fascistas, onde deputados buscam salvar a própria pele desafiando as mais elementares das regras republicanas, o espaço para a solidariedade, a busca do bem comum e da fraternidade está cada vez mais se fechando. Na falta de líderes, buscamos salvadores.

Embora enoje, não surpreende a atitude desumana, aproveitadora e indigna dos senhores Fernando Carvalho e Vitório Piffero. Comparar a morte de 71 pessoas, de um time inteiro de futebol, à queda de um clube para a segunda divisão por si só já seria uma imbecilidade - desculpem o termo. Mas usar essa tragédia, fazer dos cadáveres da Chapecoense massa de manobra para buscar uma virada de mesa, para ganhar no tapetão, é muito mais do que isso: é uma agressão aos princípios da própria humanidade.

Mas, voltando à Colômbia e saindo do futebol. Depois de anos, como todos acompanhamos, governo e lideranças das Farc fizeram um acordo de paz. O povo rejeitou em plebiscito. Mas, em vez de estabelecer-se um Fla x Flu que destruiria o entendimento, buscou-se a negociação, construiu-se um segundo texto com concessões de todos os lados: governo, oposição e guerrilha, mas preservando o essencial. E de novo caminham para o consenso.

Imaginem se fosse aqui, nesse Brasil de hoje, uma situação como essa?

Entre velas, flores, camisas brancas e hinos, a história trágica dos meninos de Chapecó foi apenas um dos elementos que moveram aquela multidão colombiana. Sem valores que deveriam ser corriqueiros, presentes no cotidiano do esporte, da política, do dia a dia de cada um de nós, e que hoje nos parecem tão distantes, abafados aqui. No fundo, foi isso que levou aos estádios e às ruas aquela gente. Foi isso que fez escorrerem de milhares de olhos lágrimas da mais genuína sinceridade. Que só temos derramado por nós mesmos.

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